Porém, Cena Ouro - Epide(r)mias, da Cia Munguzá, mais que denúncia de desumanização sofrida pelos usuários de crack da região, vem nos mostrar que essa desumanização também nos afeta. E o faz nos mostrando um pouco de algumas vidas que habitam a região. Histórias de pessoas, de vidas comuns, como a minha, como a sua que lê este texto, com diferenças dadas antes pela classe social, cor e gênero que pelo uso mesmo da droga. É nessas histórias de vida que vem a verdadeira denúncia da desumanização: a nossa própria, feita da nossa cegueira, do nosso preconceito, do nosso egoísmo, da nossa resistência ao assumir que a condição daquelas pessoas nos tem como corresponsáveis.
Na ótima tessitura do texto, ao dar vez e voz a seis personagens da região, o espetáculo permite que nos miremos também no espelho - quem sabe mesmo não nos mobilize a de fato mudar esse estado de coisas, ao invés de simplesmente aplaudir ao cabo.
Afinal, somos nós a Medusa a quem o ator evoca, somos nós quem petrificados essas pessoas, que as estigmatizamos, que tornamos em pedra esses corpos - sequer a personificação do crack, antes uma metonímia, a própria droga. Pergunto aos meus concidadãos-Medusa: depois de reduzi-las a pedras, o que temos feito com elas?
12 de abril de 2024
PS: Aos que não puderam assistir ao espetáculo, há um podcast com a história em mais detalhes das pessoas frequentadoras da região envolvidas na peça: https://youtube.com/playlist?list=PLUNX2xPu9iqvxUVDriu77rIfsM7rt1CL9&si=4vJK11vvGJVTAVoG