segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Apetrechos que nos permitem poupar tempo e atrofiar a atenção

Logo que saí da cidade de meus pais para estudar, eles compraram os móveis para minha nova casa, e dentre eles estava uma máquina de lavar roupas - meus amigos geralmente tinham tanquinhos, ou levavam no fim de semana para a mãe lavar (impossível para mim e as vinte horas que me afastavam da minha cidade natal). Como a máquina faz tudo, é pôr sabão e amaciante nos devidos compartimentos, ligar e ir fazer outra coisa: nunca tive necessidade de esfregar uma roupa, para decepção da minha mãe, que se queixa do que ela chama de "encardido" nas minhas camisetas brancas - que eu prefiro chamar de "cor adquirida naturalmente com o tempo e com o uso e que não a desabona". Por muito tempo acho que esse foi o único facilitador das atividades corriqueiras que tive.

Já morando na capital, comprei uma máquina de fazer pão (em Campinas eu preparava na mão): era pôr os ingredientes, decidir a hora pra ficar pronto (geralmente pela manhã, logo quando eu acordo) e não me preocupar mais. Tempos depois, influenciado por uma ex-companheira, adquiri uma panela de arroz: ainda que seja algo fácil de fazer, a referida panela evita que o arroz queime (e também que fique bom como quando preparado com temperos e tudo o mais no fogo). Outra aquisição foi uma chaleira elétrica: ao invés de ter que ficar cuidando para ver a hora certa de desligar o fogão para a água do chimarrão, correndo o risco de ora desligar muito fria, ora muito quente, é marcar os 80ºC e atender os insistentes pedidos de carinho que Guile, meu gato, sempre faz quando me ponho diante da pia da cozinha ou do fogão. Faz um tempo também que me muni de um robô de limpeza, um modelo recomendado, ainda que antigo, por não ser controlado por aplicativo, e que parece ter um sensor que identifica onde há focos de maior sujeira e se desvia deles.

Ou seja, enquanto escrevo esta crônica, é possível que "eu esteja" também lavando a roupa, limpando a casa, preparando pão, arroz e esquentando a água do chimarrão (além de ouvindo música, claro). 

Mais provável, contudo, que esse tempo que ganho com as quinquilharias que tenho em minha casa sirvam para eu perder uma hora a mais na internet com desnecessariedades supérfluas e redes sociais. Guy Debord, na tese 153 de seu livro de 1967, comentava que os avanços no ganho de tempo das atividades e deslocamentos ordinários das pessoas era revertido em tempo defronte a televisão: no século XXI, o avanço tecnológico nos permitiu ganhar ainda mais tempo e nos oferece como contrapartida um verdadeiro ralo de tempo, um meio de perder ainda mais tempo de modo demi-produtivo - produtivo para o sistema capitalista, não para nós.

Contudo, há algo mais que esses facilitadores da nossa rotina alteram, que é a nossa percepção e a própria relação com tudo o que nos rodeia: o pão que fica pronto na hora definida é diferente daquele que você decidiu pôr mais ou menos farinha na hora da sova, e que a depender da fome, preferiu não deixar crescer tanto; o robô que faz a faxina mudou drasticamente minha relação com minha própria casa: que sempre limpei por conta, e desde uma residência artística em dança com Edu Fukushima e Bia Sano, em 2016, passei a passar pano na mão e não mais com rodo (https://bit.ly/cG170107), era uma forma de me irmanar de meandros invisíveis dos entre-móveis - experiência hoje cada vez mais rara. 

Notei isso recentemente, quando comprei uma máquina de café expresso - com pandemia, não vinha mais tomando café fora de casa, e sentia falta do expresso. Como acho máquinas de cápsulas uma produção cretina de lixo - e ainda por cima cada café fica caro como beber fora -, optei por uma máquina "comum", dessas que se põe o café no cachimbo, aciona o botão e desliga quando julga que há líquido suficiente. Cada vez mais desacostumado a ter atenção a esse tipo de tarefa, num de seus primeiros uso, liguei a máquina e fui fazer outra coisa, resultando em café transbordando da xícara. 

Então é isso? Não posso ter trinta segundos de atenção ao que está sendo preparado por mim e para mim, porque preciso otimizar meu tempo e curtir mais seis ou sete fotos que aparecerem no Instagram? E questiono: se não conseguimos mais ter atenção e dedicação em tarefas simples e rápidas do dia a dia que nos afetam direta e imediatamente, na hora que precisamos estar presentes e concentrados em tarefas mais complexas, teremos mesmo capacidade para tanto? Ou vamos picotar nossa atenção a cada apito do celular, para ver qual é a notificação e para não nos entendiarmos em fazermos a mesma coisa por uma hora (ou dez minutos) sem interrupção?


30 de agosto de 2021.