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domingo, 25 de dezembro de 2022

Colateral: a pandemia como um peso a mais sobre os ombros das mulheres [Diálogos com a literatura]

Terminei de ler o ótimo Colateral, livro de estreia da Isabela Veras (com ilustrações de Mireille Lerner). Uma leitura agradável, que prende, capaz de tocar a todos - até pela proximidade do tema da primeira parte -, e sugerir um outro olhar sobre o nosso quotidiano. Se em alguns momentos sua estreia na literatura fica à mostra, isso não desabona a obra.

O livro é composto de duas partes. A segunda, Insurrecta, são narrativas de temáticas mais feministas, algumas abertamente militantes e que se fazem a crítica ao papel da mulher na sociedade, vão além e fazem repensar a formação da mulher para a nossa sociedade. Isso me traz questão que há cerca de dois anos me permeia: a de se cabe tentar alterar a divisão dos papéis de gênero na nossa sociedade, ou se não seria mais sensato rediscutir a própria questão de gênero e tudo o que vem implicado nela, de uma identidade una e em alguma medida heterônoma (o que me leva, inclusive, a uma crítica do "ser não-binário"), a todos os acessos ou restrições que a ideia de gêneros implica.

O destaque, contudo, fica com a primeira parte, Colateral. São contos da pandemia, vários deles inspirados em notícias desse período - como os funcionários rezando nas ruas pela reabertura do comércio -, outros inspirados na nossa vivência genérica do isolamento social. Se alguns deles rememoram minhas agruras de classe média - meus dezesseis meses sem visitar minha mãe, por exemplo -, outros me recordaram que fui um privilegiado por ter meus direitos básicos garantidos, e não ter precisado me preocupar com o mais básico da minha sobrevivência: um teto, um mínimo de conforto para viver e comida no prato todo dia. Em alguns momentos, os textos me trouxeram lágrimas ao olhos, seja ao pensar no que passei, seja ao imaginar o que tantas famílias passaram - e nem estou falando aqui tanto das mortes, e sim de toda a terra arrasada deixada pelo desdém pela vida (seja a biológica, seja a que há para além dela), que não a "vida" do capital, por parte dos donos dos poderes (político e financeiro).

Se o pano de fundo nos textos colaterais é a pandemia, ela serve para ressaltar de modo bastante orgânico os diversos papéis da mulher numa sociedade estruturada a partir da exploração dos seus trabalhos e de relações desiguais e desgastadas, mantidas por convenção social.

A maternidade, a despeito de suas alegrias, desponta como um fardo (em um conto no qual haveria uma maior isonomia nas relações entre homem e mulher, a paternidade também). Se a mulher pobre tem a avó da criança para dar algum suporte, a mulher branca, classe média alta, depende do suporte da mulher pobre, desde que essa deixe o próprio filho em segundo plano para cuidar dos da patroa - e ainda ser criticada por não dar conta do jeito como ela gostaria.

E seja à mulher pobre, seja à mulher rica, a pandemia, na apresentação da Isabela, faz despontar essa sobrecarga que, via de regra, recai sobre as mulheres, deixando à vista as rachaduras há muito existentes nas relações de gênero, no trabalho e na família.

Depois de ler Colateral, pode-se dizer que o "novo normal" que no início muitos vislumbravam com a pandemia que afetaria "a todos por igual", é tão somente o velho normal engolido com feijão e aceito como sempre - mas agora com uma dose maior de cinismo, já que não se pode mais alegar que não se percebe certas obviedades desde sempre muito visíveis.


25 de dezembro de 2022




quarta-feira, 28 de abril de 2021

Dia do Livro virou dia do ignorante letrado

Semana passada pipocou em minha bolha virtual que era o dia do livro. Muitas pessoas - basicamente todas elas de esquerda - fazendo loas acríticas a esse objeto, como se fosse qualquer panacéia - o emplasto Brás Cubas que nos tiraria das trevas que atravessamos há meia década. Nada contra livros e quem os lê, eu mesmo sou um ávido leitor, acumulador de livros e tenho três publicados, com um quarto para breve. Porém, um livro é só um livro. Se acaso pode ser tido como o mais importante meio de transmissão de conhecimento intergeracional - pude, graças ao livro, por exemplo, ter acesso direto ao que Descartes escreveu (ainda que meu latim não permitisse uma leitura fluida), sem dependência de uma transmissão boca a boca ao longo do tempo, que acarretaria não só uma dificuldade de acesso às suas ideias, como a deturpação delas nesse telefone sem fio de séculos -, ele é apenas uma das formas de aquisição do conhecimento - imprescindível para pessoas de inteligência mediana, como este escriba, mas longe de ser o principal meio de educação e aprendizagem. Se se bastasse por si, Foucault e Lacan não teriam perdido seu tempo no Colege de France, por exemplo, e o homeschooling deveria ser defendido como alternativa razoável à educação.

Um livro é só um veículo, um monte de papel com letras (ou imagens) dentro. Não torna ninguém nem de esquerda, nem crítico, nem inteligente: Sara Winter já posou com vários livros; Olavo de Carvalho, pelo que li de comentadores, para escrever sobre Gramsci e Aristóteles, teve que ler esses autores; Mainardi assina uma tradução de Ítalo Calvino (o que me faz imaginar que tenha lido o livro); alguém acha que ler algum livro da série "Guia do politicamente incorreto" do que for ajudaria a pessoa a refletir sobre o assunto? Para completar: tenho vários ex-colegas das ciências sociais e filosofia, alguns com doutorados no exterior, capazes de leituras hermenêuticas profundíssimas de marxistas ou de autoras feministas, e incapazes de uma leitura simples da realidade, não indo além de chavões precários (também tive professores universitários assim). 

Um desses chavões é levar a metonímia ao pé da letra, e acreditar que o anti-intelectualismo do fascismo seria um ódio ao objeto livro, olvidando que o mais famoso opositor à escrita (e por consequência, ao livro) foi Sócrates, como aparece em Fédro (275a) - e ninguém acha que Sócrates seria inimigo do conhecimento ou do saber, pelo contrário. 

Parte dessa esquerda, inebriada pelo seu reflexo no espelho (no qual aparecem seus títulos universitários e a lombada dos livros lidos, nem que seja só a orelha), talvez por nunca ter lido Paulo Freire (a direita neofascista fala muito mais do patrono da educação do que a esquerda), muito menos ter sentado frente a frente para uma conversa franca, horizontal, com alguém sem instrução formal, adere fácil a essa retórica simplória, elitista e preconceituosa de apologia do livro, por não acreditar que alguém possa aprender a ler o mundo pela razão dialógica (e não monológica e hierárquica como ela) e ter capacidade crítica que ela, arrotando autores em francês e alemão, adquiriu com dificuldade - quando adquiriu. Eu mesmo era um desses até meus 20 anos, quando fui dar aula de alfabetização para senhoras acima de 60 anos. Depois de me sentir envergonhado pelo meu preconceito, aproveite tudo o que elas me ensinaram (inclusive vocabulário), aprumei os ouvidos, e aprendi mais em conversas com gente que não lê livros (mesmo que letradas) mas consegue ler o mundo, do que o contrário. Depois se questionam como Bolsonaro tem penetração em certas camadas da população (como Lula o tem): talvez porque ele não rechace os iletrados como burros ou inferiores? Esse discurso de "é inteligente quem lê" soa um requento daquele que eu ouvia nos anos 1990, de que nordestino não sabia votar, por isso elegia coronel (como se no sul/sudeste não se fizesse exatamente igual, com famílias donas de seus quinhões nos municípios do interior).

Essa esquerda classe média com formação acadêmica precisa urgentemente entender suas limitações e encontrar seu lugar. Isso não quer dizer que sejam inferiores e nem que não sejam importantes. Porém enquanto esses intelectuais-revolucionários-de-gabinete não reconhecerem seu papel marginal na luta de classes estarão agindo como linha auxiliar da burguesia, dividindo as esquerdas, desarticulando a ação e dando munição ao discurso de extrema-direita, que junto com o inimigo sempre abre um flanco para acolher parcela dos humilhados, estimulando o ressentimento. Essa classe média que se pretende crítica precisa antes de tudo fazer uma autocrítica, compreender seu lugar, sim, de privilégio diante da maioria da população, numa sociedade desigual como a brasileira, e lutar pela democratização dessa condição. Sem isso, o discurso contra os efetivos privilégios do 1% e do 0,1% da população poderá ser facilmente desarticulado como contraditório, incongruente e defesa de interesses mesquinhos. 


28 de abril de 2021


PS: ao buscar uma imagem para ilustrar este texto, achei essa tirinha em inglês. Imaginei que esse preconceito pesado fosse algo mais universal, mas ao buscar sobre o cartunista, descobri que Lucan Levitan é brasileiro. A classe média, mesmo a intelectual, mesmo a artista, ainda tem a casa grande como seu paradigma.

PS2: se alguém se sentiu ofendido pelo título, não me desculpo, mas me explico: considero todo preconceito uma ignorância - e, sim, ela pode ser sanada pelo conhecimento, geralmente um conhecimento concreto do objeto empírico do que move esse preconceito (no caso, o iletrado ou o não leitor).

PS3: Meu próximo livro, Linha de produção/Linha de descartes, sairá em breve pela Editora Urutau. Quando tiver mais detalhes, divulgarei aqui e em minhas redes sociais.