terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Cenário para livros

Desconfio que para projetos audiovisuais - filmes, novelas, comerciais - haja locais de locação consagrados: na dúvida de onde ir, aquele espaço de sempre dá conta com mínimos arranjos. Minha cabeça também tem seu lugar de locação clichê: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou, é mais um livro que me vejo ambientando na casa do Rose e da Nana, pequenos agricultores amigos de meus pais, em Bom Sucesso do Sul. 
É a história se passar em algum lugar mais rural, com alguma presença comunitária mais forte (dizer "com algo urbano" talvez seja exagero), e lá está a casa deles sendo morada dos protagonistas, ao mesmo tempo isolada como é e, num passe de mágica, no meio de um vilarejo, como o livro exige. 
Quando criança gostava de ir lá por causa dos animais: ver os porcos, as vacas e, principalmente, correr atrás das galinhas. Era uma época de dias muito longos, na minha temporalidade infantil, e eu passava quase a tarde inteira - que devia durar o equivalente a umas doze, quinze horas, na minha temporalidade atual - correndo atrás das galinhas, soltas pelas redondezas da casa antiga (curiosamente, nas histórias dos livros é a casa nova que serve como espaço cênico). Elas fugiam por medo daquela criança da cidade chata, e eu, por meu turno, nunca punha as mãos nelas, porque também tinha medo - vai que me bicassem, como o papagaio da minha avó. Uma vez, de leve, encostei em uma, pega e imobilizada pelo Rodrigo, um dos filhos da Nana e do Rose. Já adolescente, adulto jovem, eu gostava de ir lá para ficar na varanda, comendo frutas recém colhidas, tomando chimarrão, olhando o céu desimpedido de construções, e ouvindo causos que a família toda era boa de contar. 
Nas minhas ambientações de livros, o porão da casa faz as vezes do elemento diferente: no livro de Maya, é o Mercado de Momma; em A Caverna, de Saramago, a olaria de Cipriano Algor. Já temi por um cavalo que forçava a porta, em um conto de Borges. Também imaginei ao menos dois Mia Couto ali, mas não precisei do porão: no último que li, Antes do Nascer do Mundo, a casa antiga transformada em paiol se tornou a casa onde surge Marta para os habitantes da Jerusalém perdida nos confins de Moçambique; já em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, a casa principal era de Mariano, enquanto a casa de seu Lauro fez a vez da de Fulano Malta, com suas gaiolas vazias à espera de pássaros que lhe fizessem companhia.
Fora da literatura, de volta ao mundo real, era na casa deles que meu pai queria comer um churrasco, tão logo saísse do hospital - quando ainda tínhamos, ele e eu, pelo menos, esperança de cura, uma semana antes de seu falecimento. A escolha (inconsciente) de imaginar as histórias lidas lá ajuda a entender o porquê do desejo de meu pai: sem cair em extremismos de paraíso na terra (vegano, religioso ou romântico, até porque toda a região foi terrivelmente devastada no seu bioma natural), havia ali qualquer frágil harmonia sob o ritmo da natureza que então ainda se impunha (tinha eletricidade, mas até fins do século passado não havia sinal de televisão), nas galinhas e vacas soltas, não feito totens para ambientalistas urbanos, mas no ciclo de vida que integra humanidade e animais, no guardar sementes para a próxima lavoura, tudo isso costurado nas conversas, nos causos, marcados pelo pitoresco, não pelo moralismo. Cenário excelente para ambientações de livros passados em outro tempo, quando este era mais humano e acolhedor, menos fabril e febril.

31 dezembro de 2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Aliança pelo fascismo

Ao saber do anúncio de que Bolsonaro, seus filhos e alguns capangas criariam um novo partido, acreditei, ingenuamente, de que se tratava de um tiro no pé do presidente apedeuta, que perderia sua já capenga base de apoio no legislativo. Ao ver o símbolo do Aliança Pelo Brasil feito com balas lembrei que se aos Bolsonaros falta capacidade intelectual, seus mentores intelectuais - aqui e além mar - são dos mais competentes no que se propõem.
Numa situação de funcionamento normal da democracia - mesmo precária e de baixa intensidade -, Aliança seria um abraço para o fundo do poço. Como não há nada de normal nos tempos atuais - salvo a cabeça de muitos políticos de esquerda, que agem como se estivéssemos na Suécia dos 30 anos gloriosos -, o novo partido permite alguns vislumbres do seu porquê.
Primeiro, o partido mira 2022. Não necessariamente para vencer as eleições, pode ser também para acabar com elas. A articulação do governo é praticamente inexistente e pouco se tem feito desde o início do ano. O ponto onde a pauta do governo avança - o ultraliberalismo de Guedes -, o faz porque Rodrigo Maia articula e conduz. Uma situação um tanto curiosa: Bolsonaro se mantém graças a Guedes, que se mantém graças a Maia, que está onde está porque tem bons amigos nas grandes empresas, nos bancos, na mídia, no judiciário e na política. No ritmo de ditadura que as reformas ultraliberais seguem, antes do fim do terceiro ano Guedes já terá cumprido seu dever, as elites autointituladas ilustradas acharão Bolsonaro um peso desnecessário - como acharam Eduardo Cunha depois de abrir o "golpimpeachment" contra a Dilma - e a população pouco motivo encontrará para apoiá-lo, uma vez que sua penúria aumentará. Uma maior desarticulação do governo no congresso atravancaria ainda mais as propostas "bolsonaristas raiz" e forneceria a desculpa para o porquê da população não ter visto melhoria em sua vida: o congresso, os políticos que impedem ele de governar. Bolsonaro pode se utilizar do argumento por muito tempo berrado por certa "esquerda Peter Pan" (como eu dizia no Trezenhum), presa em teorias acadêmicas e descolada da realidade complexa: falta vontade política; no caso, vontade ele teve, faltou a política deixar ele agir. Solução: ou a rede de fake news garante uma vitória acachapante nas eleições, ou melhor que elas não aconteçam, para que a nação veja o triunfo da vontade.
Segundo ponto: por ter sido um fenômeno muito recente - começou a ser gestado em 2017, mas ganhou relevância mesmo em 2018 -, o fascismo bolsonarista não se enraizou. Ganhou gás eleitoral, mas falta musculatura, falta o elemento milícia de um partido fascista - conforme ressalta a ciência política clássica. Essa ausência de milícias chegou a me chamar a atenção - a intimidação pré-eleitoral não se manteve tão logo ele venceu o pleito. Por ora, o que tem são ligações com milicianos cariocas, quadrilhas de ruralistas liberadas para agir e o sopro de prepotência para os guardas da esquina darem esculacho em ppp - preto pobre periférico. As leis liberando comercialização e posse de armas visam facilitar a montagem de milícias urbanas. Luis Nassif aponta o partido como articulação dessa violência [http://bit.ly/2pL491E]. Eu tendo a crer que não há necessidade de muita articulação: a violência desarticulada, sem alvo exato, sem muito método tende a ser muito mais eficientes para promover uma sensação de caos e reiterar o discurso de ordem e de necessidade de fechamento do regime. No máximo haja a necessidade de uma milícia de luxo, para ações pontuais em casos muito específicos (como no caso de vereadoras que incomodam o detentor do poder), no resto, pode ser um pau pra todo lado.
Há, ainda, um outro elemento a compor as milícias da Aliança - a religião. A união entre Bolsonaro e PSL se deu porque o primeiro tinha grande projeção nacional e vinha num crescendo, graças a um staff qualificado (Steve Bannon e outros que não sabemos o nome, mas conhecemos o método); enquanto o segundo era um partido fraco - mas era um partido -, que poderia crescer com um candidato forte e aumentar seus lucros - e seu poder. Com poder de barganhar na câmara e sonhando se enraizar como partido de direita - no enorme vácuo que há nessa raia no país -, o PSL passou a querer agir minimamente como partido político quando 2019 começou - e Bolsonaro seguiu agindo como sempre. Sem um conseguir garantir a ascendência sobre o outro, o jeito foi Bolsonaro lançar um partido no qual fosse o homem forte - por mais frouxo que ele seja.
O presidente tem como parte do seu capital político atual, além do "staff made in USA", o controle das instituições estatais, em especial as forças repressoras, (mal) ditas da ordem - por isso também a pressa em se lançar no mercado. O novo partido vai permitir que ele consiga barganhar e se articular com forças paraestatais: milícias, igrejas e o chamado quarto poder, a mídia - em especial Record. É conhecido a ala "Gradiadores do Altar", da Igreja Universal, jovens fanatizados nazistizados marchando para Jesus (o primeiro militarista da história, pelo visto), uma espécie de mistura de SA com Taleban cristão tropical: há, portanto, uma milícia pronta em stand by, apenas esperando o armamento chegar (quero crer). As forças da ordem podem se afinar com tais milícias, em intercâmbios "frutíferos", como no México, com a diferença que aqui as ações estariam baseadas na fé em Cristo e no líder. O que Bispo Macedo pediria em troca da adesão ao novo partido, Bolsonaro pode dar sem mexer com seus próprios interesses. Os atritos viriam no futuro, quando (se) Macedo se sentir poderoso suficiente para a IURD assumir diretamente o poder.
Claro, isso pode não acontecer. Há uma série de fatores que aos cidadãos comuns não tem acesso. Um deles é como estão os acordos entre Estado e crime organizado: o cessar fogo entre polícia e PCC, em 2006, por exemplo, como foi selado? Ou então - pode ser coincidência - quando um político e advogado acusado de ligações com certo setor do crime organizado, ao assumir o ministério da justiça viu uma violenta contraofensiva nos estado do norte e nordeste contra esse grupo ao qual teria prestado serviço indiretamente. Os crimes organizados aceitarão de boa ceder seu território conquistado a duras penas? Ou as articulações entre as diversas igrejas evangélicas, concorrentes da do Bispo Macedo: aceitarão se subordinar ao concorrente? (a igreja católica não mostra poder de reação). Mesmo que dê certo o golpe do bolsonarismo, esses fatores permitem vislumbrar uma série de problemas - os teóricos do nazifascismo sempre reiteram o quanto o regime é autoimplosivo (daí, inclusive, a diferença de um Bolsonaro para um Mourão, o vice-presidente, como o exército, parece ter um mínimo de instinto de sobrevivência).
Por ora, a resistência é tímida, quase inexistente. Alguns formadores de opinião gritam, como o próprio Nassif, assim como o Reinaldo Azevedo, um dos fomentadores da criatura e que se vê cada vez mais prestes a ser engolido por ela. Os políticos agem como se vivêssemos na normalidade democrática, e os avanços fascistas seriam apenas traquinagens do "menino Jair". Por ora, a única liderança de fato é Lula - que ganha legitimidade extra por conta dos seus 580 dias preso injustamente. Ainda assim, Lula é Lula e não deus - e depender de uma pessoa é um risco demasiado.
E se o país implodir? Para as elites, problema algum, uma vez que podem rapidamente levantar acampamento e seguir sua vida normalmente em Miami - os mais ilustrados talvez prefiram Paris. Duro para quem fica. Pior ainda para quem vive nas periferias. Talvez seja hora dos movimentos sociais e das pessoas progressistas e que se opõe ao fascismo começarem a se adaptar aos novos tempos, e agir dentro do que é permitido: tentar reverter a situação com ações políticas e pacíficas, com manifestações de rua e trabalho de base - mas estar preparados para se defender e evitar um massacre, e começar a ter aulas de tiro.

22 de novembro de 2019

domingo, 17 de novembro de 2019

Bacurau e a volta dos que não foram (como vovó já dizia) [Diálogos com o cinema]

Composta em 1973, "Como Vovó Já Dizia", de Raul Seixas, foi censurada pela ditadura militar - digo, movimento de 64, conforme o presidente do STF -, e ganhou a versão conhecida, com quase nada da original, que não os versos "quem não tem colírio usa óculos escuros" e "a serpente está na terra, o programa está no ar". Ainda que a versão consagrada traga uma série de críticas veladas à ditadura militar e à situação do país, fica muito aquém da versão original - inclusive faz sentido porque usar óculos escuro diante dos olhos "manchados com teus raios de luar". Há cerca de dez anos sua filha lançou uma versão eletrônica a partir da gravação do vocal do pai com a letra original:

"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa luz tá muito forte tenho medo de cegar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Os meus olhos tão manchados com teus raios de luar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Eu deixei a vela acesa para a bruxa não voltar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Acendi a luz do dia para a noite não chiar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Já bebi daquela água, quero agora vomitar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Uma vez a gente aceita, duas tem que reclamar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
A serpente está na terra, o programa está no ar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Vim de longe, de outra terra, pra morder teu calcanhar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa noite eu tive um sonho, eu queria me matar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tudo tá na mesma coisa, cada coisa em seu lugar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Com dois galos a galinha não tem tempo de chocar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tanto pé na nossa frente que não sabe como andar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro"

Há ainda uma outra versão que circula na internet, um show ao vivo, com pedaços da letra original e alguns acréscimos:
"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Einstein usa Fitipaldi
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Hitler usa Pelé
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem New York usa São Paulo"

Além de um solo de boca, que pode ser lido tanto com uma ironia à pretensa incompetência artística do artista, como à precariedade em se fazer arte no Brasil dos anos 1970.

Quase meio século depois e a serpente saiu da terra - graças aos programas que estão no ar. O fascismo emerge forte, nascido aparentemente por geração espontânea para boa parte da esquerda e das forças progressistas, que não duvidaram radicalmente do fim da história de Fukuyama, aceitando implicitamente certa irrelevância do presente na história pós queda do muro de Berlin. Agora corremos atrás de entender como tudo isso aconteceu, como chegamos onde estamos tão repentinamente - aparentemente. Parte da esquerda (na qual me incluo) caiu na otimista crença liberal de raiz iluminista de que o bom senso cosmopolita prevaleceria por inércia: questão de tempo para as pessoas se darem conta de que a defesa dos direitos humanos é tão óbvio quanto a circunferência da Terra. Outra parte (ainda muito relevante dentro da academia) prefere seguir negando dados concretos de realidade em favor de fantasias infantis de poderes supra humanos que ocultam sua real impotência: a incapacidade de aceitar pequenos avanços como vitórias, seu "revolução ou deixa tudo como está", que se não falam abertamente, está nas entrelinhas, nada mais é que incapacidade de enxergar a fome real do outro (e seria possível "enxergar" o que é a fome graças à empatia, não é necessário ver alguém morrendo de fome ao vivo, uma experiência que não recomendo). Os revolucionários de gabinete que ontem gritavam contra a pretensa passividade do povo e as leituras erradas d'O Capital, hoje repetem as mesmas querelas [como a atual, iniciada por trotskystas indignados pela revista Jacobin ter dado voz a um intelectual afim ao stalinismo falar da situação atual do país], e amanhã serão os primeiros a fugir do país, ressentidos por não terem sido ouvidos. Dez anos atrás eu ironizava essa esquerda com o "Troféu Peter Pan de Resistência", no Trezenhum. Humor sem graça. No mesmo blogue, ridicularizava alunos que abraçavam polianamente pressupostos nazistas, assim como seitas evangélicas reacionárias e grupelhos abertamente fascistas que brotavam na Unicamp: minha crença no bom senso não me permitia imaginar que algum dia ganhariam não apenas relevância como o poder. Eu vi a bruxa e desacreditei: como tantos, deixei a vela se apagar.

**

E cá estamos nós, 2019, lambendo as feridas e tentando achar linhas de fuga para um devir menos aterrorizante, mas ainda temerosos de enfrentar a noite, o escuro - herança iluminista que achou que o mundo poderia viver num dia eterno, e que o capitalismo tem tentado tornar realidade em seu expediente 24/7 (eu mesmo escrevo este texto já passado da meia noite).
Kleber Mendonça é um desses artistas argutos e que tem lado, cuja obra não apresenta soluções, mas escancara problemas e nos permite elaborar melhor possíveis resistências e contraofensivas - seu senso de oportunidade está em descortinar os mecanismos de poder e dominação e não em tecer loas acríticas ao poder, cada vez mais confundido com o fascismo, como outro cineasta brasileiro, que agora se diz arrependido, por não ter lucrado tudo o que esperava.
Talvez um primeiro alerta cinematográfico para o fato da serpente do fascismo estar apenas adormecida tenha sido dado por Stanley Kubrick, em seu "Dr. Fantástico ou como aprendi a parar de me preocupar e passei a amar a bomba": a integração tranquila de oficiais nazistas nas altas esferas da inteligência estadunidense só poderia ter acontecido se já houvesse algum tipo de afinidade com o regime derrotado em 1945 [assim como nossa democracia, que aceita Delfim Netto e Paulo Guedes como se não fossem símbolos de propostas autoritárias e excludentes de sociedade, e ainda temos a pachorra de nos surpreender com seus "Heil Hitler" bananeiro-tropical]. João Bernardo comenta que não apenas o embrião das milícias fascistas é "made in USA", com as empresas de "segurança privada empresarial", contratadas para agredir trabalhadores, como a distância do liberalismo para o nazifascismo que hoje é consagrado nas ciências humanas, é um projeto de reescrita da história para tentar escamotear o que de fato se passou e as muitas afinidades entre o liberalismo e o totalistarismo - Hannah Arendt seria uma das mais proeminentes vozes dessa vertente. Porém, por muito tempo seguimos achando que o nazifascismo era apenas espectro de um mundo que não existe mais, ideia reforçada pelos filmes hollywoodianos que pintam Hitler como a besta fera da antipatia e grosseria - exatamente o oposto do carisma contagiante retratado por Leni Riefenstahl em "O Triunfo da Vontade", de 1935.
Voltemos ao Brasil de 2019, ou melhor, de daqui a alguns anos, retratado em Bacurau, pequena localidade do Sertão de Pernambuco - estado de tanta história de resistências e guerras. Essa dupla indeterminação - "sertão" e "daqui a alguns anos" - não é fator menor na leitura da realidade que o filme permite.

O sertão é tido, geralmente, como um lugar ermo e perdido também no tempo, na história, no espaço: um território de reserva, para ser utilizado em algum futuro (daqui a alguns anos), quando necessário ampliar fronteira agrícola ou qualquer outro projeto de indução econômica-capitalista. Antes desses momentos de "avanço", de "interiorização", é dado como um lugar vazio, que só desponta ao "país real" em tempos de crise - catástrofes naturais, como secas, ou fanáticos religiosos brotados da pobreza e da violência do estado, como Antônio Conselheiro e Monge José Maria. O sertanejo - antes de tudo um forte, dizia Euclides da Cunha - é antes de tudo um não cidadão - ou deveria ser, uma vez que deixou tal condição graças às políticas sociais dos anos petistas, coisas simples e de baixo custo, como Bolsa Família e Programa de Cisternas (por sinal, uma delas aparece no filme). Essa inserção do sertão no mapa do poder, não no modo habitual, como um antro de atraso a ser domesticado, ainda que não completamente inserido na produção de mais-valia, foi suficiente para gerar revoltas do "Brasil do sul", de grileiros de toda espécie (de terras e de capital político) e das altas esferas burocráticas do estado, como a do judiciário - não por acaso, um dos "caubóis" contratados pelos estadunidenses é funcionário do judiciário.
Bacurau é síntese do sertão: mal está no mapa, e pode ser riscada dele, com aval do poder, sem fazer falta alguma ao país.

O "daqui a alguns anos" em que se passa a história é um futuro indefinido que num primeiro momento deixa o espectador perdido, reforçado pelo início tosco do próprio filme: será uma obra sobre uma distopia futura, meio século adiante, em que o sertão, esse lugar do atraso, congelado no tempo, ainda se vale de tecnologia da segunda década do século XXI? Não tarda para notarmos que esse futuro só não é presente por questão de detalhes - que as elites, bem representadas nos governos que tem assumido o poder nos países latino-americanos pela via golpista, militar ou judiciária, estão tentando resolver. O detalhe óbvio que essas elites não são capazes de compreender, deslumbradas consigo própria, enxergando o Big Ben na torre da matriz da cidade, a estátua da liberdade original em porta de lojas de departamentos de cidades caipiras e o skyline novaiorquino na barafunda arquitetônica paulistana (pastiches de modas europeias com toques de modernismo tropical que ignora o que é a vida nos trópicos): não são brancos - nunca serão. A herança grega é exclusividade europeia - não importa que a Igreja Universal tenha suas colunas dóricas -, e a tal tradição judaico cristã só é verdadeira enquanto nos países ocidentais - Israel, Europa Ocidental e Estados Unidos. Jeanine Añez consegue ser, no máximo, uma mexicana pálida empapuçada de maquiagem; Bolsonaro e seu séquito - Bispo Macedo, Malafaia, Dom Orani - são apenas jumentos que podem ser descartados tão logo percam a utilidade. E por não serem brancos, por não serem ocidentais de verdade, são outras espécies de humanos, um degrau abaixo na hierarquia fascista do mundo.
Falta pouco para esse "daqui a alguns anos" ser presente, um tempo em que as pessoas, tocadas pela questão ambiental e buscando saídas saudáveis para suas frustrações - em especial a de serem losers numa sociedade pretensamente de winners  -, que não via massacres de seus colegas e compatriotas estadunidenses, se dediquem a safáris humanos. Primeiro, um presidente estadunidense que retome a tradição europeia de se chocar com violações gritantes dos direitos humanos dentro do seu território, e forçar sua externalização. Como foi feito com trabalho escravo - legal na África até 1960 -, como é feito com pesquisas científicas usando cobaias humanas, proibidas conforme o código de ética dos países centrais, mas realizadas tranquilamente no Brasil e outros países periféricos; como é feito com o tráfico de órgãos (retratado no filme "Coisas belas e sujas", de Stephen Frears). O fim dos safáris de "mexicanos" no Texas parece exigir antes algum lugar onde eles possam acontecer sem problemas - Brasil, Bolívia, Cambodja, Uganda, Moçambique, África do Sul... O Rio de janeiro, por exemplo, mostra um grande potencial para esse tipo de "turismo de aventura": suas favelas, seus morros já tem todo o apelo de anos de divulgação internacional; [bailes funks na periferia de São Paulo talvez possam até despontar antes, além de ter a vantagem de poder matar vários gastando poucas balas, e ainda ser elogiado pelo governador, quem sabe condecorado]. O problema, por ora, é garantir a segurança aos turistas, porque há uma parte da criminalidade que ainda não coadunou o suficiente com o poder na divisão do domínio do território e suas populações. Mas isso é algo que tem se buscado uma solução, via governos comprometidos com milícias, milicianos, traficantes de drogas e paramiliatres - além, é claro, dos comprometidos com lavadores de dinheiro de toda ordem.
Enquanto não se põe ordem nas áreas propícias para safári humano, o que resta é acompanhar à distância, estilo reality shows, a câmera seguindo qualquer policial fascista transformado em um Capitão Nascimento - realizando o fetiche de parte das elites brasileiras -, estimulado por apresentadores de tevê a dar esculacho em um zé ninguém, desarmado e desprotegido, por ser pobre preto e periférico - até o momento da consagração, o assassinato de estado de alguém cuja vida não vale. Nesse ápice, nós, que não temos Hitler, veremos um de nossos líderes sair do helicóptero a comemorar, dando soco no ar como Pelé. Em casa ou acelerando seus potentes carros, os cidadãos de bem comemoram.


17 de novembro de 2019 [com complementos e título (mesmo que péssimo) dia 02 de dezembro]

ps: ainda pretendo escrever um texto sobre outro aspecto levantado pelo filme.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Venezuela: um país em colapso.

Por falta de remédios, hospitais vazios -
como se as pessoas tivessem desistido de ficar doentes.
No início de setembro, Gilberto Maringoni, graças a um crowdfunding do DCM, foi até Caracas, conferir in loco a situação da Venezuela [http://bit.ly/31GZf2J]. O que ele descreve em seus artigos é um país em crise. "Se em Caracas está bem, o resto do país pode estar explodindo, que eles não ligam": ouvi isso de um grupo de venezuelanos, e me lembrei ao ler os textos do professor da UFABC. Relativamente ao resto do país, a crise em Caracas é “estar bem”.
Estive na Venezuela no mesmo período que ele. Fui pelo projeto Caminhos de Solidariedade, da CNBB, por trabalhar no Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM). Estive em Ciudad Guayana e Ciudad Bolívar, no estado de Bolívar; e em Tucupita, no estado de Delta Amacuro. O que presenciei não foi um país em crise, foi um país em colapso.
No trajeto entre a fronteira com o Brasil, em Pacaraima, e Ciudad Guayana, quinze postos de fiscalização. Em alguns pedem documentos, em outros perguntam de onde viemos, para onde vamos; outros apenas observam atentamente dentro do carro. Na grande maioria das barreiras os agentes estatais usam fuzil AK-47, em poucos se restringem a pistolas. Isso reforça a impressão que tenho das leituras que faço: é guerra.
O país está em guerra - e não é civil. E é a população, claro, quem mais sofre as consequências dessa situação. Onde estive falta tudo, falta o básico.
O país detém as maiores reservas petrolíferas do mundo, mas falta gasolina em várias regiões - no caminho, estado de Amazonas, várias pessoas vem para o Brasil encher o tanque a R$ 5,00 o litro, valor que compraria 25.000 litros na Venezuela (1 bolívar o litro, 5.000 bolívares o real). Papel higiênico ou guardanapo, são raros os lugares que tem - sequer no palácio episcopal ou em shopping center -; e quando há, é porque alguém trouxe do exterior (admito, na casa paroquial de um padre estadunidense, roubei umas seis folhas de guardanapo, que me foram de grande utilidade na viagem). Parece anedótico, mas é grave. Não há papel para se limpar, haverá nas escolas? Não fomos conferir, por ser período de férias, porém o fato do último ano letivo ter tido apenas 50 dias efetivos de aula sinaliza o tamanho do caos - e as consequências para o futuro do país: é um projeto de destruição de longo prazo. Pior ainda quando ficamos sabemos que muitos pais vêem isso como positivo em alguma medida: sem aula, não precisam acordar cedo, e criança dormindo não reclama de fome o tempo todo (ouvir relatos como esse chocam, angustiam, comovem; deparar frente a frente com uma criança moribunda de fome é algo que ainda não consegui elaborar: adjetivos não fazem sentido). Esse foi um dos casos que me fez lembrar do romance Meio sol amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Sim, estive em uma área de guerra.
O salário mínimo é de dois dólares (quarenta mil bolívares), uma cartela com trinta ovos custa quatro dólares. O quilo de carne, cinco. Não vi mercados nas cidades que visitamos: grandes lojas fecharam e a venda de comida é feita em feiras, nas ruas ou improvisado na portas das casas - geralmente farinha para arepa e artigos importados do Brasil, farinha, óleo, bolacha. Mesmo nos locais "abastados" onde fomos recebidos rala-se os frios para fazer renderem mais. Economia de guerra.
Logo no primeiro dia, precisei de um relaxante muscular, por conta da viagem, e a guia que nos levava por Ciudad Guayana fazia mil ligações para conseguir um, sabe-se lá a que preço, em um esquema com uma enfermeira de uma clínica particular - por sorte, ainda que avisado tarde, uma das pessoas que viajou comigo avisou que tinha um. Num hospital oncológico que visitamos o médico comenta: a Venezuela tem 60 a 70% do medicamento para câncer de que necessita. O que faz com que os médicos tenham que escolher que paciente tentarão curar - é perverso com os pacientes tanto quanto com os médicos. Num hospital geral, médicos há - geralmente recém formados ou velhos -, contudo, não há remédios ou alimentação: o acompanhante recebe a receita e parte em busca do dinheiro para comprar comida e remédio, há dias que têm de escolher qual comprarão. Assim, casos simples, em que a internação duraria três dias, levam dez - quando não levam óbito. Diante desse quadro, muitas pessoas preferem morrer em casa: menos risco de contrair uma infecção - quem sabe um milagre não os cure? Um padre comenta: em sua paróquia as exéquias ocorriam uma vez por semana, passaram a ser diárias e já chegaram a vinte numa semana. "As pessoas estão fracas, desnutridas, qualquer infecção pode ser mortal". Biafra é aqui.
Os subsídios do governo - um dólar por semana, um arremedo de cesta básica e energia elétrica e água de graça (onde não há crise hídrica, o outro grupo do projeto, que visitou outras cidades, tomava banho com água do ar condicionado) - não são suficientes para garantir a sobrevivência - nem a permanência da população. Decorre disso que cerca de quatro milhões de venezuelanos, aproximadamente treze por cento da população, ter saído do país em três anos (seria como se a região sul do Brasil tivesse emigrado desde o golpe na Dilma, contra a democracia), e outro tanto ter ido para a região de Las Claritas, a região das minas de ouro, que um padre definiu como o "inferno na Terra", onde as pessoas vão na esperança de conseguirem fazer uma reserva para retomar a vida e acabam desumanizadas - e pobres. Nas cidades outrora pujantes, como Ciudad Guayana, muitas casas na periferia com a inscrição “CVD” - Se vende. Se vende, mas ninguém compra. Falta dinheiro, mas faltam também compradores. Nas residências em que ainda tem gente morando, é comum estarem habitadas apenas por idosos, ou por idosos e crianças, uma vez que os adultos em idade laboral saíram tentar a sobrevivência. Inclusive, essa a principal fonte de renda dos venezuelanos que conversamos, inclusive médicos: algum parente que mora fora e envia dinheiro. Um dos resultados mais imediatos e menos comentados: a depressão é uma constante - para quem fica como para quem parte.
Diante de tal estado de calamidade, não surpreende que Maduro seja praticamente uma unanimidade - ouvi apenas um homem, um chavista convicto, defender o presidente. Que não lhe botem a culpa - não toda - pela situação que estão vivenciando, a ele fica o ônus de não estar conseguindo dar nenhuma solução satisfatória - afinal, é ele quem ocupa o Palácio Miraflores. Pior, tentando mimetizar o estilo personalista de Chávez, porém sem o mesmo carisma e sem o mesmo contexto, o excesso de propaganda com seu rosto estampado, várias em locais inapropriados - como numa praça de pedágio ou no corredor de um hospital decrépito -, ajudam a criar uma antipatia extra. O que chama a atenção é que ele ainda tem legitimidade por ser o presidente da República, ninguém o questiona quanto a isso. Guaidó, tão alardeado por nosso presidente e por nossa mídia, é um nada: ouvi seu nome uma vez, de um taxista anti chavista radical, que disse que tudo na Venezuela piorou desde que Chávez assumiu, não houve nada de bom em vinte anos; posso creditar ter sido citado indiretamente outras duas vezes, por pessoas que falaram que tiveram esperança no início do ano. Fora isso, é um zero. José de Abreu teve mais respaldo interno quando se autodeclarou presidente do Brasil.
E se Maduro é tido por inepto, a oposição não suscita qualquer ânimo, mesmo entre os ferrenhos opositores do atual presidente: as críticas mais elaboradas dizem que não tem nenhum projeto de país, apenas desejo de poder. Em geral, as pessoas apenas lamentam que é mais do mesmo, são todos corruptos. A única vez que ouvi uma menção positiva (ou próximo a isso) a um grupo opositor, foi em uma rádio católica, acerca de uma dissidência de esquerda do chavismo, o Marea Socialista, ainda assim, muito rapidamente, e sem grande ânimo. Diante desse quadro, Maduro acaba sendo tolerado por completa falta de opção.
Ao cabo, à população resta o desalento, disfarçado com uma esperança vaga, uma esperança rasa, sem qualquer ancoragem na realidade: um desejo de dias melhores, porque como está não é possível suportar muito tempo mais; uma esperança posta num futuro indefinido, que evita criar expectativas ou prazos minimamente palpáveis, para não se deparar com mais uma decepção. No quotidiano de fome e carências, a vida que se arrasta em ritmo de morte, buscando uma precária sobreviência em uma guerra não declarada - mas não por isso menos devastadora.


22 de outubro de 2019



quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Vai pagar imposto!

Estou descendo a rua Itapeva, na Bela Vista, quando vejo um homem com um mala esbravejando contra um motorista ausente (imagino ter passado em uma poça e molhado o homem). Xinga alto e volta a xingar. Sobe alguns passos e vai até a esquina - onde, presumo, o motorista virou - e xinga mais. A cena é longa, mas o repertório é curto: os impropérios repetidos e repetitivos versam basicamente sobre o desejo de coito, a mãe do motorista, o ânus dela e o do próprio motorista. O homem volta a descer a rua, sempre xingando. Para poucos passos adiante e retorna novamente à esquina, quando a raiva acumulada e mal extravasada parece ter levado a um esforço intelectual incomum e ele pode, finalmente, esbravejar contra o espectro do motorista um vitupério definitivo: "vai pagar imposto, seu cuzão filho da puta!", e pôde seguir, então, seu trajeto sem necessidade de repetir os xingamentos em voz alta.
"Vai pagar imposto", foi esse o xingamento. Não foi desejar que batesse o carro, que tivesse o veículo furtado, a carteira apreendida por pontos, não foi um desejo de que o motorista pagasse uma multa, uma infração, foi o de que ele pagasse imposto, condição básica para a existência e funcionamento do Estado e possibilidade de vida em sociedade - isso enquanto não houver uma revolução que desabroche o novo que até agora somos incapazes de imaginar. Sei que a cena era excessiva, mas o pensamento não é isolado - e isso mostra o quanto as forças progressistas (incluídas as à direita) não souberam reagir aos ataques neoliberais e sequer acordaram para o quão defasados estamos na disputa ideológica.
Afinal, foi uma geração, 25 anos, em que os impostos foram apresentados como os grandes vilões da sociedade e das pessoas, que são roubadas por uma casta de parasitas - os políticos -, sem chance de reação. Era notícia diária, várias vezes ao dia, repetida de hora em hora: o quanto impostos são nefastos, o quanto o Brasil é caro por causa dos impostos, o quanto imposto tira a liberdade das pessoas usarem seu próprio dinheiro conforme desejarem - nem o pai castrador era tão castrador quanto o estado que cobra imposto de renda. Pior: diante dessa avalanche toda, as esquerdas foram incapazes de articular um contradiscurso minimamente combativo, quando não aderiram acriticamente às implicações desse mantra, como é o caso do PT, com Lula, Dilma, Haddad, Pimentel e outros, ou de Ciro Gomes (que, na minha visão, é progressista, mas não de esquerda). Sim, houve propostas sobre a questão tributária, projetos muito bem elaborados a partir de análises críticas robustas - uma recém apresentada na Câmara dos Deputados. Porém, se questões e abordagens técnicas são relevantes, elas são incapazes de mobilizar a opinião pública numa sociedade de massas - ainda mais num país de ensino (formal e não formal) bastante precário. Ouso dizer que a esquerda, deslumbrada consigo própria em suas densas elaborações teóricas sobre o tema foi incompetente em ouvir o discurso neoliberal em toda sua profundidade e incapaz de escutar a população e como ela recebe e processa esse discurso.
As pessoas simplesmente não sabem para que servem os impostos. Não adianta, como fez Gregório Duvivier em um programa muito elogiado na minha bolha classe média demi-crítica, explicar que os ricos pagam menos impostos, porque isso apenas reitera que é preciso, então, baixar os impostos de todos. A apresentação do estado pela mídia praticamente se confunde com o exercício do poder político, sendo que os políticos - quase sinônimos de corrupção - são pagos com o dinheiro dos impostos. Fechando o silogismo simplório num círculo completo, os impostos parasitam a sociedade para pagar uma classe de parasitas da sociedade. As pessoas não conseguem perceber que professores, médicos, policiais são pagos com dinheiro dos impostos; não faz sentido a elas que imposto ajude na redistribuição de renda; a classe média é tapada suficiente para achar que porque paga plano de saúde "sustenta" o SUS sem dele se utilizar, sem perceber os muitos benefícios indiretos, dentre eles o de que seu plano de saúde só tem o valor módico que tem hoje porque seus clientes podem recorrer ao SUS se a mensalidade for extorsiva por serviços de qualidade precária.
A ideia de que o imposto é um roubo é parte de uma longa cadeia ideológica que inclui o estado incompetente, o setor privado eficiente, o político corrupto. Foi por onde se adubou o terreno para antipolíticos da pior espécie vingarem: Doria Jr, Amoedo, Flávio Rocha, Huck tem enorme potencial porque seu discurso foi naturalizado e soa o óbvio, por mais falacioso que seja.
Reitero o que falei há tempos: ou a esquerda complexifica seu discurso, ou não será capaz de vencer essa direita, nem nas urnas, nem fora delas. Mais: precisa desde já fazer frente ao discurso hegemônico, se não quiser ficar refém do capital e de seus porta vozes midiáticos, se quiser reverter o xingamento de "vai pagar imposto". Qualquer vislumbre reformista precisa, necessariamente, assumir a bandeira de defesa de impostos e problematizar a partir do que temos e do que precisamos para nos tornarmos um país mais justo e menos desigual. Vamos pagar imposto!

09 de outubro de 2019

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Casa nova (Farewell transmission)

Ao abrir a porta do apartamento, às sete horas de uma noite chuvosa, me sinto subitamente envelhecido. Um apartamento vazio com alguns pequenos consertos para fazer, as paredes por pintar, apagar as marcas do tempo que sublinhavam os quadros até ontem pendurados. Pela janela da sala há o escuro das árvores - sentirei falta de ver o skyline da Paulista. "Long dark blue". Lembro de Farewell Transmission, de Songs: Ohia. É este, digo ao Vini. E a mim mesmo me pergunto o que pensará o desconhecido que cruzar essa soleira depois de amanhã, para a pesquisa do IBGE ou das memórias do que era o mundo três gerações atrás, na virada do século XXI. Um velho melancólico em meio a livros, três móveis e dois gatos. Talvez eu devesse encher a casa de cacarecos, como a disfarçar a condição que nos habita? Vini inspeciona os cômodos, me avisa da fiação estranha dentro do armário, acha feio o guarda-roupa deixado para trás. Sinto que ali estou guarnecido como alguém que abre um guarda chuva para se proteger de um tempestade de granizo. "Foi tão fácil conseguir e então eu me pergunto e daí?" Estranho quem me parabeniza por ter herança, ainda mais por gastá-la assim, confrontado pelo princípio de realidade que não me permite sequer cogitar um apartamento classe média dos anos 1990 - janelas incrustadas no concreto cheio de quinas, o vidro escuro nas sacadas, as pastilhas na fachada, um peso que não descarta esperança. Com a idade do Vini eu ouvia vinil do Raul Seixas no rádio National de meu pai, usando uma raquete de tênis como guitarra e o esfregão como microfone. Isso foi ontem pela manhã, enquanto Cecília fazia o almoço. Agora preciso me preocupar em pintar as paredes sem manchar o chão, orçamentos e prazos - e viagem para a Venezuela, a trabalho, no meio disso tudo. Tenho um mês para me acomodar e começar a me irmanar do apartamento, sem mais a sensação de provisório que até então me acompanhava cada mudança - eu próprio me sentindo alguém em plena mudança (me sentindo provisório?). Ou seja, posso fazer isso com calma, sem o receio do efêmero - me iludo. E agora? "Stop/ A vida parou/ ou foi o automóvel?". A rua é temporariamente sem saída - até que o prédio vizinho conserte ou caia de vez. Nas manhãs, haverá sabiás e outros pássaros cantando, e o grito das crianças no recreio da escola - como na minha infância, a escola Dona Frida. Me vejo em reminiscências, confirmo meu envelhecimento repentino; leite derramado: não mais um jovem de quase quarenta anos, mas um idoso de quase quarenta anos - que não transmitiu a nenhuma criatura o legado de nossa miséria, não nos termos bíblicos, como a reafirmar a descrença na vida eterna e a adesão ao catastrofismo ecológico, mesmo sem tanta convicção (insisto em ter esperança e achar que melhoraremos, que o mundo de amanhã será melhor que o de hoje). "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?". Dei o primeiro passo: tributável. Do resto ainda me esquivo. Do contrário disso também. Busco um fio de cabelo branco, para confirmar minha nova condição. Encontro, como sempre, uma espinha a brotar, que espremo com o prazer despreocupado das admoestações da mãe, de que vou ficar com a cara cheia de marcas, quando adulto - já sou adulto e ainda me faltam as marcas. Faço algumas medições, para as redes nas janelas, para os móveis que farei - uma estante de livro, uma escrivaninha, algo mais? A chuva que goteja fora me lembra de quando mudei para São Paulo, 30 de janeiro de 2012, havia um quê melancólico na garoa daquela noite - e uma nova vida iniciando. Deixamos o apartamento, Vini feliz por conhecer minha nova casa primeiro - finalmente algo que ele fez antes da mãe! Há tanto por fazer, uma porção de coisas grandes para conquistar, mesmo a um velho melancólico, um grandessíssimo idiota, ridículo, limitado, que insiste em palpitar sobre mil assuntos, só para dizer que não entende de nada, e assim prefere a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Ao fechar a porta, em minha mente toca Mogwai, Yes! I am a long way from home.

05 de setembro de 2019

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Barbárie venezuelana: onde a civilização ocidental pratica tortura em larga escala

O texto de Mario Vargas Llosa sobre a Venezuela, "De volta à barbárie", no El País, me traz à lembrança o "Por qué no te callas" do rei Juan Carlos a Hugo Chávez, em 2007. Talvez tenha sido o grito da velha civilização contra a nova barbárie: de um lado o rei de um império decaído, que construiu seu breve esplendor com sangue e sofrimento, à base do saque, do assassinato, da pilhagem e da destruição, e que no século XX, restrito às próprias fronteiras, passou a fazer do próprio país um inferno/terra arrasada que antes fizera além-mar; do outro, um criollo rebelde que passado duzentos anos ainda acreditava na independência, na autonomia e era capaz de reivindicar a autodeterminação dos povos, na crença ingênua que uma terra de índios, mestiços e negros possa um dia ter algo digno de ser chamado de povo pelas elites civilizadas da Europa e Estados Unidos. Quem sabe essa tenha sido a senha para que a barbárie imperasse, deixando claro que a civilização ocidental nada mais é que um discurso sem fundo de verdade, a hipocrisia mais calhorda para satisfação narcísica de gente incapaz de autorreflexão.
Lembro da comemoração eufórica com a grosseria real por parte da mídia (brasileira e internacional) e dos opositores do governante de turno da Venezuela. Fosse dito por um outro país latino americano e a interpelação poderia entrar em discussão, com base em disputas seculares e atuais entre estados irmãos; vindo de quem veio, nada era aceitável que não a condenação veemente desse restolho de imperialismo e colonialismo, mancha vergonhosa do passado espanhol e cicatriz indelével nas terras americanas. Mas virou um mantra para as elites “cosmopolitas” (Jill Lepore permite uma outra interpretação sobre o que seria o cosmopolita) e seus asseclas, um troféu dos ressentidos com a ascensão dos miseráveis à condição de pobres e aspirantes a direitos, a lembrar que todos são humanos e tem direito à dignidade - basicamente aquilo que um certo senhor considerado bastião da cultura ocidental dizia há dois milênios.
O artigo de Vargas Llosa mesmo é desprezível, sua tese beira que o projeto bolivariano era de regresso à barbárie para lucro de uma pequena elite no poder, consequência natural do socialismo ou qualquer coisa que agrida a ordem natural do mundo do capital. Como a Espanha do veículo em que foi publicado, Vargas Llosa se sustenta por um título pretérito que nada garante do futuro - o país, pelo menos, graças a seu povo, busca se reinventar e está aberto a devires. No fundo, o peruano deve lamentar que o confronto entre Juan Carlos e Chávez tenha parado numa frase e não na invasão das esquadras espanholas, ou melhor, marines estadunidenses, e ignora que as guerras hoje possuem métodos muito mais sofisticados que os de Francisco Pizarro. Anos numa guerra não aberta - mas de efeitos concretos - jogaram a Venezuela em uma enorme crise, com mais de 30% de desemprego (vale lembrar que no Brasil que evitou a barbárie, graças a Temer e Bolsonaro, segundo Vargas Llosa, 40% da população está desempregada ou subempregada) após queda econômica de 56% em oito anos - um país que no seu apogeu, em 2008, ainda não havia conseguido livrar 10% da população da miséria. Mas a memória de Vargas Llosa afirma peremptoriamente que bons eram os tempos antigos, onde peruanos iam fazer negócios no país - quais peruanos e às custas de quantos venezuelanos, ele não explica.
A retórica feita de "fatos etéreos", de afirmações imprecisas, ocultando números e salientando adjetivos, atestam que o escritor usa do peso de seu Nobel para espalhar desinformação. Isso me lembra da minha velha máxima sobre a cobertura da situação venezuelana, desde que Chávez assumiu: sei que um lado oculta, mente e distorce deliberadamente, desavergonhadamente. Do governo, tenta combater a essa guerra híbrida como pode, e é obrigado, seguidamente, a usar das mesmas armas, o que faz com que provavelmente acabe incorrendo em omissões graves, no mínimo (se assumisse que dado aspecto noticiado por El País e outras mídias globais é verdadeiro poderia dar a deixa para uma campanha de que tudo o que está ali é verdadeiro, o que definitivamente não é, vide as coberturas do golpe de 2002 ou do atentado em 2018). Não que a situação venezuelana não seja dramática, ou não teríamos tantas pessoas deixando sua pátria em tão pouco tempo. A questão é que se os números dão alguma noção, mas não são capazes de descrever o comensal do dia a dia das pessoas comuns, a mídia internacional só verá tragédia e caos, e o governo tenta, como pode, evitar que a profecia do fim da experiência bolivariana se auto realize.
Sei que apenas uma semana em terras venezuelanas, em missão da Igreja Católica - vou pelo Serviço Pastoral dos Migrantes, onde milito há anos -, provavelmente passando por regiões das mais precárias do país em frangalhos, não me dará grande panorama do país - minha esperança é que ao menos eu tenha alguma referência para perceber o que é verdade no meio de tantas mentiras de todos os lados sobre a vida na Venezuela.

03 de setembro

sábado, 31 de agosto de 2019

Talvez a vitória de Bolsonaro em 2018 tenha sido a melhor opção

Apesar de todas as críticas à psicologia do ego de Erich Fromm, admiro sua apresentação da ideia de liberdade, em O coração do homem: foi um marco na forma como passei a refletir sobre problemas que surgem. Grosso modo, diz ele que o último passo na tomada de um ato pouco tem de livre: há uma série de engajamentos prévios que tornam a desistência do ato, o passo derradeiro, de um custo tão elevado a ponto de ser difícil ao sujeito mudar de rota, uma vez que seria negar tudo o que foi feito até então e que levou até àquele ponto - contudo, o mais comum é nos atermos a esse último instante e acreditar que ali se tomou toda a decisão, que ali ainda havia plena liberdade de fazer ou não.
Fromm me veio à mente com o tal "dia do fogo", organizado e posto em prática por criminosos disfarçados de fazendeiros e ruralistas, apoiadores de Bolsonaro na Amazônia, com as reações grotescas do mandatário da nação, e com os alertas de "eu avisei" dos que mantiveram um mínimo de bom senso ano passado - o que exclui pretensos isentões do segundo turno.
O que ficou evidente para mim neste mês de agosto foi que, diante do que tínhamos em setembro de 2018, a vitória de Bolsonaro pode ter sido a melhor alternativa - claro, isso vai depender de como as esquerdas e as forças progressistas estão se organizando e vão se organizar. O ponto principal é que o clima de ódio provocado pelo consórcio mídia-PSDB-judiciário-ministério público e o estado de anomia no qual o país foi atirado pelo farsesco impeachment de Dilma foram instrumentalizados pelo ex-capitão e seus sicários, de modo que ganharam demasiado poder. Poder para além das urnas - e é o poder do estado que tem nas mãos que pode fazer com que desidratem.
Uma vitória de Haddad no segundo turno, além da hostilidade do congresso, teria que lidar ainda com oposição cerrada da mídia e constantes testes de autoridade por vários setores da sociedade, de organizadores do dia do fogo e milicianos a juízes e procuradores. Isso potencializado por crise econômica interna, boicote do empresariado, lawfare e crise comercial internacional. Dificilmente um candidato progressista - estou a incluir Ciro aqui, mesmo sendo de centro-direita - conseguiria encaminhar uma solução a todas essas crises: mais provável que o governo fosse uma tentativa de diminuir o caos estimulado por atores sociais importantes, com a mídia, o STF, Bolsonaro, sua família e suas milícias aumentando cada vez mais o tom do discurso e dos atos.
O "dia do fogo", arrisco dizer, aconteceria sim ou sim, fosse Bolsonaro ou Haddad o presidente. Se com o carioca aconteceu com beneplácito do líder, com Haddad as chances eram de que acontecesse para afrontar o presidente - eventuais prisões que impedissem o que foi feito na Amazônia seriam automaticamente vendidos pela mídia como "venezuelização" e arroubos autoritários, custariam muito de um sofrido apoio interno que ele pudesse ter.
A #VazaJato não teria a mesma repercussão e seria mais facilmente apresentada como "tentativa dos políticos corruptos do PT de impedir os arautos dos cidadãos de bens combaterem a corrupção dos políticos (do PT)". Qualquer sinalização de desmantelar a quadrilha que atua desde a República de Curitiba iria na mesma linha - e às favas o direito, a constituição, a humanidade. Seguiria o lawfare contra qualquer pessoa que pensasse diferente de Moro, Dallagnol e seus serviçais.
Esse clima de caos e desgoverno - ou de difícil governo - permitiria ao fascismo tupiniquim crescer sem oposição - talvez alguma amarra nos governos estaduais, uma vez que poderiam ser cobrados, mas governo estadual dificilmente tem o mesmo poder de ser teto de vidro que o federal. Bolsonaro pai poderia cometer seus festival de disparates sem nenhuma cobrança pela liturgia do cargo, já que não teria cargo oficial nenhum, nem nenhum confronto com a realidade, já que não possuiria poder efetivo nenhum. Seu poder seria paralelo, apoiado e estimulado por parte da mídia e do judiciário (sabemos agora, pela Lava Jato como um todo), no intuito de enfraquecer o PT e ainda crente de que conseguiriam domá-lo depois - uma espécie de Guaidó com mais respaldo. Isso permitiria um maior enraizamento das bravatas e do ideário fascista - com a complacência dos donos do poder -, e tenderia a dar uma enorme força e resiliência a esse espectro político em 2022.
Claro, o fato de Bolsonaro queimar parte do capital político da extrema-direita não anula todo o espectro. A vitória precoce do atual presidente incorreu no mesmo problema da extrema-direita europeia, onde tem sido um retumbante fracasso quando assume o poder, ainda mais sem o devido respaldo popular. É prepotência e incompetência. O Brexit talvez seja o melhor exemplo: é o putsch da cervejaria de Munique que deu certo e os bêubos tiveram que assumir sem ter a mínima ideia do que fazer ou de como o estado se organiza e funciona, daí tentarem recrudescer o golpe. O grande ponto: não tiveram tempo de se enraizar para além dos predispostos a abraçar o "movimento".
Não estou desculpando quem votou no capitão, ano passado, aceitando que era a melhor opção - não era. Estou aqui propondo que façamos nossas análises a partir de um pouco mais recuado, entender que o passo no abismo não foi dado na urna, em 2018, mas vem de antes, de uma série de fatores que foram negligenciados e/ou minimizados, que levaram ao ponto onde estamos. Seguir com essa de "eu avisei" é insistir no erro e achar que eleição é 45 dias de campanha mais a urna, e deixar a avenida aberta para o fascismo repaginado de um Doria Jr ou Luciano Huck tomar o imaginário popular e criar raízes na sociedade - além do que são mais vivos e tem total simpatia da mídia, poderiam atuar (como Doria Jr deveras atua) como tratores nas instituições democráticas sem serem confrontados ou incomodados.
Diálogo, mobilização e politização - se realmente queremos reverter o quadro político atual. Ou então vamos ficar esperando Godot, nos queixando aos astros e esterilmente gritando nas redes sociais "eu  avisei".

31 de agosto de 2019

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O Sesc e a oportunidade de estimular uma cultura democrática neste tempo que flerta com o fascismo

Por conta do artigo “Precisamos falar (criticamente) sobre o Sesc” [bit.ly/cG171010], que escrevi em 2017 e foi republicado na página do Luis Nassif, no Jornal GGN, recebi o convite para compôr uma mesa sobre “qual o papel do Sesc na promoção de cultura”, no Fórum Políticas Culturais, promovido pelo Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC), da Escola de Comunicação e Artes da USP, dia 21 de agosto. Na mesa estaria também João Paulo Guadanucci, gerente de estudos e desenvolvimento do Sesc.
Surpreso pelo convite, uma vez que não sou estudioso ou especialista na área, pensara, de início, em fazer uma fala colada no que escrevera de 2017, salientando que muito daquilo não valia MAIS para 2019, visto que nele eu criticava o Sesc São Paulo dentro do que chamei de “sistema de financiamento, produção e circulação cultural do Brasil”, e não há mais nada parecido no Brasil de Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Malafaia e tantos outros inimigos de toda arte que não seja propaganda do poder. Seria uma fala para pensarmos quando a onda fascista passasse, se ainda sobrasse algo. Foi o questionamento de um amigo sobre o porquê de eu não abordar a questão da segregação e a da cultura democrática que me fez repensar minha fala: ao invés de falar do passado e em um futuro do pretérito, era mais conveniente falar de algo que ainda cabe no presente e permite devires: se chuvas são fenômenos naturais que fogem ao nosso controle, as partículas das queimadas da Amazônia que baixaram sobre São Paulo esta semana é antes fruto da ação humana e por isso passível de ser alterada.
Ao cabo, diferentemente do que imaginei, João Paulo não foi à mesa para tecer exclusivamente loas ao Sesc – assim como eu não fui para falar mal, ainda que estivesse lá para reforçar alguns aspectos negativos que geralmente passam batidos. O texto a seguir é baseado em minha fala.
Como o próprio João Paulo havia dito, o termo “cultura” é bastante amplo e aberto a diversas interpretações. Foi usando dessa abertura que desisti de falar especificamente do que gira em torno de bens culturais para falar de “cultura democrática”, visto que democracia não é só um sistema de votação, mas é um sistema valorativo de ações, uma cultura, que implica em certa forma de ver e estar no mundo, de se relacionar com o outro e com seu entorno, de se engajar no simbólico e no real.
Quando estávamos sob governos democráticos, o Sesc florescia graças à disfunção do sistema de produção cultural brasileiro. Florescia e o retroalimentava. Nesse sistema estavam Sesc, leis de fomento, editais, Rouanet, equipamentos públicos, tentativas autônomas de espaços culturais, grandes grupos, etc. O Sesc, com muito dinheiro e bom trabalho, conseguiu o que eu chamei de "padrão Sesc de qualidade": bons espetáculos a preços módicos, que forma um público cativo. "Se tá no Sesc é porque é bom", foi uma expressão que ouvi muitas vezes. Tentativas independentes, como pequenos teatros, ou dependiam de alguma forma de estímulo público, ou corriam o sério risco de serem experiências efêmeras, pois não tinham como competir com uma instituição que não depende de bilheteria [João Paulo comentou do artigo de André Barcinsky que trata especificamente desse ponto: www.j.mp/30Bc1QD].
Desde 2016, contudo, a cultura tem sido atacada impiedosamente pelo avanço fascista e fundamentalista religioso (cujas portas foram escancaradas pelo PSDB de José Serra). Quando falo de avanço fascista, me refiro não apenas a Bolsonaro, mas também a Zema, Witzel, Doria Júnior e outros - não esquecemos o horror que foi Doria-Sturm na prefeitura de São Paulo, um verdadeiro Bolsonaro com complacência da mídia; assim como não esqueçamos o que foi o Sérgio Sá Leitão, atual secretário de Dória, no governo Temer. Esses ataques dos fascistas à cultura tem buscado ou a destruição pura e simples de políticas públicas para a cultura, ou o aparelhamento de equipamentos públicos, editais, fomentos (aquilo que acusavam os petistas ou esquerdistas de fazer, sem que conseguissem comprovar, até porque nunca houve de fato). A própria iniciativa privada passou a ficar temerosa de patrocinar espetáculos, com medo do patrulhamento ideológico da extrema direita associada a religiosos, como o caso do Queermuseu, por exemplo. Dessa catástrofe uma das poucas coisas que tem sobrevivido sem maiores traumas é o Sesc. Que agora também está sob ataque do ultraliberalismo de Guedes. Se isso se efetivar, destruído todo o sistema de cultura, o que sobraria? Produção cultural evangélica (pois há dinheiro de sobra e sem qualquer controle) e musicais enlatados para entretenimento rápido e que não incomodam ninguém.
O Sesc, em alguma medida, tem seu pingo de responsabilidade na situação em que nos encontramos - como diversos outros atores sociais, inclusive os movimentos sociais, inclusivo aquele do qual eu faço parte. Um dos pontos que os usuários dos equipamentos culturais do Sesc mais gostam de se enganar é que ele é democrático e popular. Não é. Ingresso caro é elitista, mas ingresso barato não é necessariamente popular: há uma série de fatores que influencia que certos grupos sociais se sintam bem vindos ou não num lugar - por exemplo, seguranças engravatados olhando de alto a baixo quem entra. Já presenciei usuário do Sesc ser barrado na entrada, foi na Vila Mariana, porque não se encaixava no seu tipo padrão, e precisou apresentar sua carteira de comerciário para poder entrar. Isso é um muro. Um muro invisível para que não é barrado, um muro não-dito, mas um muro maldito para quem é "público-alvo". Não é exclusividade do Sesc, é toda uma cultura antidemocrática, antipopular que vigora no país – o Sesc talvez seja até um dos locais mais amenos nisso, perto de baladas, shopping centers ou mesmo parques públicos.
O Sesc 24 de maio agora diminuiu um pouco, mas quando a unidade foi inaugurada tinha muitos seguranças no térreo, num claro desconvite para que a população que ocupa aquela região não entrasse - o próprio Paulo Mendes da Rocha, numa entrevista sobre o prédio, deixou escapar que o público a ser atraído para ali não eram comerciários da região, mas detentores de capital cultural: universitários, classe média alta, brancos ou "embranquecidos". Nas últimas vezes que passei em frente, inclusive, notei que cercaram a marquise onde as pessoas se sentavam para passar o tempo – melhor grades a povo. Não sei se é temporário, tomara que sim.
A programação também acaba, muitas vezes, por reforçar esse caráter "elitista a preços populares" - ao menos até início de 2018. A unidade Pinheiros, por exemplo. Está numa região onde confluem engravatados da Faria Lima, universitários descolados, "meio intelectual, meio de esquerda", como dizia Antônio Prata (que escrevia para a revista do Sesc), e pessoas de classes mais baixas - tanto que o Largo da Batata, antes da gentrificação dos últimos anos, era um dos principais pontos do forró de São Paulo. Pergunto: qual é a proporção de shows de forró para shows de bandinhas de rock alternativo no Sesc Pinheiros? Ah, mas no Sesc Itaquera, no Sesc Interlagos... Sim, nas unidades da periferia, há uma arte condizente com o que o preconceito diz que a periferia gosta. Um reforço à lógica segregacionista do espaço - que esteve bem presente no governo Haddad-Bonduki, por sinal. Resultado: eu vejo pouca diversidade social. Se você for na Oswald de Andrade (sob ameaça de Doria Jr), na Casa do Povo, no CCSP (que sem explicação barrou a realização da CryptoRave quando Doria Jr. era prefeito), você vai ver um público bem diferente, mais heterogêneo, daquele que se senta nas poltronas do Sesc.
Aqui eu entro em outro ponto da defasagem democrática do Sesc: não apenas no público que atrai para suas unidades centrais, mas a forma como gere suas unidades. Nunca li em uma revista de programação, nunca recebi um e-mail, nunca soube de um conselho composto por moradores e trabalhadores da região, ou de quem for, que não seja programador do Sesc, ser chamado para decidir os rumos das unidades. Não digo as atrações específicas, mas as diretrizes do semestre ou do ano – que seja algo consultivo. Conforme João Paulo, há um conselho geral, com participação (minoritária) dos trabalhadores. De qualquer modo, as unidades funcionam funcionam no esquema empresarial, sem chamar a uma participação efetiva da sociedade – por mais que os técnicos de programação encontrem brechas para trabalhar democraticamente com agentes culturais.
Eu vejo esse déficit de participação na forma como o Sesc tem sido defendido na minha bolha de usuários do Sesc: avatares na foto de perfil do Facebook. Comparo com o que ocorreu na Vila Itororó, e seu Canteiro Aberto: uma participação efetiva da comunidade na decisão dos usos e rumos do espaço cultural. Tanto que quando o acordo com o Instituto Pedra foi encerrado, em meados de 2018, pela gestão Doria Júnior, muitos temeram pelo fim da experiência. Porém, o resultado foi um aprofundamento da proposta por parte da população, eles dobraram a aposta e houve uma maior gama de atividades e maior difusão. É uma experiência fantástica.
Se abrir a experimentos, experimentações, se abrir à construção democrática, pode pôr em risco o "selo Sesc de qualidade", que ele conseguiu imprimir a tudo o que aparece no seu guia de programação. É uma perda, sem dúvida. Contudo, diante do contexto atual, dos ataques que a cultura tem sofrido, talvez caiba ao Sesc repensar urgentemente sua inserção e sua forma de relação com a sociedade, não apenas para ser numa futura sociedade efetivamente democrática - de cultura democrática - um farol a guiar outras iniciativas, na área de cultura e fora dela, e sim para desde já contribuir para romper as trevas que nos tomam - junto com restos das queimadas amazônicas.

23 de agosto de 2019

PS: claro, resta saber o que resta do empresariado brasileiro ao talho de Simonsen e outros, ou se o que nos sobra é gente ao estilo "Véio sonegador da Havan".

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

O machismo da Lava Jato

Max Weber, balizado pela noção kantiana de uso público e privado da razão, desenhou seu burocrata ideal-típico, algo próximo de um parafuso eficiente e resignado (e satisfeito?) na máquina bem azeitada do Estado. Gyorgy Lukacs tomou emprestado a construção do amigo para fazer uma análise crítica do capitalismo, em especial do seu sistema de justiça racional, pautado pela previsibilidade dos resultados, independente de quem julga. Os seguidores das concepções do filósofo húngaro (dessa fase) - Adorno, Horkheimer, Marcuse, Debord e outros - aprofundaram a crítica, pondo esse princípio de cumprimento de dever baseado na razão pública como esteio do horror nazista tanto quanto o mecanismo que sufoca e asfixia a vida do cidadão comum na sociedade burocratizada, controlada e codificada do capitalismo tardio - não apenas os funcionários do estado, que o diga o atendente do McDonald's padronizado até na forma como segura o esfregão para limpar o chão.
A noção de uma justiça racional e de um corpo burocrático dotado de uma “ética pública” que se sobrepõe às preferências e valores individuais não chegou a se efetivar plenamente em lugar algum, mas nestes Triste Trópicos ganha ares de alucinação, tamanha a distância entre a prática e esse ideal normativo: aqui não se trata apenas de interpretar a lei conforme a situação (ou o rosto do "cliente"), mas de inventar leis e crimes conforme o desejo do juiz - que o diga os "atos de ofício indeterminados" que garantiram o "triunfo da vontade" do então juiz/justiceiro Moro e sua equipe de procuradores delegados e outros agentes do estado, personificação de uma parcela da elite brasileira (e seus lacaios/sicários).
Na justiça brasileira a concepção de um juiz aplicador de leis decididas por um legislativo representativo da população, uma peça na engrenagem, não faz sentido, e nem precisa dos holofotes que Moro teve: cada juiz uma constituição, um código penal, um código civil: a depender da vara, um processo sairá vencedor ou perdedor, praticamente independente do que diz a lei e do que é argumentado pelo advogado - e muito dependente de quem é o impetrante.
Curiosamente, as duas juízas que ganharam destaque com a Lava Jato se comportam como peça numa engrenagem, seguem o que foi determinado com destemor. Infelizmente a determinação não se baseia nas leis, pelo contrário, está em contradição a elas, por temor da desaprovação das hostes fascistas - daí seguirem os mandos e desmandos do chefe desse “estado dentro do estado”, hoje ministro da justiça (sic). 
Recordo que ao aceitar ser ministro de Bolsonaro, muita gente se surpreendeu com o fato de Moro ser capaz de se comprometer com um governo abertamente machista, misógino e homofóbico. Sede de poder foi a explicação que pareceu mais razoável - poucos foram os que apontaram identidade de visão de mundo entre Moro-Lava Jato e Bolsonaro: havia apenas diferença de modo de apresentação das convicções (se um tosco power point ou uma verborragia agressiva tão tosca quanto).
O comentário de Moro, palhaço augusto do presidente (ele que se achava O branco em Curitiba), no Twitter, sobre a lei Maria da Penha, apenas reforça que a identidade com o capitão expulso do exército não está apenas no ódio ao "esquerdismo" (seja lá o que significa no fascismo tupiniquim), à democracia e ao estado de direito, está também na visão que tem das mulheres. Isso ficou explícito no tuíte, mas pode ser observado na Lava Jato e na #VazaJato. 
Disse o herói dos fascistas: “Talvez, nós, homens, percebamos que o mundo está mudando e, por conta dessa intimidação, infelizmente, por vezes, recorremos à violência para afirmar uma pretensa superioridade que não mais existe”. Nem cabe aprofundar nesse besteirol. Apenas ressalto que, para sua sorte, as mulheres do seu entorno não os intimidam, de modo que os homens podem manter sua pretensa superioridade que não existe mais - mas segue existindo e não apenas como pretensa, nas práticas do grupo. E isso sem espancamentos, veja que avanço civilizacional!
Na República de Curitiba poucas são as mulheres com alguma voz. Melhor: poucas são as mulheres. Conforme o site do MPF, de 19 procuradores que já integraram a força tarefa em Curitiba, apenas quatro são mulheres. Nunca em papel de destaque, e ainda substituídas a pedido do chefe, por ser muito fraca, como o caso de uma das procuradoras. Voz das mulheres, só as que ecoam a voz dos chefes - homens, brancos, heterossexuais (ao menos para o público): a elas cabe o papel subalterno, submisso - visão afim tanto ao nazifascismo “clássico”, do século XX, quanto ao do atual chefe de Estado do Brasil, quanto aos princípios bíblicos defendidos por agentes públicos “terrivelmente evangélicos”: lembro a história dos pais de um amigo de infância, que frequentava a mesma igreja que Dallagnol (sim, fomos paridos na mesma terra), cujo marido cobrou submissão da esposa ou o divórcio. Entre ajudar a cuidar da mãe doente ou preparar o jantar para o macho provedor, amparada pelo pastor, ela se manteve servil ao marido. A forma como os procuradores falam em usar as esposas como laranjas nem parece estar lidando com alguma pessoa, muito menos próxima: é um instrumento para lucrar dando palestras motivacionais de empreendedorismo (com que experiência?).
Quando as mulheres assumem algum protagonismo, o fazem de maneira masculinizadas e abusando da perversidade - lembram os casos dos judeus postos para cuidar dos campos de concentração, que se mostravam mais firmes que os nazistas. Não surpreende: são mulheres e precisam compensar o que seus colegas vêem como "falha". Recebem reforço positivo das hordas fascistas (em pesquisa no DuckDuckGo, sites de direita falam que as juízas do caso seriam exemplos de "empoderamento feminino"), mas sua perversidade e sua grosseria desmedida apenas sinalizam sua insegurança, indicam o quanto sabem valer nada fora do cargo, da aceitação do chefe e dos outros machos da horda, e da função que ocupam por causa dessa submissão ao todo poderoso Moro/Globo. Negar a humanidade do outro a ponto de pôr sua vida em risco - transferindo Lula para um presídio comum ou levando Cancellier ao suicídio - é a assunção implícita de quem tem sua humanidade negada, que elas são vistas como meio, e aceitam isso como destino, exultante de serem instrumentalizadas para fins outros - e não se trata aqui de razão pública, mas de negação da razão prática, em falta de toda ética, até a do crime. Impingir ao outro o sofrimento que sofre é uma forma de tentar compensar a própria impotência - mas a impotência segue. Não precisava ser assim, afinal são pessoas bem formadas (em tese), com toda estrutura para terem um pensamento crítico e reflexivo - não mero reflexo acrítico das estruturas patriarcais que as violam.
Diferente da experiência alemã de 1930/40, não se trata do paroxismo do princípio weberiano do burocrata racional, mas da sua perversão.

09 de agosto de 2019

PS: Talvez alguém tenha notado que o nome das mulheres não aparece aqui, foi proposital diante do papel que aceitaram assumir.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

As esquerdas precisam mudar (e complexificar) seu discurso (2)


Há pouco tempo falei da necessidade das esquerdas mudarem algo em seu discurso e incluírem, junto com a denúncia, a esperança [bit.ly/cG190611]. Construir esse discurso de esperança, contudo, não é algo simples e guarda várias armadilhas. Primeiro, deve ser construído desde aspirações vindas da sociedade como também a partir de análises mais acuradas das possibilidades objetivas de mudanças significativas em favor de uma qualidade de vida melhor (isto, em tese, seria papel da academia; mas esta, via de regra, dado seu distanciamento da sociedade que a financia, está longe de cumprir tal tarefa de modo destacado). Um dos grandes pontos é não criar (ou fomentar) esperanças infundadas, não transformar o desejo de mudança em um balaio onde cada um põe o que quer para se frustrar a seguir - como foi parte da estratégia de Bolsonaro para ganhar eleitores não fascistas em 2018 e, não fossem os escândalos e sua incompetência, seria um dos principais fatores que minaria o apoio a ele. A esperança deve ser trabalhada tanto numa chave utópica, ideal - no sentido kantiano do termo, de perfectibilidade nunca alcançável, mas nem por isso deixada de ser desejada e buscada -, quanto numa chave concreta, de pequenos ganhos viáveis e visíveis - algo próximo do que o PT foi em seu início, e que abandonou quando ocupou o Palácio do Planalto.
Isso implica em complexificar o discurso - e, por consequência, o pensamento e a compreensão da realidade. Sei o quanto é difícil esse processo: ser didático sem ser raso; como tornar um conceito, uma ideia, em uma formulação simples e não simplória, que não tenha apenas uma compreensão imediata, mas implique em uma mediação a mais no pensamento - mesmo daqueles que não estão familiarizados a filigranas intelectuais ou grandes densidades de dados e teorias. Aldo Fornazieri dá o exemplo do fracasso que tem sido a campanha Lula Livre - uma pauta, diga-se de passagem, que não é de grande complexidade, mas que foi reduzida a uma palavra de ordem que nem mobiliza quem a acha legítima, mas está parado, sequer pro-voca quem estava mudo [http://bit.ly/2Ge8Nu4].
Vejo dois fatores principais para a defesa dessa linha ‘complexificadora’. O primeiro de ordem prática: as visões simplistas souberam ser instrumentalizadas de maneira muito mais efetiva pela direita, em especial pela extrema-direita. O porquê disso dá várias teses, creio que uma primeira chave explicativa está na nossa subjetivação - que nos impõe necessidade de certezas - e na educação - formal e não formal, ainda mais num país dominado por uma mídia monocórdia e igrejas conservadoras. O segundo, de ordem programática, vamos dizer assim: se a esquerda realmente pensa em construir uma sociedade democrática, é preciso fortalecer o pensamento autônomo, de modo a conseguir não fanáticos a suas teses, mas pessoas capazes de ponderar, dialogar e agir de modo independente - e depois convencê-las de que suas propostas são as mais razoáveis.
Concomitante a isso, é preciso incluir não apenas minorias, mas recalcitrantes, aceitar os diferentes, desde que com alguma coisa em comum - parafraseando antigo slogan de cigarro e princípio implícito da extrema-direita -, com aquele tenso ponto de um limite a essa inclusão, deixando de fora, por exemplo, os intolerantes. Unir diferentes não significa criar uma identidade unitária, muito menos forçar uma identificação a partir do ódio - a diferença entre inimigo e adversário precisa ser sublinhada, assim como o limite para o convite ao diálogo e a sua possibilidade. Nisso, imprescindível começar complexificando a política, ou seja, tirar dela a aura de algo possível pureza: pureza em política, apenas as dos regimes totalitários mais sanguinários: toda democracia implica em ceder e aprovar pautas dos adversários em dado momento (a esquerda, sejamos sinceros, até o fenômeno neofascista recente (Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Amoêdo-Novo), era implacável e inigualável na sua cobrança de pureza, sendo que parte ainda continua); combater a corrupção, porém sem a fantasia de extirpá-la - não enquanto vivemos sob o sistema atual.
Complexificar muitas vezes é mostrar a proporção de certos números apresentados pela mídia - dar a dimensão de que aqueles milhares de reais que é muito para uma pessoa comum, é nada para um banco ou para o orçamento da União -; é não discutir conclusões, mas  atacar as premissas e deixar a cada um que conclua por sua conta, ainda que dentro de parâmetros razoáveis - e isto inclui uma utopia racional, de que a lógica volte a ser valorizada, minimamente que seja. Complexificar - e aqui a esquerda temos muita dificuldade - é saber conciliar o logos racional com o discurso que apela à emoção. Sim, a política é movida pelas emoções, mesmo quando tentamos racionalizá-las, seguem sendo emoções, paixões e ódios e pré-conceitos: é por isso que os grandes oradores desde sempre levantaram suspeitas por parte de democratas e ditadores (e nossa época vive uma instrumentalização tecnológica do discurso que tem prescindido (em parte) dessa figura, a disputa prometida e não realizada em 2018, entre a oratória e o “microtarget whatsappiano”).
Complexificar já é, em si, um ato bem revolucionário, pois vai contra as diretrizes do espetáculo (para usar o conceito do autor que estudei, Guy Debord); precisamos saber escolher alguns temas dentre os que despontam e aprofundá-los, esmiuçá-los, e não pular de “trending topic” em “trending topic”, posto pela mídia e pelos algoritmos das redes sociais, reforçando a lógica da superficialidade que favorece a crença sem lastro – princípio em que vingam as fake news e tudo que as envolve. Em tempos de meme e lacração, conseguir trabalhar um pouco mais uma ideia é um privilégio – e é também uma necessidade. Não se trata de abandonar as ferramentas que tem se consagrado na internet - coisa que a esquerda ainda engatinha no uso -, mas de utilizá-lo como um primeiro combate para chamar para um outro terreno, no qual seja possível ampliar a compreensão das linhas de força que atuam em determinada questão - dos memes levar a youtubers progressistas e, quem sabe, a textos analíticos mais profundos.
Denunciar injustiças, iniquidades; confrontar discursos lacunares, contraditórios (sem cobrar coerência, mas a assunção das limitações do humano, do político); propor políticas concretas para melhoras a curto e médio prazo, convidar para debates sobre alternativas, sinalizar possibilidades utópicas a serem construídas conjuntamente, tudo isso sem reduzir a fórmulas prontas ou a palavras de ordem. A tarefa é árdua, porém os demais caminhos, por ora, não apontam a construção de um mundo melhor.


28 de julho de 2019

quarta-feira, 17 de julho de 2019

A grande imprensa e sua condescendência com atos fascistas

Começo falando o óbvio: diante do fascismo, ou você o afronta abertamente, ou você está pactuando com ele, na medida que dá brecha para que seja naturalizado como uma posição aceitável - até mesmo razoável - dentro do espectro político e das diversas formas de sociabilidade que uma sociedade moderna comporta. Por ser uma posição extremista, exige uma contraparte extrema também. A mídia brasileira já tem um débito enorme com o país por seu apoio ou sua omissão diante da ascensão de Bolsonaro e Moro (para não falar no golpe de 2016). Era sabido quem eram, de onde vinham, havia razoáveis indícios de por quais caminhos obscuros trilhavam suas trajetórias. Se calaram foi por não acharem tão grave, por acharem que controlariam os fascistas depois de assumirem o poder - assim como a direita liberal europeia confiou nas suas instituições, no século XX. A história não se repete, mas isso não quer dizer que não vá por sendas semelhantes.
Feita a desgraça de esgarçamento do pacto social de 1988 e da fraude nas eleições de 2018 (depois de quatro tentativas frustradas de golpes brancos), parte da mídia pula fora do barco fascista e finge criticidade - e ignora de que lado estava até um mês atrás. Não que não seja válido esse movimento, porém não se deve aceitar como um dos nossos, dos anti-fascistas, dos progressistas, apenas como aliados de ocasião, cujo apoio é importante agora e cabe abandonar tão logo não sejam mais úteis - sim, estou pregando uma ética estritamente utilitária (como defendem os neoliberais, ou seja, eles próprios) nestes casos.
Folha de São Paulo talvez seja o veículo mais avançado na oposição light a Bolsonaro. Já se fez de virgem no bordel quando o mandatário da nação disse que cortaria sua verba publicitária (e alguns amigos, infelizmente, caíram, fazendo assinatura digital, ao invés de apoiarem o jornalismo independente e deveras crítico); trocou críticos mais agudos por outros suaves, que batem em Bolsonaro mas contemporizam com parte da elite que apoia o governo, e atualmente tem publicado trechos da #VazaJato, o que mira o coração do projeto neofascista de periferia que as elites nacional e internacional têm para estes Tristes Trópicos. 
Contudo, o caminho para a integração do fascismo como norte político razoável persiste. Como já disse em outro texto, o fascismo entra pelas frestas [http://bit.ly/cG170601], está oculto no que nos pareceria, à primeira vista, uma afronta a ele [http://bit.ly/cG170315]. A forma como o jornal mancheteou as recentes investidas fascistas contra a cultura, na Flipei, em Paraty (RJ), e na feira do livro de Jaraguá do Sul (SC), mostra como nem mesmo a Folha faz oposição séria ao fascismo - talvez por não considerá-lo tão perigoso quanto o petismo conciliador de soma positiva (para usar jargão econômico) de Lula.
Sobre o cancelamento de Miriam Leitão e Sérgio Abranches no evento catarinense, a Folha, dentre os grandes veículos de fake news autorizada, digo, grandes veículos de mídia corporativa, é quem mais se preocupou em dar nome aos bois, mas fez isso discretamente, longe da manchete ou do texto de destaque: “Após protestos, feira do livro em SC cancela presença de Miriam Leitão - Evento em Jaraguá do Sul recebeu mensagens contra a participação da jornalista e do sociólogo Sérgio Abranches”. Mensagens de quem? É preciso ler a notícia para saber. Os outros veículos foram ainda piores. O Zero Hora, de Porto Alegre, por exemplo, tem como manchete: “Após receberem ameaças, Miriam Leitão e Sérgio Abranches são cortados de evento literário“. Sabendo quem é Miriam Leitão, um leitor desavisado mas não de todo desinformado, pode muito bem achar que a pressão se deu por “esquerdistas” - afinal, a esquerda que é violenta, vide a facada em Bolsonaro,e Miriam é uma reconhecia antipetista. A Folha, no trecho que a salva, comenta: “Ela é vista como oposicionista ao governo Jair Bolsonaro (PSL), presidente que teve na cidade 83% dos votos válidos na última eleição”. As demais publicações não foram além de divulgar o tom da petição online que barrou a jornalista, sem especificar de onde vinham as ameaças: “Por seu viés ideológico e posicionamento, a população jaraguaense repudia sua presença, requerendo, assim, que a mesma não se faça presente em evento tão importante em nossa cidade”. Ou seja, uma petição que pode ser tanto dos extremistas fascistas quanto dos "extremistas" "esquerdistas" - a mesma estratégia errada para a eleição de 2018, de pintar o PT e a centro-esquerda como extremo.
O caso da tentativa de atentado a Glenn Greenwald, em Paraty, também teve uma cobertura vergonhosa. O jornal dos Frias fala em “protestos”, “atos” e fogos para atrapalhar. Nada de atentado, de fogos para impedir de falar e tentar machucar [http://bit.ly/32pRjV4]. Pior foi o UOL, portal do grupo, que tinha como manchete: “‘Gringo de m...' e 'Lula Livre': Glenn leva gritos à Flip e polariza Paraty” [http://bit.ly/2YWYQsr], pondo o jornalista estadunidense como culpado pelos transtornos causados pelos fascistas: não fosse Greenwald e Paraty não teria polarização, seria o perfeito éden da harmonia social - faltou também dizer que os agressores eram cidadãos de bem agindo dentro do seu direito de tentar calar, ferir e, por que não?, matar alguém.
Não adianta Folha publicar reportagem contra a Lava Jato e seus métodos mafiosos, eventualmente se posicionar contra o governo Bolsonaro, se anunciar favorável ao diálogo e à razão, se ela tolera ações fascistas e as trata como expressões de que a democracia no Brasil vigora, de que “as instituições estão funcionando normalmente”. Mas falta à Folha sinceridade, coragem e boa fé (e vergonha na cara, também). Se tivesse, ela teria que assumir que não apenas se "equivocou" ao apoiar Bolsonaro, como mentiu ao tratar a esquerda brasileira como disruptiva da democracia ou das instituições - o único risco que PT e congêneres trazem é de diminuição dos lucros dos seus patrocinadores. O que a Folha segue a ignorar é que ou ela combate abertamente o fascisco - e isso significa, sim, "Lula Livre" -, ou não adianta depois ficar #chateada porque o fascista no poder não quer lhe abrir os cofres, ou resolver fechá-la de vez. Com fascista não se dialoga, não se pactua, a não ser que você seja um também.

17 de julho de 2019


quinta-feira, 11 de julho de 2019

A esquerda precisa mudar o discurso

A esquerda precisa repensar sua estratégia de comunicação, convencimento e mobilização social - constatação óbvia, contudo, que precisa ser repetida. Precisamos deixar para segundo plano a análise de como chegamos no ponto onde estamos e traçar estratégias para sair da rota na qual seguimos, e isso inclui a forma de comunicar e angariar simpatizantes e militantes.
Apelar para cenários catastróficos inexoráveis é eficiente se se está em posição de vantagem. Não é o caso das forças progressistas no momento. E ao pintar o pior dos cenários, e de uma forma tão definitiva, em um contexto onde a derrota é muito provável, a tendência é desanimar cada vez mais a militância, afastar pessoas que poderiam se sensibilizar em um segundo momento e se unir à nossa luta. A estratégia catastrofista lembra muito as propagandas de prevenção da Aids, no início da década de 1990, em que pintavam a doença como um atestado de morte e acabavam por minar o psicológico de quem havia sido contaminado, piorando sua qualidade de vida e dificultando a convivência com a doença.
Tomo o exemplo da reforma da previdência aprovada neste infeliz dia 10, uma reforma de interesse exclusivo dos plutocratas nacionais e internacionais, uma volta a mais no  parafuso de hiper exploração do trabalhador, iniciado com a reforma trabalhista. Os 379 votos favoráveis demonstram a força de "persuasão" do governo e dos patrocinadores dos deputados (como a emblemática Tábata Amaral e sua “convicção individual” que nunca se opõe à de Huck e Lemann). Pintar o inferno na terra, sem chance de remissão, é afastar a população de mobilizações futuras, caso não alcance o intento (como foi o caso): mobilizar para quê, se está acabado? Acaba se tornando um discurso indutor do conformismo mais resignado - e não adianta depois, como Mino Carta, dizer que o “povo brasileiro” é que é passivo.
Passamos os anos do PT no governo federal dormindo em berço esplêndido, não será de uma hora para outra que conseguiremos novamente mobilizar setores amplos das camadas populares. Nada mais lógico que as forças reacionárias avancem vorazmente diante da resistência tíbia e diminuta: quanto mais ganharem agora, mesmo que percam parte no futuro, maiores as chances de, ainda assim, saírem com saldo positivo - para eles, em detrimento da população mais necessitada. 
Manter a resistência agora é imprescindível, se servir para barrar esse tipo de medida, ótimo, se não, que seja para marcar posição e começar a reconstruir um trabalho de base - que não cabe mais ser nos termos que foi no século XX. Uma coisa, porém, é preciso retomar fortemente da década de 1960 (ainda acho que o cerne de nossas questões e parte das nossas respostas estão neste período) e seu legado: o devir histórico. O futuro, ainda que possamos fazer previsões e ainda que as possibilidades de mudanças sejam maiores ou menores a depender do presente, não está fechado, de forma alguma - a não ser para quem concluiu sua passagem neste mundo (e não há como não lamentar a perda do Paulo Henrique Amorim neste momento da nossa história). Enquanto os seres humanos estão vivos, a história também pulsa, também está viva, e o futuro, em aberto. É possível reverter no médio prazo essa maré que nos afoga; as reformas aí enfiadas goelas abaixo via um simulacro de democracia não são leis divinas e podem ser alteradas - é possível que os próprios donos do poder queiram revê-las em parte, num futuro próximo, dado o grau de catástrofe que prenunciam, e o que a esquerda fará então? começará a discutir o que fazer? De qualquer modo, se não vier de cima, é possível que pressões de baixo obriguem a sociedade a refazer seu pacto social, como foi feito em 1988 - não estava vivo na época, mas não creio que uma Carta como a de 1988 parecesse muito factível dez anos antes.
Um primeiro passo que as esquerdas precisam, junto com essa afirmativa do devir, é construir uma narrativa de planos, propostas, e não apenas de denúncia. Acolher e ouvir as pessoas, e a partir de então construir coletivamente possibilidades, devires, novas utopias - é curioso que a própria ação pastoral social da igreja católica também tem tido dificuldade em fazer esse movimento (falo por experiência própria, pois participo de pastoral social, apesar de ateu). Talvez o que falte à esquerda seja se reconciliar com a religião - as boas religiões, os bons religiosos -, redescobrir essa “dimensão religiosa”, de arauto de alguma boa nova - precisaria, para isso, descer do seu pedestal hiper racionalizado (estéril). Num contexto de desalento e desespero, pouca gente vai se dispor a somar num movimento, num partido, numa organização que não sinalize algum caminho positivo, em que não se vislumbre algum tipo de melhora, que não traga uma mensagem esperança. A esquerda precisa trazer luz, porque as trevas já nos cobrem.

11 de junho de 2019

PS: penso depois: talvez essa seja uma das chaves do discurso do Lula​, que persiste nas suas entrevistas na masmorra curitibana: conciliar denúncia e esperança assertiva.