terça-feira, 28 de julho de 2020

O momento para a esquerda pautar a discussão sobre a escola e a educação

Talvez não tenha havido nos últimos anos momento mais oportuno para impôr uma pauta progressista na discussão sobre os rumos da educação no Brasil - perdemos essa oportunidade quando nos governos petistas, talvez impelidos por questões mais prementes e que avançavam, como financiamento. Com Fundeb aprovado e Weitraub fugido, a principal discussão da área deve ser sobre a volta às aulas no contexto da pandemia. Ainda que envolva aspectos pedagógicos, não é exatamente uma questão pedagógica: eis o momento de colocar certas questões essenciais em pauta, antes que o governo o faça - ou movimentos privatistas/predadores da educação, tão bem representados na figura da deputada Tábata Amaral.
Aliado ao respiro que a aprovação do Fundeb trouxe, a entrada de Milton Ribeiro no ministério da educação não deixa de ser um alento: sai a proposta de destruição pura e simples de educação - parte da guerra contra o "marxismo cultural", entendido como tudo aquilo que não seja adestramento para a brutalidade e a submissão -, e entra uma proposta, péssima, mas uma proposta: privatista, reacionária ao extremo - ao que tudo indica -, que crê que se educa pela dor, pelo autoritarismo (sempre confundido com autoridade, apesar de serem conceitos bastante distintos, por mais que possam ter intersecções) com vistas à formação de força de trabalho servil (portanto acrítica e desconhecedora da própria cidadania) e para os valores da família e da igreja (substitutos da cidadania negada). É um retrocesso, mas é um avanço: sem a estridência do pupilo olavista e provavelmente trabalhando mais nos bastidores, dá para entrar em algum debate público racional.
E o contexto permite que as esquerdas, o campo progressista, os pedagogos e pesquisadores da área consigam colocar e balizar o debate agora. A pandemia e a forma como ela atingiu a educação em todos os níveis (até mesmo a educação à distância, falo por experiência!), com a suspensão das aulas e os arremedos ensaiados pela internet, dão a oportunidade de ouro para se perguntar: para quê serve a escola? Qual deve ser a função da escola? Qual o papel da educação na dita sociedade do conhecimento e o que deve ser ensinado - na escola e fora dela? Ensino à distância substitui o ensino presencial?
Não sou pesquisador da área, apenas um diletante que desde sempre gostou de pensar e refletir sobre o que vivencia quotidianamente. Tenho experiência tanto com educação presencial quanto à distância, como professor (ensino superior EaD e educação popular presencial) e como aluno (dois diplomas de graduação e um mestrado presenciais (fora três graduações inc ompletas), uma graduação e uma especialização à distância, e cursando mais uma graduação EaD). Como professor, EaD é frustrante. Como aluno, tem seus aspectos positivos - mas realmente não sei o quanto as crianças estão preparadas para lidar com um meio altamente dispersivo como a internet, se sequer os adultos estão. É interessante para ir direto ao ponto de certo assunto, sem que o professor se perca eventualmente (não raro) em digressões, facilitando entender a linha de raciocínio. Para uma aula expositiva de fixação de conteúdo, vale, para formação de pensamento crítico é um instrumento precário: não substitui as trocas em sala de aula e outros ambientes escolares - os fóruns são arremedos cansativos e pouco produtivos. 
E o "ensino EaD" é um dos temas na pauta, não só pela pandemia como desde que foi aprovado que 30% do Ensino Médio pode ser ministrado nessa modalidade, pela reforma do golpista Temer, e com a proposta do governo Bolsonaro de ampliar para todo o ensino fundamental (trata-se de um prato cheio para aliciação das igrejas evangélicas, que poderão cuidar da merenda e da formação do "caráter" das crianças, enquanto os pais trabalham e o Estado se desobriga e economiza). A experiência da pandemia vai fazer alguns defenderem, outros criticarem, vai ter quem levantará o ponto da popularização da internet no país, e nessa discussão vai passar que essa não é uma questão essencial - eu diria que beira a irrelevância, se não se aceitar os termos postos por quem vê educação como mera formação de força de trabalho.
Antes de discutirmos o que ensinar e como - e mesmo para quê -, cabe perguntar qual a função da escola no mundo hoje. A ideia de um ensino conteudista (que é o que está por trás da defesa do ensino EaD) é totalmente pertinente para a década de 1950, quando ter uma fonte de pesquisa, como uma enciclopédia, significava morar perto de uma (rara) biblioteca pública ou ter boas posses para comprar uma e deixá-la na sala - diante desse empecilho, o mais recomendado era que as pessoas tivessem vários dados e datas guardados na memória. Isso para não falar das fontes de informação, também escassas e unidirecionais. Hoje tem-se todo esse conteúdo facilmente à mão e em qualquer lugar, graças à internet. Tal aparente facilidade, claro, não substitui o conhecimento prévio: se não se souber que houve ditadura militar na Argentina, por exemplo, não se vai pesquisar o nome dos ditadores do período; não conseguir entender e interpretar um exercício de análise combinatória não vai permitir pesquisar as fórmulas que permitam resolvê-la. Conteúdo segue importante, porém não deveria ser o centro do processo de educação - sei que há muito não há mais essa centralidade, ao menos dentre os teóricos da educação, contudo é a visão senso comum da escola e da educação, daí que tanto a questionam.
Se os novos meios de comunicação rebaixaram a importância da escola quanto ao repasse de conteúdos, eles aumentaram a importância que ela tem no ensino da socialização das crianças e jovens: em uma sociedade do medo, onde cada um fica fechado em sua casa ou condomínio - todos consumindo, pensamento, agindo, se comportando de modo muito semelhante -, interagindo por meio de telas - que podem ser desligadas ao primeiro sinal de desavença e encerrar a discussão -, a escola pode surgir como centro dessa socialização, dessa forma de interação humana que a sociedade do espetáculo tenta minar. Interagir cara a cara com alguém é se responsabilizar imediatamente pelo que é dito e a forma como é feito, é entender que o tempo não é infinito e que não dá para falar tudo o que deseja a qualquer momento, é ser educado não para a tolerância com o diferente, e sim para a convivência com ele, sem se sentir ameaçado por isso - porque não há mesmo ameaça. 
E se aceitarmos que a socialização e a convivência são as funções principais da escola na sociedade atual, a própria ideia de educação privada pode ser questionada num segundo momento: se a proposta é a de conviver com o diferente, é preciso que estejam presentes no mesmo ambiente diferentes classes sociais, diferentes experiências de vida, diferentes visões de mundo. E se é um centro de socialização e convivência, logo pode servir para educar os pais também - quem sabe tirá-los do lodo fascista onde chafurdam contentes por pentercer a uma pretensa irmandade de puro coração e valores -, servir para engajar a sociedade toda na educação das crianças - não só -, tirando essa responsabilização excessiva da escola e dos educadores - os CEUs da gestão Marta podem ser encarados como um primeiro e tímido ensaio.
O que estou propondo não é nada revolucionário. É uma proposta de educação liberal, afim a muitos valores da sociedade, ao menos dos valores cultivados pela e para as elites - não por acaso, alguns colégios e métodos já há tempos equilibram conteúdo e convivência. É contudo, uma forma de escaparmos da armadilha de discutirmos questões posteriores, como métodos e objetivos - forma de se manter tudo como está, ainda mais na atual correlação de forças, com avanço do fundamentalismo religioso. Discutir a função da escola é pôr em questionamento a própria sociedade, sua forma de produção, os valores que reproduz, os ideais que almeja. É preciso que saiamos de uma posição reativa e de negação e avancemos com propostas e questionamentos que mobilizem o debate público e criem o ambiente para, no futuro, possam ser discutidas reformas mais transformadoras da educação formal - e de toda a sociedade.


28 de julho de 2020

PS: Enquanto pensava neste texto, lembrava do problema da educação durante a pandemia, o fato de muitas pessoas não terem acesso a celular e internet. No início da pandemia até houve um movimento pedindo que fosse liberada internet gratuita para todos - até como forma de estimular ficar em casa -, isso antes de entrarmos no debate se o vírus existia de verdade ou não era invenção e outros non senses do tipo. Curiosamente, não se pensou que há concessões públicas de televisão que abrangem todo o território nacional, e que tem nos termos de sua concessão a utilidade pública e fins educativos. Com programas suspensos por causa da pandemia e crise financeira das emissoras, daria para o governo negociar os horários da manhã para oferecer teleaulas, das oito ao meio dia. São cinco emissoras de abrangência nacional (Globo, Record, SBT, Band e Rede TV!), isso totaliza 20 horas todas as manhãs; dá para ter um canal somente para crianças não alfabetizadas e outra só de revisão para Enem, e ainda sobraria uma hora para cada série. Certamente pedagogos saberiam fazer a coisa render melhor, ainda assim seria algo bastante precário; contudo, ao menos as crianças não ficariam totalmente paradas, e os pais também teriam um momento de folga (por sinal, falou-se muito do aumento da violência contra a mulher durante a pandemia, é de se questionar se não houve também aumento da violência contra as crianças no período). Esta ideia soa meio descontextualizada a um texto que fala em questionar o ensino baseado no conteúdo, a expus porque é serviu para me lembrar que há outros meios que podem ser usado para educação, estão à mão desde muito tempo, e deixamos passar.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Vagabundos, bandidos, zumbis - o vocabulário conservador entranhado nas hostes progressistas

Desde que tive que começar a trabalhar presencialmente, em fins de abril, faço ao menos um dos trajetos (ida ou volta) até o trabalho à pé, como forma de me exercitar (são 9 km) e acompanhar como vai a cidade. Semana passada, o trajeto pela manhã parecia que saímos não de uma quarentena (que nunca foi efetivamente), mas de um feriado frio e chuvoso, em que o não deu para correr no parque, então o pessoal aproveita para fazer o jogging, o cooper, o footing na ciclovia ou na calçada. No mais, trabalhadores se encaminhando para seu tripalium, os "espaço imantados" dos ambulantes de café da manhã, os nacos de conversas que pego pelo caminho. São Paulo volta ao normal e seu "novo normal" não parece ir além das máscaras - se me é novidade, não é fruto de pandemia, um grupo de três jovens da periferia pelo qual passo, máscaras no queixo, que caminham com uma caixa de som de onde extrapola rap gospel a quem queira e não queira ouvir: a salvação da alma, já que, ao que tudo indica, os pastores já vaticinaram nossa danação na terra (atualmente em coro com cientistas e gente sensata).
Se no início do meu trabalho presencial a única rua em que eu precisava esperar pelo sinal para atravessar era a avenida do Estado, isso às seis da tarde, pouco a pouco meu tempo de espera foi se alongando até que agora é preciso esperar o sinal de pedestre abrir para atravessar, como no velho normal.
Foi esperando num momento desses que pego um fio de conversa entre dois moradores de rua. Questiona um deles: "e por que que dar dinheiro pra vagabundo, se ele não acrescenta nada para a sociedade?". O sinal abre e eu atravesso, sem saber se ele reproduzia aquele pensamento para fazer a crítica a seguir ou, como parecia pelo tom que usava, se reproduzia aquele discurso por ter incorporado como verdade. Quem ele vê como vagabundo? 
Lembro que vagabundo não é quem não trabalha, vagabundo é termo usado para desqualificar o outro, desumanizá-lo. Assim como bandido: um bandido é um homo sacer, alguém que não é mais digno do tratamento dado às pessoas e pode, portanto, ser morto sem as considerações formais, como julgamento ou direito à defesa, e sem remorsos de quem o mata. E isso me faz recordar de Jean Wyllys, e o tamanho do desafio que ainda temos pela frente.
Admiro Jean Wyllys, concordo com muitas de suas posições, discordo de algumas, como acontece com todas as pessoas que conheço e desconheço - comigo próprio, inclusive. Desde muito acho que o twitter não deveria ser material para discussão política: aquilo não é uma arena política, não é a nova ágora pública: é um ringue virtual para rinha de egos e pouca coisa além. Porém, foi alçado a um dos principais meios de comunicação política da atualidade (a estreiteza dos seus 240 caracteres é bem significativo do nível do debate político mundial). Enfim, em 13 de maio, quando o presidente da República finalmente divulgou seu resultado de coronavírus - negativos -, para descrença geral da nação, o político do PSOL escreveu: "Só tenho a relembrar o seguinte: os Bolsonaro me levaram ao Conselho de Ética com um vídeo CRIMINOSAMENTE ADULTERADO (segundo perícia da Polícia Civil do DF). Quem adultera vídeo criminosamente adultera também resultado de exame pra COVID-19. Uma vez bandidos sempre bandidos." (sic)
O texto foi escrito no calor do momento, talvez sem a devida reflexão, e justo por isso ele acaba trazendo cristalino o tamanho do nosso o problema, o quanto a mentalidade conservadora permeia até ativistas os mais progressistas do país. Quando Jean Wyllys generaliza a fala aos Bolsonaro com o "uma vez bandidos sempre bandidos", ele está reproduzindo dois elementos centrais do pensamento mais reacionário e violento do Brasil: primeiro o uso do termo bandido. 
Poderia ter dito criminosos, falsificadores, gângster, mafiosos, ou qualquer outro termo do tipo, bandido há muito não tem mais essa função no léxico comum brasileiro, não serve para apontar alguém que cometeu um crime, mas para marcar alguém que não merece viver em sociedade, ou melhor, não merece viver. Bruno, ex-goleiro do Flamento e assassino de Eliza Samudio, foi cristalino nessa percepção, quando disse: "Cometi um erro grave, mas não sou bandido", tanto que a seguir ele pede uma oportunidade [https://bit.ly/3fzjoPV]. Se bandido fosse sinônimo de alguém que cometeu crime, ele poderia se assumir um bandido e pedir a oportunidade; contudo, por ser bandido ele não tem mais direito algum, conforme nossas leis do senso comum - e ele sabe disso.
O segundo ponto é a inefabilidade: "uma vez, então para sempre". É o argumento de qualquer policialesco, dos defensores da pena de morte, do bandido bom é bandido morto, do excludente de ilicitude. Ainda que direcionado ao presidente e seus familiares, sua frase reforça que bandido é bandido de nascença, por natureza, é irrecuperável e, portanto, não merece outra chance, não merece tentar recomeçar a vida, não merece viver em sociedade, no limite, novamente, não merece viver. É reforçar a marca que um ex-condenado, um ex-presidiário traz no corpo, reiterar o estereótipo, estimular a ideia de que prisão não recupera e nem serve para isso - digo aqui não na prática, não no que seria seu ideal pronunciado -, e que bem faz o Brasil em manter masmorras, pocilgas sem qualquer estrutura para os criminosos.
Passo pela Sé, abarrotada de moradores de rua. É muita gente! Como assinalou uma colega, vez que voltamos juntos do trabalho: muitos dos que estão ali são neófitos (talvez seduzidos pelos atrativos das ruas, como julga a primeira dama do estado?), como dá para perceber pelas roupas, pelas mochilas e pelas barracas, ainda não gastas pelo uso e pelas intempéries. Os pastores voltaram e atraem pequenos grupos de desvalidos abandonados por deus, pelas autoridades públicas e pela solidariedade. Vejo o rapa passar, acompanhando da GCM, recolhendo os pertences de quem nada tem: é feito de tal modo que parece um trabalho burocrático, tão natural quanto o nascer do sol. Afinal, ali os que não são bandidos são vagabundos, e os que não são vagabundos são "zumbis das drogas". E nesse trecho de um quilometro quase completo as categorias dos sub-humanos tupiniquins autorizados a serem mortos - ficou faltando os indígenas, desde 1500 sem direito à humanidade plena (e temos os esquerdistas, que ainda resistem a entrarem no grupo, a despeito do desejo do presidente e de seus seguidores, mesmo os arrependidos, como Sérgio Moro). 
Sigo meu trajeto. Ambulantes vendem máscaras, o hispanohablante vende suas cinco paçoquinhas por um real no lugar de sempre, bares oferecem salgados nas suas portas, funcionários da assistência social, GCM, PM, trânsito, o novo normal é a velha ordem, com a sutil mas capital diferença, sensação do que senti quando visitei a Venezuela, ano passado: nosso tecido social está roto - talvez ainda tenhamos um fiapo para romper de vez, como presenciei lá. Isso parece secundário, ou invisível: agimos como se fôssemos uma nação, como se ainda houvesse solidariedade, como se não estivéssemos todos tomados pelo ódio: de um lado, fascistas que pregam a morte de todo mundo que não pense como o mito; do outro, aqueles que se não desejamos agir com as próprias mãos, por uma questão moral, torcemos para o destino dar cabo o quanto antes dos fascistas, como se fossem todos eles irrecuperáveis (ok, admito que alguns o são mesmo, vide nosso presidente, mas poderia falar de alguns parentes), "uma vez fascista, então sempre fascista" - um acréscimo progressista (?) aos bandidos, vagabundos, zumbis e indígenas.

15 de julho de 2020

quarta-feira, 1 de julho de 2020

As ciências sociais brasileiras e aquele país distante e exótico chamado Brasil


Em minha bolha virtual de esquerda, meu orientador do TCC novamente despontou, semana passada, com uma polêmica inútil. Ano passado havia conseguido iniciar um debate sobre a presença de um stalinista na revista Jacobin e pôs muito da esquerda acadêmica a discutir sobre stalinismo x trotskysmo, em um momento tranquilo do Brasil, governado por Jair Bolsonaro, com universidade atacadas, movimentos sociais criminalizados e o Estado de Direito na lona. Questão de prioridades: combater o fascismo é secundário diante de ver quem tem razão (ou seria a verdade?) frente um colega de luta stalinista.

A polêmica agora é sobre como se escrever um artigo acadêmico. Fosse em tempos de normalidade democrática - seja lá o que isso signifique nestes Tristes Trópicos, tentei pôr um ano para ilustrar, mas não achei um em que não houvesse uma tentativa de golpe (branco, que seja) em curso -, vá lá entrar nesse tópico, para 2020 serve para ilustrar a distância que existe entre parte da universidade pública brasileira e essa terra longínqua chamada Brasil.

Há tempo acompanho a prudente distância esse professor do IFCH (que não se recusou a entrar na Unicamp e ser colega de um notório stalinista, por sinal). Até hoje vinha evitando comentar, por certo respeito e gratidão (afinal, é inesperado um professor chamar um mau aluno, que dorme em todas aulas e quase toda a aula, para ser seu orientando), mas há um limite, e me parece ser pertinente uma crítica - ácida que seja.

Como muitos de seus colegas de IFCH, esse professor é um bom exemplo de classe média que adora se fantasiar de revolucionária (de gabinete): revolucionária no discurso, conservadora nas práticas. Viva a luta dos povos oprimidos, a greve operária, mas greve de aluno não pode; greve de professores pode, mas os alunos de pós tem que entregar os trabalhos na data, por conta das agências de avaliação, e por conta delas também, todo apoio aos trabalhadores do mundo, mas se o orientando for atrasar o prazo de defesa do mestrado ou doutorado porque precisa trabalhar pra ganhar o pão de cada dia, então melhor que nem termine, para não prejudicar sua avaliação de rendimento. Terceirizado precarizados limpando banheiro e sofrendo assédio? Bom objeto de pesquisa, só não venham pedir apoio, a universidade não pode parar por causa de gente sem formação.

No caso específico que me move a escrever este texto, suas dicas de como escrever um artigo científico em ciências humanas preza pela defesa de um texto árido e que siga um modelinho padrão (ele até fala que é possível um estilo, criatividade, mas trata-se de uma suavizada pro-forma). Como pus acima, dicas desse tipo neste momento são da mais absoluta pertinência: sigamos normalmente a vida, fingindo que nada acontece fora dos muros da academia e de nossas casas. Mais: por conta da pandemia e dos protestos antirracistas iniciados nos EUA (país que o referido pesquisador aparenta ter não observado a fundo quando teve oportunidade in loco), uma série de instituições tem sido questionadas profundamente - por ora, a polícia, em especial, mas é de se esperar que logo as escolas e universidades também o sejam.

Nessa defesa do modelo habitual do artigo científico, cabe pontuar algumas coisas. Primeiro é se um texto acadêmico/científico precisa ser árido, se isso é condição para um texto rigoroso, ou se se trata apenas de um modo sutil de afastar o grande público da produção de conhecimento.

Parênteses: egocentricamente vou contrapor minha dissertação de mestrado ao que meu ex-orientador defende (por sorte, meu orientador de mestrado seguia um pensamento de priorizar a prática contestadora, sem esquecer o discurso, claro), por eu ter tentado justo conciliar crítica formal com conteúdo crítico. Fecha parênteses.

Que haja certa linguagem própria, certo manusear conceitos, certo hermetismo, não nego, mas tornar um texto de ciências humanas incompreensível ao público não iniciado, não especializado é necessário? Não haveria como garantir uma compreensão, mesmo que parcial, sem perder o rigor? Talvez meu 9,5 no mestrado, num texto que não seguia padrão ABNT e tentava inovar na forma, numa banca muito rigorosa (Jeanne Marie Gagnebin, Vladimir Safatle e Peter Pal Pélbart), seja indicativo que dá para ser rigoroso e não árido (ainda que tenha me rendido críticas bastante pesadas).

Um segundo ponto é que tal defesa por um modelo padrão revela uma preguiça do professor (afim à preocupação extrema com produtividade), pois o poupa de pensar demais, dá pra pôr o cérebro no semi-automático e ler o artigo sem preocupações formais, só ver se as ideias se encadeiam bem dentro dentro do esquema. Lembro minha pequena desavença com o Peter, meu orientador do mestrado, que perguntava por que não havia intertítulos em meu texto de 180 páginas, questionava o excesso de notas com referências bibliográficas (1518), mas depois da minha insistência e de reler minha dissertação entendeu qual a lógica interna do meu trabalho, que não seguia o padrão academicista e pretendia ser uma crítica formal também, afim ao autor que eu estudara - se fui feliz no intento, é outra questão (por sinal, foi essa dificuldade que me fez desistir do intuito inicial, de ser um texto de parágrafo único e com o título de “Trabalhinho para a obtenção de um título de mestrado em filosofia que por acaso versa sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord”).

Essa preguiça levanta uma primeira grande questão: forma e conteúdo são dissociáveis? A forma não implica em certa forma de produção do conhecimento? Não que a forma atual não seja válida, porém se limitar a ela não é restringir formas alternativas de produção de conhecimento e, portanto, cercear a crítica - em especial uma metacrítica à própria ciência e seus produtos? Ou será que o professor marxista do IFCH acha que os meios são neutros e é o uso que os homens fazem deles que faz a diferença? A energia atômica pode ser usada tanto para a bomba quanto para a eletricidade, a escolha do uso a ser feito é dos homens. Será? Haveria energia atômica se não fosse o interesse na bomba, na guerra, na dominação?

Pode-se ainda questionar se o modelo de artigo científico é realmente relevante para as ciências humanas. Por conta de meu trabalho, mesmo não sendo da área, tenho lido vários artigos sobre o coronavírus: ali faz sentido soltar pesquisas parciais, pois outros pesquisadores podem não apenas replicá-las, como retomá-las a partir daquele ponto, levando a outros lugares. Em ciências humanas, a pesquisa não segue esse padrão e não raro o caminhar do pensamento é tão importante quanto o resultado. Não com isto quero renegar a escrita de artigos (“papers” como o pensamento colonizado gosta de chamar), e sim questionar sua centralidade como índice de produtividade científica e forma de divulgação de ideias. Mas penso, por exemplo, que em ciência política, um artigo publicado em um meio de grande visibilidade, como o Jornal GGN, deveria ser mais relevante que numa revista especializada, de público restrito.

Para encerrar este texto, reitero porque julgo relevante levantar esta questão neste momento: pandemia, isolamento social, crise econômica severa, levantes antirracistas: os questionamentos à ordem que vivíamos até ano passado serão amplos. Já vinham sendo questionados, por sinal. Curiosamente, são questões postas originalmente pelas esquerdas, mas que foram muito bem apropriadas e instrumentalizadas pela extrema direita. Um dos aspectos que será questionado é o sistema educacional como um todo: papel da escola, pertinência da educação à distância, função dos pais na educação das crianças, possibilidade de “home schooling”, produção e divulgação do conhecimento. Neste ponto, as ciências biológicas, que no Brasil são a face visível das universidades públicas, por onde se consegue adesão da população a sua defesa, saem fortalecidas. Poderia ser o caso também das ciências humanas, mas parece que os acadêmicos da área (não todos, claro), preferem insistir em suas hermenêuticas, criticar Átila Iamarino por ter feito uma defesa rasa das ciências humanas no Roda Viva (coisa muito acima do que eles conseguiram até hoje junto ao grande público, independente da profundidade), marcar pontos no currículo Lattes, agir como se o mundo seguisse o mesmo - ou ao menos vai seguir quando este período estranho passar -, assim como os dias seguem às noites, os ciclones bombas explodem no litoral e as nuvens de gafanhoto passam, a sair da torre de marfim que se encastelaram e de onde se julgam os soberanos do saber.



01 de julho de 2020