quinta-feira, 29 de junho de 2023

Um palhaço a tentar resgatar a criança de antigamente

Depois de quatro meses de aula, compramos e finalmente iríamos estrear a menor máscara do mundo. Minha grande preocupação ao chegar na aula e pegar meu nariz era ver como ele ficaria em meu rosto - ornaria ou não? Teria comprado um muito grande ou muito pequeno? (E quem sou eu pra me preocupar com tamanho de nariz de palhaço, eu que tenho uma cabeça pequena e uma napa avantajada? Enfim, a hipocrisia).

A aula foi incomum: ao invés de brincadeiras e exercícios de improvisação, exercícios de preparo corporal - que me trouxeram duas práticas corporais que sinto muita falta, as aulas de dança contemporânea com a Key Sawao e o boxe (a outra é tai chi, mas eu tento praticar em casa, de vez em quando) -, e depois uma fala convidando a rememorar o percurso de cada pessoa, em quem e no que nos marcou em todo nosso processo de vida, até chegar nesse quase-palhaço, nesse proto-palhaço, nesse palhaço-primordial pronto a se fazer em instantes - porque o palhaço é uma persona, não uma atuação. Em roda, porém voltados para fora, de olhos fechados, pusemos o nariz numa inspiração, e lentamente abrimos os olhos. “Vejam o mundo com olhos de criança”, convidou Paulo, o palhaço-professor. 

Abri os olhos muito lentamente, vi a rotunda: a textura do tecido me trouxe de pronto a lembrança do banco do ônibus que ia com minha mãe visitar meus avós. Chegávamos em Ponta Grossa meio da madrugada, eu só com meio olho aberto. 

Anos mais tarde, eu parava para visitar meu avô quando ia de Pato Branco para Campinas. Indicava ao taxista o caminho do asfalto, tal qual minha mãe fazia quinze anos antes, e de olhos bem abertos eu presenciava seu sorriso se multiplicar em dezenas pelo vidro da porta da sala, quando me via, enquanto ele tateava o molho de chaves atrás da certa para abri-la. 

O guarda-louça onde estavam as bolachas que eu comia ao chegar na casa deles, depois de ter ficado em minha casa de Pato, quanto meus pais eram vivos, hoje ocupa minha casa em São Paulo - mas a então criança pouco sabia da morte e das perdas, ou melhor, conhecia, mas não conseguia apreender, por mais que o adulto tampouco saiba lidar direito com elas.

O olhar de criança, de quem está descobrindo o mundo, sugerido pelo Paulo, fez aflorar também uma criança ansiosa por pôr ordem nessas descobertas todas, sem notar o ridículo de sua pretensão de toda uma vida. Uma criança que sofria bullying na escola e que aprendeu a evitar toda demonstração de afetos em público, para evitar ser alvo de chacotas - sempre o menos vulnerável possível, com minha cara de paisagem. O que parece ter refletido naquele nariz foi uma criança apolínea, irritada com todos aqueles palhaços falando fora da ordem, quando dava para se organizar, todo mundo assumir a ribalta na sua vez e a seguir dar a vez para o coleguinha.

O que esse palhaço precisa aprender é que essa criança, agora já adulta, pode entrar na brincadeira, sem medo do ridículo, porque tem repertório para entender a situação que está por trás de nossas ações, medos e anseios - e por saber o quão ridículo, o quão palhaços, somos todos.

 

29 de junho de 2023