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segunda-feira, 17 de março de 2025

O garalho de meu sobrinho [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

Meu sobrinho veio passar o sábado comigo, a pedido do próprio, que me acha legal – para infelicidade de meu irmão e minha cunhada. Já contei alhures que ele estuda numa escola de metodologia Wondermort, e por isso os pais o privam de muitas coisas – não que precisem ensinar a ser um canalha super adaptado ao mundo cão laboral em que vivemos, mas acreditar que criar uma criança alienada do mundo vai lhe dar repertório quando crescer não me parece muito razoável. Não sei bem a idade de meu sobrinho, suponho que tenha algo entre sete e doze anos, mas não é certeza – eu achava isso há uns dois anos, mas pelo visto ele era mais novo.

Pois fomos ao teatro, ver uma peça infantil que muito lhe agradou – houve consentimento de meu irmão, que deve ter analisado bem a sinopse, antes de autorizar -, tanto que o moleque ficou matraqueando sobre o espetáculo por muito tempo. Depois do almoço viemos para minha casa, fazer hora e jogar algum jogo de tabuleiro permitido até que o sol arrefecesse um pouco (porque anunciaram que a onda de calor havia passado, mas esqueceram de avisar que só a onda passaria, o calor persistiu) e fôssemos ao parque.

Nesse ínterim, eis que contra todas minhas admoestações, Carnegie, o Arauto do Apocalipse, me manda uma mensagem de trabalho no whatsapp. É de conhecimento público e notório que se tem uma coisa que me causa ira é receber mensagens de trabalho fora do expediente; que dizer, então, em pleno final de semana – já sacrifico quarenta horas semanais de minha vida, o pouco tempo que me resta quero utilizá-lo para mim, nem que seja para passá-lo com meu sobrinho. Acho que desta vez me fiz entender quando perguntei para ele se gostaria de receber uma figurinha do Corinthians às onze horas da noite de domingo, depois do Palmeiras tomar uma goleada do Timão em pleno Parque Antártica.

Diante de tão inoportuna mensagem, não tive como não conter a exclamação “caralho!”, dita assim, clara e límpida, na frente de meu sobrinho puro e ilibado. Consegui me conter a tempo de seguir enfileirando palavrões, mas ele ouviu e se animou com a palavra, parece que a sonoridade lhe agradou:

Caralho! Caralho! Caralho! Que significa caralho, tio Sérgio?

Não falei caralho.

Falou, sim.

Não. Foi garalho, com g de grilhões, respondi – nessas horas sempre gosto de ampliar o vocabulário do menino, ainda que ele raramente me pergunte o que significa a palavra que ensino.

E o que significa garalho?

Quer dizer “Que coisa”. Recebi uma notícia aqui, e ao invés de dizer “que coisa”, acho mais fácil e mais bonito falar “garalho”. 

Vi que havia sido infeliz na minha colocação e complementei: 

Mas você, que é criança, melhor seguir dizendo “que coisa”, está bem?

Convenhamos, não menti de todo: os linguistas vão dizer que vale o contexto da palavra mais que seu significado cru. Ele anuiu, se deu por conformado e seguimos nosso sábado.

Na quarta-feira meu irmão me ligou. Quando isso acontece, sei que lá vem bronca.

Escuta aqui, Zé Bobão (sim, meu irmão me chama de Zé Bobão quando está muito puto comigo, era como ele me tirava do sério quando éramos criança), já não pedi trocentas vezes para você não falar palavrão perto do meu filho?

Palavrão?, perguntei como quem não está entendendo o motivo de tudo aquilo.

Sim! E ainda ensinou ele errado!

Como assim?!

Não seja cínico! O menino agora está sofrendo bullying na natação. Estão chamando ele de garalhinho.

Como assim?! Por que isso?!

Aconteceu qualquer coisa na aula, e ele soltou um sonoro “garalho”. Ao repetir uma segunda vez, tentaram corrigi-lo e ele insistiu - ainda insiste - no tal garalho. Se fosse ensinar um palavrão, ensinasse logo certo, caralho!

Espero que ele não esteja aí perto. Ou você está querendo ensinar palavrão para ele?

Ele está na aula. E pare de dar uma de desentendido!

Claro, resumi um pouco o sermão do meu irmão, porque ele é bastante prolixo quando diz respeito a me dar broncas envolvendo seu pimpolho (espero que seja um pouco mais breve com a criança, porém não creio). Nesse meio tempo, consegui pegar o dicionário e ver se não existia mesmo a palavra garalho. Havia “garalhar”, que significa “gralhar”. Não ajudou muito, mas gralhar, além de ser barulho de gralhas, tem como sentido figurado “tagarelar”. Ah, salvador pai dos burros!

Escuta aqui, eu falei e quis falar garalho, mesmo, nunca pensei em caralho!

Ah, conta outra!

É sério. Ele voltou do teatro todo empolgado, não te contou?

Sim, gostou muito da peça. Não fuja do assunto.

Então, veio que veio tagarelando, e eu disse “que garalho”, “que tagarela”, do verbo garalhar.

Você quer que eu acredite nessa lorota idiota?

Pois busque no dicionário.

Ele fez a busca e teve que dar o braço a torcer, ao menos eu achei que seria assim - nessa hora também fui puro e ilibado.

Certo, existe garalho. E por que você deu o significado errado da palavra? Quando perguntei se ele sabia o que significava garalho, ele disse que era “que coisa”.

Que coisa! Sério? Acho que me entendeu errado. A certa altura eu falei, “Que coisa, garalho”.

Ele disse que você explicou que garalho significava “que coisa” de modo mais bonito.

Ainda tentei desconversar, entretanto, no fim, tive que assumir o caralho involuntário. Ele não me deu razão para a vocalização do referido vocábulo, apesar de eu tê-la. E ainda emendou mais um sermão - haja paciência, o pai me enche mais que o filho! Próxima vez que me escapar um palavrão, preciso consultar o dicionário antes, para a desculpa colar melhor.


17 de março de 2025



Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Não há nada para além do texto. Qualquer semelhança com a vida real é uma impressionante coincidência, ou fruto da sua mente viciada que quer pôr tudo em formas pré-definidas


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Meu primeiro carnaval (ou, a decadência de um velho roqueiro [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça].

Sim, é isso mesmo que a desocupada leitora, o desocupado leitor leu: este velho roqueiro foi a um “bloco” (já já explico as aspas) de carnaval. E, não, não foi um bloco de róque, foi um show da Luísa Sonsa, mesmo. Mas eu posso me explicar - e contar a bad trip que tive nesse rolê.


Há anos Brotinho insiste para irmos a um bloquinho, e eu, que do carnaval gosto do feriado (e por isso sempre fui a favor, na verdade acho que deveria ser a semana toda), sempre recusei com as melhores escusas, irretocáveis: não gosto, preguiça, sol, calor, música ruim, muita gente, sem falar que não faz sentido falar em bloquinho, assim, no diminutivo, se nele estão milhares de pessoas amontoadas em que você nem escuta o som direito. Se tudo isso não sensibilizasse seu coração de pedra carnavalesco, havia sempre a dor de cabeça na manga.

No sábado, Brotinho me chamou para ir ao bloco do Supla e recebeu meu lacônico e preciso “não”. Não insistiu e foi. Era cedo quando apareceu na minha casa: o bloco estava atrasado mais de duas horas e ela cansara de ficar à toa sob o equivalente a dois sóis - eu a esperava para às seis e ainda nem havia começado a preparar o almoço. Estava frustrada e fiquei com pena d’ela não poder aproveitar o sábado de sol e calor suando ainda mais enquanto esbarrava em desconhecidos tão suados quanto.

No domingo, acordamos cedo e tudo ia bem até que no café da manhã ela me perguntou se eu havia dormido bem. Respondi que sim e ainda acrescentei que felizmente não estava fazendo tanto calor - tanto na madrugada quanto na manhã - quanto nos dias precedentes.

Bola levantada, bola chutada.

Então vamos aproveitar e ir no bloquinho da Luísa Sonza?

Já disse: carnaval não é comigo. Se eu não quis ir ontem nos bloquinho de róque, por que iria hoje, no da Luísa Sonza, que eu nem conheço?

Eu já coloquei ela algumas vezes para tocar aqui.

Então, por que ir no bloquinho de uma cantora que eu nem lembro, felizmente?, tive vontade de responder, mas não quis uma DR logo pela manhã. Outra falha estratégica. Me limitei ao simples Bartlebyano, sempre propício para manhãs, ainda mais de domingo:

Acho melhor não.

Foi então que ela deu o golpe baixo, em que não consegui achar saída, me olhando com uma cara toda fofa de quem diz:

Porra, caralho! Já fui em rolê furado e miado contigo, escuto teus róque sonolentos (ela nunca disse isso, mas sempre que ponho Mogwai, Explosion in the Sky ou algo assim, ela acaba pegando no sono; além de achar que estou brincando quando digo que Mogwai é a melhor banda que já existiu) e você não pode me acompanhar num bloquinho tranquilo, num dia que, você mesmo disse, não está tão quente?

Tudo isso eu deduzi do seu olhar fuzilante e resolvi ceder.

Aos preparativos. Lembrei de uma amiga que dizia que a graça do carnaval era a comunhão com os desconhecidos numa alegria sem sentido - e movido a muito álcool. Como praticamente não bebo, resolvi levar um baseado, se não para entrar em comunhão com os bêbados suados, para tentar não ouvir muito do show (até então eu chamava de “bloco”) da Luísa Sonsa. Ainda me fantasiei de turista para não destoar tanto da festa: bermuda social, camiseta anti-UV, camisa florida por cima, um chapéu de catar ovo e duas strass autocolantes postos pelo Brotinho - umas pintinhas brilhantes - nas minhas maçãs do rosto.

Fomos. Erramos a estação, caminhamos um monte sob o sol de 32º C, chegamos, passamos pela revista, dividimos uma latinha e ficamos ali, em meio a um povaréu, esperando o show começar, bem perto do caminhão de som que servia de palco - e que tinha um telão, mas não passaria o show para os que estavam longe pudessem assistir, o que achei desrespeitoso.

Dei um primeiro pega pouco antes da apresentação começar. Quando começou, por incrível que pareça, até estava gostando do rolê - durou cinco minutos, se muito. Depois disso, achei que já tinha dado minha cota, porém não podia falar para Brotinho. Decidi dar mais um pega, para seguir suportando a festa. E aí, na mistura de maconha, sol escaldante, calor tórrido, pouca ventilação, um monte de gente aglomerada ao meu redor, suor, som alto, leques batendo assustadoramente, fome, sede e um pouco de álcool, eis que começo a passar mal. De início achei que era uma dor de cabeça, entretanto, quando as coisas começaram a girar - lentamente, mas girar -, vi que estava era com a pressão caindo, mesmo. Até pensei atribuir a bad trip a um berinjonha, que fez Goreti passar mal uma vez [http://bit.ly/cG230102], mas lembrei que a caponata de berinjela havíamos deixado para comer depois da folia (ou “folia”).

Brotinho achou por bem irmos para longe do palco, sair da muvuca, para prevenir que eu não fosse pisoteado, caso desmaiasse. Delicado da parte dela, ainda que provavelmente só aceitou isso para que eu não estragasse sua festa. E assim passamos o carnaval, sempre na rabeira dos foliões, ela dançando alegremente e eu sentado, sentindo o que estava sentindo. Para ver se eu melhorava, ela ainda me comprou um refrigerante de cola - uma das coisas mais intragáveis, na minha opinião -, e talvez pela primeira vez na vida bebi uma latinha inteira. Para ser pior, só faltou roubarem meu celular, e isso não deve ter acontecido porque não os levamos. O que, ao menos, trouxe uma outra ótima consequência (além de continuar com o aparelho): se não tem registro, não aconteceu. 

Ao cabo, voltamos para casa, os dois cansados, acabados - ela de pular, eu de passar mal -, eu queimado nos joelhos, mãos e pescoço - onde passei protetor solar, como pernas e rosto, até fiquei bronzeado. Foi aí que entendi porquê tantas mulheres irem de biquini no carnaval: retocar a marquinha.

Se, na segunda, alguém da bancada me perguntasse onde me queimei desse jeito, diria que no Ibirapuera (enquanto sentar na grama ainda não é pago). O problema era que as pintinhas brilhantes - as strass autocolantes - não pegaram sol, e me restaram as marcas delas, brancas em meio ao rosto bronzeado, parecendo duas enormes espinhas cheias de pus, pedindo para serem espremidas para ver qual distância conseguiriam alcançar. Enfim, ao menos sobrevivi; e dos males, o menor.

Mas eis que, domingo, mesmo, Brotinho entra no Instagram da artista e me enxerga no vídeo do início do show, feito a partir de um drone que voava baixo. Não tem como negar: sou eu a araucária que se destaca pelo tamanho e pela camisa ridícula, com cara de quem está pensando na morte da bezerra. E ela ainda me manda o print do vídeo, o que me pareceu quase um ato de chantagem! Ou seja, para além de passar mal e sair todo traumatizado, cheio de glitter que nem havíamos usado e ainda não saíram de todo, queimado e com duas espinhas purulentas falsas, nem tenho mais como negar fui ao bloquinho da Luísa Sonsa. Diante disso, prefiro eu contar, antes que se espalhe como fofoca e cresça de tamanho. Foi só o da Luísa Sonsa!


24 de fevereiro de 2025


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Sabonete da discórdia [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


 Este fim de semana meu sobrinho, sem querer, acabou gerando uma pequena crise entre mim e o Brotinho.

Quando meu irmão, sua esposa e seu filho chegaram, eu estava no banho. Não me apressei por isso, afinal nos vemos seguidamente. Saí do banheiro, já entrou correndo meu sobrinho - que tem algo entre seis e doze anos, não sei - dizendo que a marmota estava se mordendo para sair da toca. Sim, meu irmão se queixa e me recrimina toda vez que vem aqui por ter ensinado essa piada do final dos anos 90 e que hoje soa como de tiozão.

Cheguei na sala e tratei de começar pelas perguntas de praxe, ver se meu irmão esquecia da marmota nesse ínterim. Melhor que tivesse lembrado e não dado atenção ao filho. Eis que a criança vem correndo do banheiro e me interpela:

Credo, tio, por que está aquele cheiro de lavanderia de petshop no banheiro?

De pronto Brotinho saltou do sofá, dedo em riste, alternando sua direção entre mim e meu sobrinho:

É isso! É isso!

E com o ânimo que meu sobrinho falou sobre a marmota, ela pegou meu irmão e a cunhada e os levou até o banheiro.

Venham! Venham ver se ele não tem razão!

E lá foi ela expôr meu ridículo ao meu irmão. Olhei para o sobrinho, pronto para fazer um draminha (não era nada que merecesse dar bronca), ele devolveu com um sorriso inocente de quem me prestou uma grande ajuda (o que faz com que acredite que ele esteja entre seis e oito anos).

Eles voltaram às gargalhadas. Gargalhavam de mim, graças à ingenuidade do sobrinho. E Brotinho, ao invés de me ajudar, ir apenas ela ao banheiro comprovar sua tese, ou melhor, a tese do sobrinho sobre o cheiro do meu sabonete, ligar o exaustor e esperar o cheiro ir embora, não! Ela preferiu me expôr, e fazer com que meu irmão tirasse sarro da minha cara a tarde inteira - com direito a apelidos bobos de quarta série, mas daqueles que incomodam. E de nada adiantou reconhecer que, agora que falaram, eu também sentia o cheiro de petshop.

Foi então que a indisposição entre mim e Brotinho começou:

Eu vinha mesmo sentindo um cheiro estranho em você por estes dias, achava que poderia ser a roupa que demorou para secar. Agora que sabemos que é seu sabonete, dá para jogar fora e está resolvido, disse ela.

Eu comprei uma dúzia.

Como assim?!, Brotinho trazia um meio sorriso nervoso, de quem espera uma pegadinha tosca.

Gostei do cheiro, comprei vários...

Eles estavam em promoção?, questionou meu irmão, abrindo outro flanco na batalha.

Mas não foi por isso!

Ainda que foram baratos, não vai custar tanto jogar fora, né?, insistiu Brotinho

Já disse, gostei do cheiro de petshop.

Mas te abraçar vai me trazer a imagem de um cachorro ainda úmido com uma estrelinha na testa. Não precisa, né?

Vai parar de me abraçar só por causa do sabonete?

Meu contra ataque parecera certeiro, amolecia seu coração de pedra e faria ela parar de implicar com o cheiro de meu sabonete,

Claro que não! Se você gosta, tem que usar mesmo! Mas não vai ter como eu não te chamar pelo apelido que seu irmão te deu, meu Doguinho.

Porra! Doguinho, não. Apelido bocó, de quarta série.

Após agradecer por ter usado um termo de baixo potencial ofensivo na frente de meu sobrinho, meu irmão começou a fazer careta enquanto me provocava “Doguinho, eu sou Doguinho, eu adoro os tios e as tias do petshop”, apesar das admoestações de minha cunhada, que tropeçava nas sílabas do tanto que ria.

Doguinho, não!, fui enfático.

Que tal petinho, então?, propôs Brotinho.

Não sou garrafa plástica. 

Não teve como não discutirmos e nos acertarmos naquela mesma hora, como duas pessoas da pólis. Assim, chegamos a um meio termo: seguirei com meus sabonetes de petshop, sob a condição de não comprar mais depois desses, enquanto Brotinho me dará meia dúzia do que ela acha mais adequado, para ir alternando - fiz questão de meia dúzia para ela não comprar um fedorento, só para seguir me tirando, junto com meu irmão. Ademais - numa óbvia troca desigual - ela podia me chamar de Doguinho quando usasse meus sabonetes, mas (foi o que consegui barganhar) com parcimônia e apenas depois do banho, quando o cheiro fosse evidente.

Acordo de fim de DR firmado sob o testemunho de meu irmão, minha cunhada e meu sobrinho, que nos abençoou com os dedos em forma de quem pede dinheiro.

O pior da DR foi à noite, quando ela me chamou de Doguinho e eu perguntei qual raça seria a minha. Melhor parar por aqui.


13 de fevereiro de 2025


segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Sem perspectivas de teletrabalho, Goreti parte para a ação direta [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça]

Já contei alhures da mudança de diretor geral e o fatídico episódio da máquina de café - e esqueci de complementar: o liberal engomadinho que agora segura o “chicote da motivação” não deu conta da pressão dos funcionários e três dias depois estavam as máquinas funcionando normalmente. Nenhuma novidade efetiva desde então (parece que ele resolveu tirar férias neste fim/início de ano, apesar de estar recém começando na função), porém as fofocas já correm a mil. Elas vão de cortes no pessoal à contratação de novos funcionários, passando pelo diz-que-me-diz que a promessa de que o dia (um mísero dia na semana de cinco dias!) de teletrabalho não acontecerá tão cedo. 

Claro que ficamos indignados. Comentamos pelos cantos sobre nossa frustração com essa possibilidade, compartilhamos textos sobre o assunto, sendo o mais interessante o do Hamilton Carvalho, “O problema do home office” (https://www.poder360.com.br/opiniao/o-problema-com-o-home-office/); e xingamos muito no Bluesky (no Whatsapp estamos nos segurando um pouco, vai que Zuzu já esteja vendendo conversas em seus detalhes para quem estiver disposto a pagar?). Goreti, contudo, não é de ficar se queixando na cadeira e partiu para a ação direta.

Hoje ele estava com um comportamento estranho: chegou com uma grande mochila e de tempo em tempo verificava a hora e saía da sala. Nos olhamos curiosos, mas preferimos não falar nada num primeiro momento: estava agitado e parecia preocupado. Meia hora antes do horário de almoço começamos a sentir um apetitoso cheiro de tender - certamente saído do refeitório, que fica no meio do corredor. Foi então que Goreti tirou da mochila uma pequena panela de arroz e uma sacola de mercado e saiu novamente da sala. Dessa vez não me aguentei: fui atrás dele.

Fomos até o refeitório (que além de microondas é também servido de um forno elétrico), e eis que o nobre colega estava fazendo um tender, e agora iria preparar o arroz. Perguntei o que era aquilo, ao que me respondeu:

Já perco as manhãs de sábado fazendo faxina na casa, cansei de perder também as de domingo cozinhando pra semana. A partir de agora, vou economizar nas contas da casa usando a estrutura que a empresa nos oferece. Se não teremos teletrabalho, que lidem com isso. Já é muito que eu trouxe a lentilha pronta de casa.

Do bolso sacou um papel em que mostrava a economia que teria ao não usar sua cozinha. E da sacola tirou alface, tomate, cenoura, brócolis, uma tigela e vinagre. A alface e o tomate deixou de molho; o brócolis e a cenoura pôs na parte para fazer legumes no vapor da panela de arroz. E voltou ao trabalho.

Na hora da refeição, causou frenesi no refeitório seu banquete. Nós crescemos os olhos e perguntamos se ele não iria dividir com os colegas, ao menos os da bancada. Ao que o nobre colega, para além da humilhação que era seu cardápio, respondeu com sua habitual muquiranice argumentativa:

Não.

Foi só depois de insistirmos explicou que seria sua marmita dos dias seguintes. Mas nos deu a deixa:

Amanhã o forno estará liberado, é só trazer o frango ou a carne já temperada.

E ainda ofereceu a panela de arroz, desde que dividamos o custo do insumo e a lavemos.

Ninguém por enquanto decidiu entrar na ação direta iniciada por ele, mas tem gente pensando seriamente em aderir. Um pessoal, inclusive, tem conversado animadamente em usar o forno para fazer bolo ou pão, para o lanche da tarde. Se isso vai comover a diretoria a instaurar o teletrabalho, não sabemos, mas nosso expediente promete ser cheiroso.


13 de janeiro de 2025


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Desfazendo-me

Calendários de bolso de 1975 e 1996, uma nota fiscal de quando morei com minha mãe, após o falecimento de meu pai; programas de orquestra, revistas de teatro, quatro anos de minhas crônicas encadernadas; um recorte de jornal de 1972, outro da greve dos bancários de 1990, uma foto do Motorhead autografada, bilhete do meu irmão avisando que foi na casa de um amigo, declaração de imposto de renda de 1990 de meus pais, carteirinha da minha mãe da biblioteca pública de Pato Branco e a minha de meio passe em Ribeirão Preto, recorte de 1992 com dicas de investimento, cartões telefônicos, um cartão de visitas com a sutil indireta “Disfarce... e saia de fininho que você aqui não está agradando”, caderno da minha mãe de 1968, DVD sobre Jango, do filme Pachamama, do Erik Rocha, de Sonhos, do Kurosawa, do NME Aniversário (no qual achei um texto meu que não lembrava); muitos CDs de blues, CD da Swan, da Tresbella Big Doce Band, do curso de alemão que não fiz; planta da reforma da casa de Pato, feita em 2021; nota fiscal da compra da Biblioteca Científica Live, em 1971; revistas dos GPs de Fórmula 1 a que assisti, guias de viagens que nunca fiz, mapas turísticos de cidades que visitei, bilhetes de metrôs de Lisboa e Barcelona, a carta com meu rendimento no vestibular da Fuvest, quando fui aprovado em psicologia; a revista dos 500 GPs e um capa de filme fotográfico com propaganda da Fórmula 1, de 1988; livro dos recordes de 1996, partituras - algumas que acalentaram meus dias de fossa da adolescência, outras que nunca toquei -, um guia turístico de Curitiba, de 1991; “livros” que escrevi para a matéria de português quando tinha dez, onze anos; vinte anos de agendas, bottons da Del-O-Max e do Pumas, um mini transmissor FM, instruções para uma prova de datilografia, cadernos e cadernetas variados - escritos, desenhados e totalmente em branco -, livros, muitos livros (de etiqueta, de despertar interesse científico em crianças, da coleção Os Pensadores); um gibi do Cascão, alguns do Recruta Zero; o primeiro livro que eu lembro de ter querido comprar - “História dos povos indígenas - 500 anos de luta no Brasil -, cocar, arco, flechas e flauta peruana de enfeites; panfletos do show da Cássia Eller, Almanaque Abril de 1971 (com um marcador na págida do “Calendários passados e futuros”, cujo futuro termina em 1999), camisetas da época do ensino fundamental que foram promovidos a panos de tirar pó e hoje são fiapos. Me desfaço. Abro caixas aleatórias - não são os espaços reservados para lembranças - e delas saem memórias e mais memórias; minhas, dos meus pais, da burocracia, de consumo. Nesses pedaços de papel e quinquilharias, imagino o que meus pais não viveram, no que não pensavam para terem separado aquilo; lembro dos muitos que fui e de tudo o que fracassei - felizmente - para me tornar quem sou. Não são pedaços apenas do passado, mas do futuro do pretérito. Me perco em relembrar e imaginar possibilidades. “Eu sou a continuação de um sonho”, fala a atriz na peça Reset Brasil, a que fui assistir hoje. Sou a continuação dos sonhos de meus pais, meu avós, de meus sonhos de antigamente. Mas sou também os sonhos abandonados pelo caminho - até para dar espaço a novos sonhos. E sejam individuais, sejam coletivos, eu sigo sonhando - e vivendo. 


28 de outubro de 2024













quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Cena urbana

O sinal fecha. Olho à minha direita. Ao fundo, o brutalismo da estação Armênia interrompe qualquer horizonte possível. Já a praça ao lado parece um acampamento de guerra: é um acampamento dos desvalidos, com precárias barracas improvisadas. Pessoas que me aparentam sem horizontes nesta sociedade. Garoa, mas isso não espanta dos bancos os homens que ali passam o tempo (não vi mulheres). Sobre o que será que conversam? Matam o tempo, à espera que este os matem (a morte violenta seria a outra alternativa)? A praça parece uma área proibida a quem não é um miserável, não por imposição deles, mas por medo nosso. No ponto de ônibus da praça, sete pessoas se protegem da garoa. Um homem - um dos "moradores" desse lugar de passagem - se aproxima e tenta cumprimentar algumas dessas pessoas, sem muito sucesso. Passa, então, a dançar estilo o Michael Jackson e tenta novamente cumprimentar as pessoas. Três o fazem, os demais o ignoram ou se afastam. Reparo que o homem veste uma luva preta na mão direita, dessas que se usa em restaurante. Ele pula na frente do carro e começa a dançar para nós. Dura uns trinta segundos sua apresentação. Imagino que vá pedir uma moeda depois disso, mas ele simplesmente sai e vai ao encontro dos seus companheiros de abandono. O sinal abre e a cidade volta a passar indiferente pela janela do carro.



23 de outubro de 2024

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Aulas de canto [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Cansado de passar vergonha no karaokê, há dois meses decidi fazer aula de canto. O Brotinho foi contra: dizia que a graça do karaokê está justo na vergonha. Discordo veementemente dela, e acho que sua oposição à minha decisão é medo de passar vergonha sozinha, já que ela canta pior do que eu - o que ela discorda. Em tempo, também discordo veementemente de quem acha que a graça de karaokê é cantar música ruim, tipo sertanejo - e falo isso sem fazer juízo de valor, mas com a fria lente da realidade nua e crua -, e já deixei claro aos amigos que se for para ir por essas trilhas nem me chamem, que eu saio no meio e não pago minha parte! 

Karaokê é para a gente brilhar e achar que poderia ser um cantor ou cantora de sucesso - não fosse a triste realidade das quarenta horas -, assim como criança eu achava que poderia me tornar piloto de fórmula um por mandar bem no joguinho World Circuits, no PC (e ainda acredito piamente que só não fui mesmo piloto de fórmula um por falta de herança de meus pais, o que me impediu de desenvolver e mostrar meu talento).

Às aulas de canto, enfim. A professora, preparadora vocal de alguns neófitos da música brasileira que tem despontado, falou que em um mês se pega duas músicas, nos casos mais difíceis, mas em geral são quatro músicas no mês - não necessariamente uma por semana, mas treinaríamos várias músicas nas aulas e ao fim de um mês eu teria um repertório de ao menos duas.

Ela perguntou o que eu gostaria de cantar e mandei meus rockzinhos marotos, de Radiohead a Oasis, passando por Cake, Pato Fu, Fito Paez e Sheryl Crow. E as crianças do CCSP que inventem de chamar isso de música antiga, quando as cantam (menos Fito, que nunca nem devem ter ouvido falar) nos finais de tarde de domingo, em frente ao referido local: são músicas que ouvi quando adolescente/jovem adulto e não estou tão velho assim - apesar dos desmentidos do corpo, e das crianças que cantam em frente o CCSP, que me chamam de “tio irado”, a depender do modelito que estou usando. 

Começamos com três músicas nas duas primeiras semanas. E diante dos meus avanços, a professora achou por bem ficar só com uma - a que mais exige, disse ela, ainda que eu acredite que fosse a mais fácil. Aula vai, aula vem, superada a dificuldade de acompanhar a linha melódica, veio a dificuldade em achar o tom da música. Um mês nessa tarefa inglória e a professora propôs algo inovador: mudar o tom da música! Não diz o ditado que se Maomé não vai até a montanha, a montanha vai até Maomé? E assim foi feito. Já estou quase mantendo o tom na música inteira - o problema vai ser cantá-la no karaokê, já que lá é o tom original.

Em resumo, de três músicas por mês, fiz a professora assumir que será três meses por música. Mas eu sigo firme e forte! E disposto a deixar o Brotinho passar vergonha sozinha!


17 de maio de 2024.



PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sábado, 27 de abril de 2024

Quiropraxia [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]


Depois de passar a semana maldizendo uma dor na costas - mais especificamente na lombar -, Macedo finalmente aceitou a sugestão de Meireles e foi atrás de um quiropraxista (é assim que fala? Ou é quiroprático? Quiróprago? Enfim, um profissional de quiropraxia), deixando de lado a sugestão de Goreti de terapias holísticas - reiki com sanguessugas, para ser preciso; quero dizer, reiki ao mesmo tempo que as sanguessugas, não são as sanguessugas que fazem o reiki, como de início ele deu a entender. 

Achei ambas ideias ótimas e super apoiei a quiropraxia quando Macedo se decidiu por ela, por mais que nunca que pretenda me aventurar por tal senda (nem com reiki, nem com sanguessugas, diga-se de passagem), visto que tenho certa agonia a estalos corporais - o que ainda causa sérias desavenças entre mim e meu Brotinho, que alega se excitar com esses “momentos de crocância”, como ela diz. Na verdade, o apoio se deu mais porque não aguentava mais ele se queixando - que se resolva ou sofra em silêncio!, pensei e não disse, mas agora ele vai saber, ao ler este texto.

Sigamos. A indicação de Meireles era cara e Macedo já pensava em desistir quando numa busca rápida pela internet achei um que havia perto do trabalho e por um bom preço. Decidiu ir logo após o almoço.

Estávamos compenetrados trabalhando (leia-se estávamos fingindo que trabalhávamos enquanto fazíamos algo importante, como conversar por whats ou ler notícias, esperando dar a hora do sextou libertador, ou meio libertador, ilusão de libertação, auto-engano de alguma alegria, aquela sensação de breve respiro, que seja, das duas noites até o próximo dia de labuta). Retomo que me perdi no parêntesis e acho que a desocupada leitora, o desocupado leitor também. Estávamos compenetrados trabalhando quando Macedo retoma com cara de poucos amigos, andando torto. Mas não o andando torto de arqueado, e sim de pés meio de lado, estava estranho, muito estranho, um torto de carro bem mal regulado, de cachorro cujas patas traseiras são mais rápidas e por isso precisa andar com elas ao lado do corpo.

E aí, passou a dor? - perguntou Meireles, fingindo ignorar o estranho jeito que nosso colega se movimentava e mesmo sentava.

Passar, passou, mas agora estou com as costas travadas assim, tendo que andar feito um Curupira de 90 graus.

Meireles não soube explicar o que houve - nós menos ainda -, apenas disse que isso nunca tinha acontecido com o quiropraxista, quiroprático, quiróprago dela. Mas antes de dar a deixa para que Macedo começasse a se queixar, viu a coisa pelo lado bom - ao menos havia parado de doer -, e discordou dele que estava um Curupira de 90 graus, pois ainda estava agudo, iniciando assim a importante discussão de a quantos graus estava nosso colega. Os observadores externos concluimos que devia ser algo em torno de 45 graus - quem sabe até menos. Decidido isso, voltamos todos a ficar compenetrados em nossos trabalhos, comemorando silenciosamente que é sexta-feira e quem vai ter que aguentar Macedo maldizendo o quiroqualquer coisa no final de semana é a Senhora Maceda, não nós.


26 de abril de 2024

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Tilt Test [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Dia desses andei tendo umas vertigens estranha. Uma vez, vá lá, acontece. Duas, a gente fica alerta. Quatro, aí a preocupação aperta - ainda mais depois de consultar o Google. Porque se as vezes que tive essas vertigens foram em casa, sem maiores riscos, imagina se a tenho na rua, se desmaio no meio do centro de São Paulo num início de noite ermo. Ou, então, acontecer de eu ir num restaurante caro e logo em seguida ter a tal vertigem e devolver a comida, como aconteceu na terceira vez - em que acreditei que a tontura era por conta de algo que comi, mais especificamente um gorgonzola com nozes, macadâmia e damasco, turbinado por fungos outros, que só vi depois de vários pedaços -, seria muito frustrante e uma grande perda de um dinheiro que não me sobra tanto assim.

Após a quarta vertigem em menos de um mês, como disse, fui perguntar ao Google o que mais poderia ser, além da óbvia labirintite com a qual eu já havia me auto diagnosticado. As opções iam de estresse e ansiedade a tumor no cérebro em estágio avançado - e eu estou com uma pinta estranha nas costas, já faz um tempo, que temo poder ser um melanoma, vai que já se espalhou...

Conto para o Brotinho, que praticamente me obriga a marcar médico - o que eu já ia fazer, a diferença é que por influência dela acabo indo para um neurologista e não para um oncologista, como pretendia.

O médico me faz uma série de perguntas, descartando logo de cara minha nova certeza (de início, achei que era só porque não é a área dele): tem dormido bem? Não. Se exercitado? Não. Tem andado estressado? Muito - afinal, nos encarregaram de preparar pequenos cursos de apresentação do setor aos novos contratados, o que já me desagradou, mas tudo piorou quando Desembargador propôs que sejam teleaulas, proposta aceita com entusiasmo pelo chefe, que anunciou esses dias que já tinha alugado o estúdio.

Até a labirintite ele praticamente descartou de cara, centrando no estresse. Por via das dúvidas, preferiu que eu fizesse alguns exames. Um deles, que necessitava de acompanhante, era o “Tilt Test”. Chamei Macedo para me acompanhar, e ele concordou que o exame soava assaz interessante pelo nome.

Sabe como é?

Segundo o médico, me amarram numa mesa e medem minha reação às inclinações dela.

Achamos muito pouco para um exame de nome tão convidativo. E enquanto esperávamos eu ser chamado, ficamos imaginando o quão interessante não seria.

Lembramos dos tempos do fliperama, quando chacoalhávamos demais a mesa de pinball e vinha o aviso de tilt. Nos pareceu razoável, chacoalha pra lá, chacoalha pra cá, tipo o brinquedo samba dos antigos parques de diversões, mas em versão compacta, e vê como o sujeito lida com todo o sacolejo: se só fica tonto, se passa mal a ponto de querer devolver o que poderia ter no estômago (fica como caso hipotético porque eu estava em jejum, inclusive de água), até o ponto de desmaiar - daí a necessidade do acompanhante. Achamos que um chapéu mexicano compacto seria pouco provável, pois exigiria uma sala muito grande - mas não deixaria de ser interessante, a pessoa presa pelos pés, sendo rodada alucinadamente, ver se reagem bem a esse teste, ao que eu lembrei que aí não seria tilt.


Entrei na sala, colocaram o eletrocardiograma em meu peito e o medidor de pressão no braço. Me amarraram numa maca simples. Fiquei a me perguntar se seria manual o tal tilt test, um enfermeiro bombado dando trancos na maca, sacolejando-a e inclinando-a até eu passar mal - não seria um emprego tão chato assim, além do mais. Mas, quê?! Eu imaginando que seriam poucos minutos sem fim de angústia e sensações diversas no meu corpo, mas nos quarenta minutos que durou, tudo o que passei foi tédio. Vinte minutos inclinado a vinte graus, outros vinte a quarenta graus, depois volta. Me perguntei se o jejum antes de evitar sujar a sala toda, não era para evitar refluxo, mesmo.

Está tudo bem? Não está passando mal, muito enjoado?

Me pergunta a enfermeira, como se eu tivesse passado por um teste pesadíssimo.

Do lado de fora, Macedo me esperava ansioso pra saber como foi.

Todo esse tempo, deve ter sido sofrido, não? Ou essa demora foi para conseguir ficar bem até conseguir se levantar de novo?

Como a desocupada leitora, o desocupado leitor que chegou ao fim deste texto, Macedo também murchou com todo o sem graça do tal "Tilt Test". E, sim, era só estresse, mesmo.


09 de abril de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo e as esquerdas


De Antônio, meu avô paterno, tenho duas lembranças vagas da minha infância: uma, num almoço da família do meu pai, era ele quem preparava o churrasco, num tonel de metal, entre a caixa de areia e as parreiras, na casa de Pato, mais ou menos onde hoje fica a churrasqueira; a outra, devia ser um fim de tarde, pelo sol alaranjado e oblíquo, talvez depois da escola: estávamos na cozinha da sua casa - ele então morava sozinho -, e meu pai reclamava que ele não tinha sequer banana, ao que ele respondia que tinha uma laranja, algo assim. 

Digo, essas duas são lembranças de antes de 1990. Depois tenho várias, e marcantes. Pois meu avô era alcoolista, e em maio desse ano teve um AVC. Como estava morando sozinho, devido aos comportamentos violentos gerados pelo álcool, demorou para o encontrarem. Foram nove anos morto em vida, sem conseguir sair da cama, sem conseguir se comunicar - e o geriatra sempre elogiava meu pai, que cuidou dele esse tempo todo (apesar de serem em nove irmãos), pois ele não possuía escaras, tomava sol, tinha a fisioterapia básica em dia, tudo feito por meu pai, com auxílio de minha mãe e Cecília, a mulher que trabalhava em casa naqueles anos (com férias, 13º, INSS e todos os direitos, mesmo antes de isso ser obrigatório). Eu era criança e muitas vezes tinha vergonha dele quando meus amigos iam brincar comigo, pois até a chegada de meu pai do trabalho, para banhá-lo e fazer os exercícios, ficava o cheiro forte de cocô. Meus amigos talvez se impressionassem mais com a figura daquele senhor deitado ou sentado, “falando” “bã bã bã bã”, às vezes chorando em seguida. Meu irmão, que tinha três anos quando o derrame aconteceu, sequer possui outra imagem dele que não de um homem numa cama.

Falo disso porque dia 18 de fevereiro é o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. Não sei o quanto o álcool foi responsável pelo seu “derrame” - como se dizia na época -, mas lembro que diziam que a demora no socorro foi crucial para as graves sequelas com que ficou - e isso, sim, consequência do alcoolismo (e do patriarcado/machismo), que fez com passasse a dormir com um machado ao lado da cama, por suspeitar/delirar que minha avó tinha um amante.

Criticar o abuso de drogas, em especial do álcool, ainda é complicado dentro da esquerda e do campo progressista - como se não houvesse um degradê entre a abstinência e o abuso. Daí que geralmente restam aos setores mais conservadores a crítica ao abuso (e ao uso) de álcool e drogas, defensores da abstinência e da proibição - duas soluções simplistas e fracassadas, tanto no plano individual quanto coletivo. Ao mesmo tempo, a indústria da bebida, faz a farra e enche as burras*, graças a ostensivas e agressivas estratégias de publicidade [https://bit.ly/3I54kJR]. 

Na minha bolha de esquerda classe média, ao menos, vejo o quanto o marketing cervejeiro - em especial - tem conseguido bons resultados, impedindo uma visão crítica do problema e sua discussão a sério. É muito comum nos finais de semana fotos com copos e garrafas de cerveja, como tótem, como sinônimo de comemoração, como representante do deus da alegria e da felicidade. Contudo, nem sempre se sorri por felicidade, nem sempre se brinda a sério, nem sempre se bebe para celebrar - por mais que o diga. Como em um conto do Mia Couto (cujo nome me foge agora), em que o pai da noiva, gastando tudo o que tem e não tem na festa de casamento da filha, repara ao interlocutor que pela primeira vez a população local está bebendo para celebrar e não para se esquecer. 

Esquecimento, é com isso que a publicidade de cerveja trabalha. Esquecer que é uma droga, esquecer que ela tem poder de adição muito grande e difícil de se recuperar, esquecer que pode matar por abuso ou abstinência (sim, ela e heroína!), esquecer que causa uma série de problemas individuais, familiares e sociais - assassinatos, seja por motivo fútil, seja por atropelamento. Esquecer que é uma droga legalizada que dá muito lucro a particulares e muitos custos à sociedade.

Parte da esquerda, assim como outrora comprou o discurso do cigarro, e fazia uso e se deixava fotografar com um na boca, porque era sinal de rebeldia e personalidade forte, agora adere sem crítica ao discurso da cerveja como sinônimo de alegria, de comunhão, de prazer, de ser mais um na multidão. É curioso como a cerveja se desenha como o oposto do cigarro (e outras drogas), como uma prova não de individualidade, mas de pertencimento, de apagamento das diferenças. Me parece impraticável uma propaganda de cerveja de um vaqueiro solitário no deserto texano, ou um slogan com “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”: a cerveja trabalha com o apagamento do sujeito e o reforço do comportamento gregário, inclusive com forte pressão sobre os abstêmios (que não é meu caso, só para deixar claro), de que seriam chatos. É um ethos bem afim ao discurso neofascista.

Há tempos defendo que deveria ser proibida a propaganda de toda qualquer droga (inclusive legais, inclusive remédios), assim como deveria ser legalizada a grande maioria delas, com regulação e fiscalização severa sobre locais de venda e uso. Ao mesmo tempo, deveria haver uma campanha séria de alerta dos riscos e de prevenção ao abuso, feito por profissionais da saúde, e não por militares que tratam a questão como caso de polícia, defendem repressão a pobres (“vagabundos que não querem trabalhar” porque, sem qualificação, trabalham para o tráfico ganhando pelo menos quatro salário mínimos), a abstinência aos jovens (em patéticos, folclórios e inócuos cursos de Proerd), ao mesmo tempo que eles próprios usam drogas - há um caso explícito de um futuro deputado federal bolsonarista pelo Paraná que assume usar a drogra apreendida**.

Há também o esquecimento do porquê do abuso de álcool e outras drogas: uma vida sem sentido, sem utopias, pressão extrema nos estudos e trabalho. Quanto a estudos, lembro até hoje o clima pesado que tinham as festas da Unicamp, ainda mais em comparação com as da UFSCar, o desespero dos estudantes em tentar esquecer da pressão que sentiam - não por acaso, casos de suicídio ou tentativas de eram abundantes (eu ironizava muito isso no Trezenhum. Humor Sem Graça., seja com o curso de “Ikebana e harakiri” ou a Fapesp rebatizada de “Fepesp”). Já ao trabalho, senti na pele isso, e o abuso (ainda que "moderado") foi um dos sinais que notei que algo estava muito ruim na minha vida laboral, e apesar de ter buscado ajuda, não impediu que eu tivesse um burnout (conhecido em português como crise de estafa) violento, que até agora me alija de várias atividades (se alguém acompanha meus textos, notou um hiato de dois meses e depois uma produção bem lenta). A esquerda, acuada, tem lutado apenas para não perder o pouco que conquistamos, e não tem conseguido mais aglutinar pessoas em torno de um ideal, mobilizar em favor de um projeto utópico - e me refiro até mesmo a coisas simples, como a diminuição da jornada para 24 horas semanais, por exemplo.

Por fim, o outro esquecimento que as esquerdas costumam ter com relação à bebida é o das consequências disso dentro de cada classe: um alcoolista que é chefe de família na periferia é bem diferente de um alcoolista (ou outra drogadição) que reside em bairro nobre e cuja família não depende de seus ganhos, para ficar num exemplo bem básico.

Enquanto seguirmos ignorando essas diferenças de classe e de tudo o que o abuso de álcool e drogas implicam na vida de populações marginalizadas, e não começarmos com um discurso abarcando também questões individuais disso - para além de questões estruturais de violência policial da guerra as drogas -, em prol de um uso feito com consciência e “com moderação” de verdade, seguiremos entregando parte dessa população, sem utopias e preocupadas com as consequências mais imediatas das drogas sobre a família a discursos moralistas, de resoluções simplistas que vão resultar em violências - física, estatal, simbólica, emocional - contra essas mesmas pessoas. Enquanto isso, essa direita mais retrógrada, que encampa esses discursos, contentemente brinda nossa incompetência em ouvir a população.


18 de fevereiro de 2024

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Há dois anos, eu preparava minha nova identidade

Numa conversa, em sua última semana de vida, estávamos minha mãe, eu e meu irmão em sua cama. Ela dizia que partia tranquila, ia feliz: tinha tido bons pais, um bom marido, bons filhos - uma boa vida, em suma. Ela estava sendo sincera, ainda que eu desconfie que a depressão - escancarada de vez durante a pandemia -, tivesse feito com que desejasse encerrar seu ciclo prematuramente: ela tinha 69 anos e não aparentava a idade, seja pela aparência, seja disposição física, seja pela mente aberta (meu pai, que partira seis anos antes, aos 61, também guardava essas características). Lembro de uma vez, antes da pandemia, quando contou da conversa com a vizinha, vinte anos mais nova, que dizia que não entendia a nova geração, pois era “de um outro tempo”, ao que minha mãe respondeu: “se você está viva, seu tempo é este também”. Isso não é pouco para uma senhora que sempre viveu no interior, longe de qualquer grande centro - médio, que seja -, numa cidade provinciana e super conservadora (61% de votos para Bolsonaro em 2022).

Como disse, acreditei que fosse sincera quando disse que partia feliz, mas não conseguia entender. Sinto que começo a apreender outras camadas do que ela dizia - obras do Tempo. 

Ano passado, a cada dia de janeiro e fevereiro, percorri em lembranças seu último mês, o que havíamos feito na mesma data do ano anterior, em especial na última semana, quando era evidente que o fim se aproximava a uma velocidade estonteante, e incapaz de ser revertido, nem mesmo retardado (e nem fazia sentido retardá-lo, pelo contrário) - tudo isso em meio a um calor mortífico que assolava a Pato Branco de tanto agrotóxico no ar (teve dia de 38ºC, 15% de umidade relativa do ar e baixa pressão atmosférica).

Este ano, não. Vem lembranças dos últimos momentos, mas com outro tom - uma alegria apesar da dor da ausência, e mesmo algumas lágrimas. Recordo que há exatos dois anos, 7 de fevereiro, eu fazia minha nova identidade, depois de mais de vinte anos - a anterior era de agosto de 1999, eu a fizera para facilitar minha vida no vestibular, já que era difícil imitar minha assinatura de 1989, com sete anos. 

Em 2000 eu começaria uma vida nova, longe quase mil quilômetros de casa e de meus pais - ainda que tenhamos mantido sempre a proximidade, por telefone, por visitas a cada dois meses, pelo menos, pelo carinho e consideração, sempre presentes. 

Em 2021, nessa mesma semana de minha nova identidade, eu começaria uma nova vida - e a distância intransponível para meus pais eu agora precisaria aprender a encurtar com lembranças e afetos. Como as que me vêm agora, gostosas, acalentadores, quase um abraço que o passado me dá - que eles me dão desde um outro tempo -, ou como quando conto dos detalhes dos móveis que agora vivem comigo, trazidos de Pato, aos amigos e, em especial, à Lia, que me ouvem com paciência e carinho.

Apesar de meu pai ter tentado se segurar mais à vida, na hora que ficou evidente que o fim estava próximo, ele também soube se despedir com serenidade e alegria. Ambos, conscientemente, foram impávidos, apaixonadamente e tranquilos diante do destino humano que os chamava para seu último ato. E eu, ao que parece, só agora começo a vislumbrar o óbvio - que nunca esteve realmente oculto.


07 de fevereiro 2024


segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Goreti tenta lutar contra o destino... e perde [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça]


As artes esotéricas e sibilinas não são para qualquer um ou uma ou ume. Suas mensagens cifradas dão ensejo para compreensões dúbias, até mesmo “tríbias” - tese, antítese, destese, numa releitura pós-moderna e Hegel (não o colega de Marx, segundo o MPSP) -, que podem induzir as pessoas a tomarem decisões erradas, ao invés de ajudá-las. Por isso, todo cuidado é pouco. Ademais, defendo que as crenças esotéricas se encaixem no sincretismo que tanto marca nossa constituição enquanto povo: acredita só na medida em que o favorece. Também poderia defender um órgão de classe (estilo OAB e CRM) para esotéricos, mas isso fica para outro momento. Voltemos ao sincretismo. Foi assim com o catolicismo branco do colonizador, tem sido assim os evangélicos neopentecostais adeptos do eurocentrismo extremado neocolonizante (em especial os pastores, que falam de Jesus mas adoram os vendilhões do templo; defendem a família dita tradicional mas tem três amantes... de cada gênero), por que não poderia ser com esses bandos de esotéricos brancos mimados nos melhores bairros das cidades? 

Quem tenta seguir puro em sua crença ocidental sempre se dá mal. Goreti, por exemplo, é uma pessoa legal, mas vacila - justo por acreditar demais, e sem sincretismo.

Final do ano passado foi chamado pela chefia e designado para um congresso a beira mar em Ponta Negra, Natal - precisava ser alguém do nosso subsetor -, que foi de segunda, dia 22, à tarde, e até quinta 25 de manhã, com a fala já na terça pela manhã, pra poder estar só de corpo presente o resto do tempo nesse evento. A empresa se encarregou das passagens, da hospedagem nos dias de evento e de uma ajuda de custo considerável. Ou seja, levando em conta que 25 é feriado em Sampa, a proposta foi praticamente de férias fora de época (mas numa boa época), com passagens e 50% dos custos de hospedagem e alimentação pagos.

Ficamos todos - ele, inclusive - surpresos por ter sido ele o escolhido, e não Meirelles, a pessoa que mais manja dos paragolés e do falar em público. Vívida e escolada, não se surpreendeu, e nos lembrou que para liberais melanina demais só pega bem no fundo da foto. Enfim, tudo estava certo para o congresso, até que semana retrasada, logo na segunda pela manhã, Goreti saiu da sala do chefe com uma listinha e foi até Macedo. Antes de fazer o convite, se justificou:

“Eu realmente não posso ir, e acho que nem deveríamos mandar ninguém. Vai ser uma grande besteira. Falei para o chefe, mas ele não quis me ouvir. Por isso, nem recomendo que vá, mas ele perguntou se quer me substituir em Natal”.

Macedo, afim à sua discrição, rejeitou. A seguir, foi a vez de perguntar para Meirelles, que se indignou de ter sido chamada só àquela hora, sem tempo de refazer a agenda programada para o feriado.

Já paguei caro para passar no Boneti! Sacanagem!

Parecia um jogo meio Jogos Vorazes, sei lá, que quem escolhesse seria morto. Ou mesmo uma rodada do campeonato brasileiro, com todos os times parecendo lutar para não ganhar o título. 

Imaginamos que Goreti iria até Carnegie, o segundo mais apto para palestrar - depois de Meireles -, sempre elogiado pelo chefe, mas o escolhido foi o Desembargador, que não teve problema em mudar sua programação para o feriado, desde que pudesse juntar com o banco de horas, que dava três dias. O chefe, para mostrar sua autoridade, permitiu, desde que fosse antes do evento, e não depois. A contragosto, aceitou, e terça, dia 16, já foi de mala para o trabalho - voltaria só dia 28. No fim, o chefe fez o melhor para ele: o noivo, nos arranjos de seu trabalho, conseguiu ir no dia seguinte, para voltar no domingo: quatro dias namorando em Natal, depois três de congresso, e concluía com quatro dias curtindo sozinho a cidade. Me pergunto se há um grande grupo de chefes, para combinarem isso e parecer que eles têm um poder de premonição que nós não sabemos - e talvez nem as sibilas, cartomantes, cassandras e afins.

Cara, se cuida! Gosto muito de você, te desejo tudo de bom!

Havia lágrimas nos olhos de Goreti ao se despedir do Desembagador, ao fim do expediente. Seguiu borocoxó, com aquele ar de peso na consciência, falando pouco durante a ausência do colega. E se recusou terminantemente a comentar o porquê de ter desistido de ir para o congresso em tão vantajosas condições.

Hoje Goreti chegou atrasado - o que é incomum. Parecia bastante preocupado. Perguntou do Desembargador, dissemos que não chegara ainda. Até sua chegada, estava visivelmente perturbado e deu pra ver o alívio quando ouvimos nosso viajado colega, ainda antes de entrar na sala, falando para Bevilacqua:

Preciso te mostrar o retoque das minhas marquinhas!

Ao entrar, Goreti foi logo perguntando se ele estava bem.

Tudo ótimo! Que viagem maravilhosa! Agradeço pela oportunidade!

Não aconteceu nenhum imprevisto?

Na viagem? Ah, ontem foi complicado. Cheguei para pegar o avião e deu overbooking - eu e uma outra mulher que tinha participado do congresso. Ao invés de embarcar às sete da noite, só fui embarcar à meia noite. Por sorte, pagaram o táxi até minha casa, mas mesmo assim, fui dormir às três da manhã. A parte boa foi que nós dois ficamos esperando numa sala vip, com tudo liberado, até uísque double label! Bebemos, viu? Por isso essa cara de ressaca. Inclusive, uma pena que você não foi, porque acho que a moça que vim conversando, você iria adorála! Eu mesmo, se não fosse noivo e, principalmente, gay, teria me interessado - e ela está solteira! Pena que estávamos tão loucos que esquecemos de trocar qualquer contato.

Goreti ainda parecia incrédulo, e ao insistir se não tinha acontecido nada demais, fomos pra cima dele:

Abre o jogo, Goreti, que que houve que você desistiu da viagem e agora está aí, com cara de cão arrependido - insistiu Meireles.

Ele tentou tergiversar, mas abriu o jogo: havia ido numa cartomante (a cartomante é por minha conta, para dar um ar mais literário, quase um neo-Machado, ele falou taróloga e sexóloga, num terreiro de umbanda, mesmo), que havia tirado as cartas e dito que havia uma viagem programada para breve que lhe traria muita dor. Ele concluiu: só podia ser a viagem para Natal, e muito provavelmente seria a queda do avião! Por conta disso, tentou convencer o chefe a não mandar ninguém, ia se sentir culpado se o colega morresse.

Muita dor? - refletiu Desembagador - ah, sim! No primeiro domingo teve um episódio assim! Fui queimado por uma água viva, já no fim da tarde! Como doeu! Você nem imagina! Nem pude aproveitar a praia direito na segunda de manhã, antes do congresso. Vai ver era isso.

É, vai ver... - respondeu Goreti, murcho.

Eu, sinceramente, achei que faltou a Goreti o sincretismo de seu guru espiritual, e me pareceu que a grande dor dessa viagem foi por ter desistido dela. Os gregos antigos - Sófocles, por exemplo - já mostravam que não adianta lutar contra o destino.


22 de janeiro de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Fim de tarde na sala da casa de Pato Branco


Na sala, a tevê muda - esperando o jornal começar para ver as manchetes. Mãe borda no sofá, pai, na cadeira, lê uma revista - deve ser a Carta Capital -, com a perna direita cruzada sobre a esquerda. Chuvisca lá fora. Pai larga revista, esfrega os dedos nas palmas das mãos.

Vai seguir chovendo, olha como está lisa minha mão - e mostra à minha mãe.

É verão, por isso a claridade ainda é grande, mesmo já tendo passado das sete. Chove, mas um sol tímido se apresenta pela casa. A temperatura está amena. Meu pai se levanta.

Deja, você podia aproveitar e me trazer uma cuia.

É para já - ele responde e se encaminha para a cozinha. Logo dá para ouvir o barulho da chaleira sendo aberta, a seguir do forno do fogão, onde foi pegar um pedaço de salame.

Essa não é uma lembrança, isso não aconteceu. Quer dizer, não até cinco minutos atrás. Hesito em chamar de imaginação ou sensação essa nova vivência que me veio ao tomar este chimarrão já lavado e encilhado, neste início de noite chuvoso. Pego a prancheta, coloco Mogwai, What are they doing in heaven today, que muito ouvi lembrando da Misson, e construo esta nova lembrança de um dia banal de meus pais.


12 de janeiro de 2024

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Carrinho de picolé

Há quatro anos minha mãe veio a São Paulo para meu aniversário - e, de quebra, conhecer o apartamento para o qual eu havia recém mudado. Chegou no fim da tarde e no outro dia pela manhã, tão logo acordei, me perguntou, perplexa:

Dani, eu meio que acordei de madrugada com galinhas cantando, como acontecia quando eu era criança. E não deu a impressão de que foi um sonho.

De fato, não havia sido um sonho: no pátio da escola em frente havia várias galinhas, que faziam barulho o dia todo - que eu adorava, diga-se de passagem.

Mas não estamos a um quilômetro da avenida Paulista?

Em Pato Branco, minha mãe só voltaria a ter esse tipo de experiência no fim de sua vida, quando voltamos a morar com ela e meu irmão pegou quatro galinhas para criar no quintal.

Somado a isso, o fato da rua ser muito silenciosa fazia com que eu me sentisse em outro lugar, no interior ou em outro tempo, ainda que pudesse desfrutar das vantagens da maior cidade das Américas em vinte minutos de caminhada. As galinhas, infelizmente, sumiram no meio da pandemia. Restou a escola, cuja algazarra dos alunos todas as manhãs remete à minha infância: na esquina de onde morava, estava a escola Dona Frida, a segunda escola da cidade, e a hora do recreio a gritaria era tanta que abafava até mesmo o som da serraria que ficava a uns cinquenta metros (sentido centro da cidade). Esse fuzuê foi muitas vezes meu despertador. Foi a destruição dessa escola, que era também a casa da dona Frida, uma das pioneiras da cidade e então com Alzheimer, que fez com que eu deixasse de reconhecer Pato Branco como minha cidade - se reduzindo, então, à casa de meus pais.

Hoje, sem galinhas na escola e um ano a mais para pôr nos formulários, acordo cedo e tomo café com Lia. Ela sai para o trabalho e eu volto a dormir. Era para eu estar no início de minhas férias, mas o burnout chegou antes e com ele a licença médica. No meio da manhã, tal qual minha mãe quatro anos atrás, acordo com sons familiares, e me questiono se sonhei ou não. Apuro os ouvidos e novamente toca o “apito de picolé”, que me leva à casa de meus avós maternos, na periferia de Ponta Grossa (em Pato Branco os vendedores com carrinhos ainda não tinham incorporado essa tecnologia). 

Havia os picolés de água, que eram doces, mas perdiam o gosto muito cedo e eu ficava incomodado de jogar fora o gelo que sobrava (meu pai toda refeição ressalva o “com tanta fome no mundo, nunca desperdice comida!”), havia os de leite, que eram melhorzinhos, e havia os de massa, meus favoritos, mas além de serem caros, segundo minha mãe, eu só comprava se fosse comer em casa, com uma colher de verdade, porque o sorvete vinha com uma colherzinha de pau e desde cedo eu tenho ojeriza a esse tipo de artefato na boca - mesmo que seja ver outra pessoa: meus amigos e colegas de trabalho sabem, já presenciaram meu escândalo involuntário quando essa cena aterrorizante acontece em minha frente.

A recordação é nostálgica e gostosa. Apita novamente. Sinto falta o barulho das galinhas de meus avós para a lembrança ficar completa - Ponta Grossa era um permanente domingo para mim, mesmo eu já crescido. Vou até a janela, não vejo nenhum sorveteiro. Será algo na escola? Ouço outras duas apitadas até que surge em meu campo de visão um homem oferecendo amolação de facas e outros objetos cortantes. É então que noto que a lembrança é boa porque meus pais tinham emprego, salário, podiam pagar um sorvete desses; não eram eles a empurrar esses carrinhos baixos, todos os dias, debaixo do sol, no calor, assoprando o dia todo as mesmas notas, contando trocados para ver se pagavam as contas básicas do dia.

A memória é traiçoeira. O que para mim é algo gostoso, no fundo é só o apito da precariedade na qual vive a maior parte da população, situação piorada desde 2015, quando foi empurrada para uma sobrevivência indigna pelas nossas elites  - coloniais, mesquinhas e pusilânimes -, e justificada a quem sofre esse açoite desnecessário por uma mídia sem escrúpulos e por mercadores da fé que fazem da religião uma droga - mas não o ópio apontado por Marx, e sim aquela entregue às crianças-soldado, descrita por Ahmadou Kourouma.

O apito do picolé passa. A lembrança dos cheiros e texturas da casa de meus avós também se esvai. A exploração e as injustiças sociais perduram.


19 de outubro de 2023


sábado, 10 de dezembro de 2022

Dez anos - tão rápido, tão lento

Desço na estação Prefeito Celso Daniel - Santo André. Há dez anos não parava ali, desde quando abandonara o curso na Federal do ABC, ainda no segundo quadrimestre. É como voltar dez anos no tempo, mas não parece tanto tempo assim. São mesmo dez anos? 

Diferente do que fiz tantas e tantas manhãs de 2012, me encaminhei para o lado do  centro da cidade, não da universidade. E diferentemente de 2012, meu pai não me ligou às seis, horário em levantava para esvaziarva bolsa de colostomia, para saber se eu tinha dado conta de acordar (até então eu estava acostumado a dormir sempre depois das três, foi difícil voltar a acordar cedo). Estou atrasado, caminho sob o sol ardido num dia quente e seco - que me faz lembrar de Pato Branco ano passado, quando estava vivendo com minha mãe seus últimos dias. Chego já fora do horário oficial de lançamento do livro Colateral, da Isabela Veras, amiga de meia década e muitos desencontros. O horário do almoço ajuda a esvaziar a livraria, e sobram alguns recalcitrantes - eu dentre eles. 

Escultura de Ricardo Amadasi

Isa me apresenta a Alpharrabio, projeto de 30 anos de sua mãe, Dalila. O local vende livros, mas claramente isso é uma desculpa para reunir pessoas que gostam de literatura e possuem outras afinidades. Antes de ela me falar, havia ouvido Dalila contar a um grupo da compra da casa e das reformas para transformar no que é hoje. Isa conta dos eventos que acontecem todo mês - o sarau, o encontro de escritoras. Me faz lembrar de Misson, que sempre agitava eventos na Penha - às vezes conseguia algum lugar público, se não, improvisava numa praça ou reunia em sua casa mesmo. Quem sabe se não tivesse partido prematuramente não teria ela aberto seu Alpharrabio? Também me lembro da Casuística, a revista eletrônica que agitei entre 2009 e 2013 - interrompida com o vazio trazido pela partida da Misson, que assumira a função de co-editora a partir da segunda edição. E dos "poetinhas", o grupo de poesia agitado pelo Cassio e Jeff, do qual eu participava como ouvinte, por não ser um gênero no qual me arrisco. Um lugar desses seria uma preciosidade para o daniel de 2010, 2012, e seus amigos.

Antes mesmo de ir à Alpharrabio, volta e meia recordo com nostalgia daquele meu ânimo em experimentar e arriscar, talvez mesmo fazer o papel de bobo, em nome de nem sei o quê - ter gente interessante e igualmente realisticamente rebelde com o princípio de realidade por perto. 

Nunca achei que aquele meu ímpeto fosse coisa da juventude, ainda que acredite que tê-lo perdido seja fruto do tempo - não o tempo que simplesmente passa, mas o que deixa cicatrizes, no meu caso, dessas três perdas: Misson, meu pai e minha mãe. Dalila abriu a livraria com mais idade que tenho hoje, e não só isso: é explícito o tesão com que leva suas atividades - a livraria e o ativismo cultural em Santo André, que já lhe rendeu uma série de homenagens, além de um doutorado honoris causa. Claramente idade não é algo que interfere na juventude de uma pessoa - antes como ela consegue levar as adversidades da vida.

Isa me mostra detalhes da Alpharrabio: o auditório, as esculturas, os livros da editora, os livros-objeto. As escadas no jardim interno me remetem à Prainha da PUC. O mimeógrafo posto como enfeite me faz lembrar do "livro" que produzimos na escola, rodado em um aparelho desses, com o cheiro de álcool a marcar a alegria de termos nosso livro - eu tinha oito ou nove anos, estava na terceira série. Naquela época nunca que eu imaginaria que um dia lançaria livros de "verdade" - hoje me questiono do que valeria lançar os que tenho no prelo.

É perceptível o afeto que atravessa o mostrar e recordar de Isa: "cresci em meio às reuniões de poesia de minha mãe, primeiro na casa das pessoas, depois aqui. A Alpharrabio é minha segunda casa". É o mesmo afeto que me atravessa quando penso na casa de Pato Branco - e me vejo mostrando ela aos amigos e companheiras que chegaram a conhecê-la com essa mesma empolgação, de um passado vivo e presente. A diferença é que a casa de Pato nunca deixou de ser a primeira - junto com as outras que tive. Casa que sonhei hoje, e que no meu sonho não estava vazia, como está há dez meses, pelo contrário: estavam lá meu pai no balanço, minha mãe com os bonsais e meu irmão com a reforma da cozinha, que ele levou a cabo ano passado.

Na volta, na estação esperando o trem, como fizera vários fins de tarde de 2012, me pego pensando em tudo o que me ficou pelo caminho entre Santo André e São Paulo, entre 2012 e 2022: ânimos, ímpetos, desejos intensos de experimentar... futuros do pretérito interrompidos pelo que a vida tem de mais ordinário: a morte. "Viver é ir morrendo aos poucos", dizia minha mãe.

Foram mesmo só dez anos desde o último trem que peguei ali?


10 de dezembro de 2022