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terça-feira, 9 de abril de 2024

Tilt Test [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Dia desses andei tendo umas vertigens estranha. Uma vez, vá lá, acontece. Duas, a gente fica alerta. Quatro, aí a preocupação aperta - ainda mais depois de consultar o Google. Porque se as vezes que tive essas vertigens foram em casa, sem maiores riscos, imagina se a tenho na rua, se desmaio no meio do centro de São Paulo num início de noite ermo. Ou, então, acontecer de eu ir num restaurante caro e logo em seguida ter a tal vertigem e devolver a comida, como aconteceu na terceira vez - em que acreditei que a tontura era por conta de algo que comi, mais especificamente um gorgonzola com nozes, macadâmia e damasco, turbinado por fungos outros, que só vi depois de vários pedaços -, seria muito frustrante e uma grande perda de um dinheiro que não me sobra tanto assim.

Após a quarta vertigem em menos de um mês, como disse, fui perguntar ao Google o que mais poderia ser, além da óbvia labirintite com a qual eu já havia me auto diagnosticado. As opções iam de estresse e ansiedade a tumor no cérebro em estágio avançado - e eu estou com uma pinta estranha nas costas, já faz um tempo, que temo poder ser um melanoma, vai que já se espalhou...

Conto para o Brotinho, que praticamente me obriga a marcar médico - o que eu já ia fazer, a diferença é que por influência dela acabo indo para um neurologista e não para um oncologista, como pretendia.

O médico me faz uma série de perguntas, descartando logo de cara minha nova certeza (de início, achei que era só porque não é a área dele): tem dormido bem? Não. Se exercitado? Não. Tem andado estressado? Muito - afinal, nos encarregaram de preparar pequenos cursos de apresentação do setor aos novos contratados, o que já me desagradou, mas tudo piorou quando Desembargador propôs que sejam teleaulas, proposta aceita com entusiasmo pelo chefe, que anunciou esses dias que já tinha alugado o estúdio.

Até a labirintite ele praticamente descartou de cara, centrando no estresse. Por via das dúvidas, preferiu que eu fizesse alguns exames. Um deles, que necessitava de acompanhante, era o “Tilt Test”. Chamei Macedo para me acompanhar, e ele concordou que o exame soava assaz interessante pelo nome.

Sabe como é?

Segundo o médico, me amarram numa mesa e medem minha reação às inclinações dela.

Achamos muito pouco para um exame de nome tão convidativo. E enquanto esperávamos eu ser chamado, ficamos imaginando o quão interessante não seria.

Lembramos dos tempos do fliperama, quando chacoalhávamos demais a mesa de pinball e vinha o aviso de tilt. Nos pareceu razoável, chacoalha pra lá, chacoalha pra cá, tipo o brinquedo samba dos antigos parques de diversões, mas em versão compacta, e vê como o sujeito lida com todo o sacolejo: se só fica tonto, se passa mal a ponto de querer devolver o que poderia ter no estômago (fica como caso hipotético porque eu estava em jejum, inclusive de água), até o ponto de desmaiar - daí a necessidade do acompanhante. Achamos que um chapéu mexicano compacto seria pouco provável, pois exigiria uma sala muito grande - mas não deixaria de ser interessante, a pessoa presa pelos pés, sendo rodada alucinadamente, ver se reagem bem a esse teste, ao que eu lembrei que aí não seria tilt.


Entrei na sala, colocaram o eletrocardiograma em meu peito e o medidor de pressão no braço. Me amarraram numa maca simples. Fiquei a me perguntar se seria manual o tal tilt test, um enfermeiro bombado dando trancos na maca, sacolejando-a e inclinando-a até eu passar mal - não seria um emprego tão chato assim, além do mais. Mas, quê?! Eu imaginando que seriam poucos minutos sem fim de angústia e sensações diversas no meu corpo, mas nos quarenta minutos que durou, tudo o que passei foi tédio. Vinte minutos inclinado a vinte graus, outros vinte a quarenta graus, depois volta. Me perguntei se o jejum antes de evitar sujar a sala toda, não era para evitar refluxo, mesmo.

Está tudo bem? Não está passando mal, muito enjoado?

Me pergunta a enfermeira, como se eu tivesse passado por um teste pesadíssimo.

Do lado de fora, Macedo me esperava ansioso pra saber como foi.

Todo esse tempo, deve ter sido sofrido, não? Ou essa demora foi para conseguir ficar bem até conseguir se levantar de novo?

Como a desocupada leitora, o desocupado leitor que chegou ao fim deste texto, Macedo também murchou com todo o sem graça do tal "Tilt Test". E, sim, era só estresse, mesmo.


09 de abril de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo e as esquerdas


De Antônio, meu avô paterno, tenho duas lembranças vagas da minha infância: uma, num almoço da família do meu pai, era ele quem preparava o churrasco, num tonel de metal, entre a caixa de areia e as parreiras, na casa de Pato, mais ou menos onde hoje fica a churrasqueira; a outra, devia ser um fim de tarde, pelo sol alaranjado e oblíquo, talvez depois da escola: estávamos na cozinha da sua casa - ele então morava sozinho -, e meu pai reclamava que ele não tinha sequer banana, ao que ele respondia que tinha uma laranja, algo assim. 

Digo, essas duas são lembranças de antes de 1990. Depois tenho várias, e marcantes. Pois meu avô era alcoolista, e em maio desse ano teve um AVC. Como estava morando sozinho, devido aos comportamentos violentos gerados pelo álcool, demorou para o encontrarem. Foram nove anos morto em vida, sem conseguir sair da cama, sem conseguir se comunicar - e o geriatra sempre elogiava meu pai, que cuidou dele esse tempo todo (apesar de serem em nove irmãos), pois ele não possuía escaras, tomava sol, tinha a fisioterapia básica em dia, tudo feito por meu pai, com auxílio de minha mãe e Cecília, a mulher que trabalhava em casa naqueles anos (com férias, 13º, INSS e todos os direitos, mesmo antes de isso ser obrigatório). Eu era criança e muitas vezes tinha vergonha dele quando meus amigos iam brincar comigo, pois até a chegada de meu pai do trabalho, para banhá-lo e fazer os exercícios, ficava o cheiro forte de cocô. Meus amigos talvez se impressionassem mais com a figura daquele senhor deitado ou sentado, “falando” “bã bã bã bã”, às vezes chorando em seguida. Meu irmão, que tinha três anos quando o derrame aconteceu, sequer possui outra imagem dele que não de um homem numa cama.

Falo disso porque dia 18 de fevereiro é o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. Não sei o quanto o álcool foi responsável pelo seu “derrame” - como se dizia na época -, mas lembro que diziam que a demora no socorro foi crucial para as graves sequelas com que ficou - e isso, sim, consequência do alcoolismo (e do patriarcado/machismo), que fez com passasse a dormir com um machado ao lado da cama, por suspeitar/delirar que minha avó tinha um amante.

Criticar o abuso de drogas, em especial do álcool, ainda é complicado dentro da esquerda e do campo progressista - como se não houvesse um degradê entre a abstinência e o abuso. Daí que geralmente restam aos setores mais conservadores a crítica ao abuso (e ao uso) de álcool e drogas, defensores da abstinência e da proibição - duas soluções simplistas e fracassadas, tanto no plano individual quanto coletivo. Ao mesmo tempo, a indústria da bebida, faz a farra e enche as burras*, graças a ostensivas e agressivas estratégias de publicidade [https://bit.ly/3I54kJR]. 

Na minha bolha de esquerda classe média, ao menos, vejo o quanto o marketing cervejeiro - em especial - tem conseguido bons resultados, impedindo uma visão crítica do problema e sua discussão a sério. É muito comum nos finais de semana fotos com copos e garrafas de cerveja, como tótem, como sinônimo de comemoração, como representante do deus da alegria e da felicidade. Contudo, nem sempre se sorri por felicidade, nem sempre se brinda a sério, nem sempre se bebe para celebrar - por mais que o diga. Como em um conto do Mia Couto (cujo nome me foge agora), em que o pai da noiva, gastando tudo o que tem e não tem na festa de casamento da filha, repara ao interlocutor que pela primeira vez a população local está bebendo para celebrar e não para se esquecer. 

Esquecimento, é com isso que a publicidade de cerveja trabalha. Esquecer que é uma droga, esquecer que ela tem poder de adição muito grande e difícil de se recuperar, esquecer que pode matar por abuso ou abstinência (sim, ela e heroína!), esquecer que causa uma série de problemas individuais, familiares e sociais - assassinatos, seja por motivo fútil, seja por atropelamento. Esquecer que é uma droga legalizada que dá muito lucro a particulares e muitos custos à sociedade.

Parte da esquerda, assim como outrora comprou o discurso do cigarro, e fazia uso e se deixava fotografar com um na boca, porque era sinal de rebeldia e personalidade forte, agora adere sem crítica ao discurso da cerveja como sinônimo de alegria, de comunhão, de prazer, de ser mais um na multidão. É curioso como a cerveja se desenha como o oposto do cigarro (e outras drogas), como uma prova não de individualidade, mas de pertencimento, de apagamento das diferenças. Me parece impraticável uma propaganda de cerveja de um vaqueiro solitário no deserto texano, ou um slogan com “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”: a cerveja trabalha com o apagamento do sujeito e o reforço do comportamento gregário, inclusive com forte pressão sobre os abstêmios (que não é meu caso, só para deixar claro), de que seriam chatos. É um ethos bem afim ao discurso neofascista.

Há tempos defendo que deveria ser proibida a propaganda de toda qualquer droga (inclusive legais, inclusive remédios), assim como deveria ser legalizada a grande maioria delas, com regulação e fiscalização severa sobre locais de venda e uso. Ao mesmo tempo, deveria haver uma campanha séria de alerta dos riscos e de prevenção ao abuso, feito por profissionais da saúde, e não por militares que tratam a questão como caso de polícia, defendem repressão a pobres (“vagabundos que não querem trabalhar” porque, sem qualificação, trabalham para o tráfico ganhando pelo menos quatro salário mínimos), a abstinência aos jovens (em patéticos, folclórios e inócuos cursos de Proerd), ao mesmo tempo que eles próprios usam drogas - há um caso explícito de um futuro deputado federal bolsonarista pelo Paraná que assume usar a drogra apreendida**.

Há também o esquecimento do porquê do abuso de álcool e outras drogas: uma vida sem sentido, sem utopias, pressão extrema nos estudos e trabalho. Quanto a estudos, lembro até hoje o clima pesado que tinham as festas da Unicamp, ainda mais em comparação com as da UFSCar, o desespero dos estudantes em tentar esquecer da pressão que sentiam - não por acaso, casos de suicídio ou tentativas de eram abundantes (eu ironizava muito isso no Trezenhum. Humor Sem Graça., seja com o curso de “Ikebana e harakiri” ou a Fapesp rebatizada de “Fepesp”). Já ao trabalho, senti na pele isso, e o abuso (ainda que "moderado") foi um dos sinais que notei que algo estava muito ruim na minha vida laboral, e apesar de ter buscado ajuda, não impediu que eu tivesse um burnout (conhecido em português como crise de estafa) violento, que até agora me alija de várias atividades (se alguém acompanha meus textos, notou um hiato de dois meses e depois uma produção bem lenta). A esquerda, acuada, tem lutado apenas para não perder o pouco que conquistamos, e não tem conseguido mais aglutinar pessoas em torno de um ideal, mobilizar em favor de um projeto utópico - e me refiro até mesmo a coisas simples, como a diminuição da jornada para 24 horas semanais, por exemplo.

Por fim, o outro esquecimento que as esquerdas costumam ter com relação à bebida é o das consequências disso dentro de cada classe: um alcoolista que é chefe de família na periferia é bem diferente de um alcoolista (ou outra drogadição) que reside em bairro nobre e cuja família não depende de seus ganhos, para ficar num exemplo bem básico.

Enquanto seguirmos ignorando essas diferenças de classe e de tudo o que o abuso de álcool e drogas implicam na vida de populações marginalizadas, e não começarmos com um discurso abarcando também questões individuais disso - para além de questões estruturais de violência policial da guerra as drogas -, em prol de um uso feito com consciência e “com moderação” de verdade, seguiremos entregando parte dessa população, sem utopias e preocupadas com as consequências mais imediatas das drogas sobre a família a discursos moralistas, de resoluções simplistas que vão resultar em violências - física, estatal, simbólica, emocional - contra essas mesmas pessoas. Enquanto isso, essa direita mais retrógrada, que encampa esses discursos, contentemente brinda nossa incompetência em ouvir a população.


18 de fevereiro de 2024

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Há dois anos, eu preparava minha nova identidade

Numa conversa, em sua última semana de vida, estávamos minha mãe, eu e meu irmão em sua cama. Ela dizia que partia tranquila, ia feliz: tinha tido bons pais, um bom marido, bons filhos - uma boa vida, em suma. Ela estava sendo sincera, ainda que eu desconfie que a depressão - escancarada de vez durante a pandemia -, tivesse feito com que desejasse encerrar seu ciclo prematuramente: ela tinha 69 anos e não aparentava a idade, seja pela aparência, seja disposição física, seja pela mente aberta (meu pai, que partira seis anos antes, aos 61, também guardava essas características). Lembro de uma vez, antes da pandemia, quando contou da conversa com a vizinha, vinte anos mais nova, que dizia que não entendia a nova geração, pois era “de um outro tempo”, ao que minha mãe respondeu: “se você está viva, seu tempo é este também”. Isso não é pouco para uma senhora que sempre viveu no interior, longe de qualquer grande centro - médio, que seja -, numa cidade provinciana e super conservadora (61% de votos para Bolsonaro em 2022).

Como disse, acreditei que fosse sincera quando disse que partia feliz, mas não conseguia entender. Sinto que começo a apreender outras camadas do que ela dizia - obras do Tempo. 

Ano passado, a cada dia de janeiro e fevereiro, percorri em lembranças seu último mês, o que havíamos feito na mesma data do ano anterior, em especial na última semana, quando era evidente que o fim se aproximava a uma velocidade estonteante, e incapaz de ser revertido, nem mesmo retardado (e nem fazia sentido retardá-lo, pelo contrário) - tudo isso em meio a um calor mortífico que assolava a Pato Branco de tanto agrotóxico no ar (teve dia de 38ºC, 15% de umidade relativa do ar e baixa pressão atmosférica).

Este ano, não. Vem lembranças dos últimos momentos, mas com outro tom - uma alegria apesar da dor da ausência, e mesmo algumas lágrimas. Recordo que há exatos dois anos, 7 de fevereiro, eu fazia minha nova identidade, depois de mais de vinte anos - a anterior era de agosto de 1999, eu a fizera para facilitar minha vida no vestibular, já que era difícil imitar minha assinatura de 1989, com sete anos. 

Em 2000 eu começaria uma vida nova, longe quase mil quilômetros de casa e de meus pais - ainda que tenhamos mantido sempre a proximidade, por telefone, por visitas a cada dois meses, pelo menos, pelo carinho e consideração, sempre presentes. 

Em 2021, nessa mesma semana de minha nova identidade, eu começaria uma nova vida - e a distância intransponível para meus pais eu agora precisaria aprender a encurtar com lembranças e afetos. Como as que me vêm agora, gostosas, acalentadores, quase um abraço que o passado me dá - que eles me dão desde um outro tempo -, ou como quando conto dos detalhes dos móveis que agora vivem comigo, trazidos de Pato, aos amigos e, em especial, à Lia, que me ouvem com paciência e carinho.

Apesar de meu pai ter tentado se segurar mais à vida, na hora que ficou evidente que o fim estava próximo, ele também soube se despedir com serenidade e alegria. Ambos, conscientemente, foram impávidos, apaixonadamente e tranquilos diante do destino humano que os chamava para seu último ato. E eu, ao que parece, só agora começo a vislumbrar o óbvio - que nunca esteve realmente oculto.


07 de fevereiro 2024


segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Goreti tenta lutar contra o destino... e perde [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça]


As artes esotéricas e sibilinas não são para qualquer um ou uma ou ume. Suas mensagens cifradas dão ensejo para compreensões dúbias, até mesmo “tríbias” - tese, antítese, destese, numa releitura pós-moderna e Hegel (não o colega de Marx, segundo o MPSP) -, que podem induzir as pessoas a tomarem decisões erradas, ao invés de ajudá-las. Por isso, todo cuidado é pouco. Ademais, defendo que as crenças esotéricas se encaixem no sincretismo que tanto marca nossa constituição enquanto povo: acredita só na medida em que o favorece. Também poderia defender um órgão de classe (estilo OAB e CRM) para esotéricos, mas isso fica para outro momento. Voltemos ao sincretismo. Foi assim com o catolicismo branco do colonizador, tem sido assim os evangélicos neopentecostais adeptos do eurocentrismo extremado neocolonizante (em especial os pastores, que falam de Jesus mas adoram os vendilhões do templo; defendem a família dita tradicional mas tem três amantes... de cada gênero), por que não poderia ser com esses bandos de esotéricos brancos mimados nos melhores bairros das cidades? 

Quem tenta seguir puro em sua crença ocidental sempre se dá mal. Goreti, por exemplo, é uma pessoa legal, mas vacila - justo por acreditar demais, e sem sincretismo.

Final do ano passado foi chamado pela chefia e designado para um congresso a beira mar em Ponta Negra, Natal - precisava ser alguém do nosso subsetor -, que foi de segunda, dia 22, à tarde, e até quinta 25 de manhã, com a fala já na terça pela manhã, pra poder estar só de corpo presente o resto do tempo nesse evento. A empresa se encarregou das passagens, da hospedagem nos dias de evento e de uma ajuda de custo considerável. Ou seja, levando em conta que 25 é feriado em Sampa, a proposta foi praticamente de férias fora de época (mas numa boa época), com passagens e 50% dos custos de hospedagem e alimentação pagos.

Ficamos todos - ele, inclusive - surpresos por ter sido ele o escolhido, e não Meirelles, a pessoa que mais manja dos paragolés e do falar em público. Vívida e escolada, não se surpreendeu, e nos lembrou que para liberais melanina demais só pega bem no fundo da foto. Enfim, tudo estava certo para o congresso, até que semana retrasada, logo na segunda pela manhã, Goreti saiu da sala do chefe com uma listinha e foi até Macedo. Antes de fazer o convite, se justificou:

“Eu realmente não posso ir, e acho que nem deveríamos mandar ninguém. Vai ser uma grande besteira. Falei para o chefe, mas ele não quis me ouvir. Por isso, nem recomendo que vá, mas ele perguntou se quer me substituir em Natal”.

Macedo, afim à sua discrição, rejeitou. A seguir, foi a vez de perguntar para Meirelles, que se indignou de ter sido chamada só àquela hora, sem tempo de refazer a agenda programada para o feriado.

Já paguei caro para passar no Boneti! Sacanagem!

Parecia um jogo meio Jogos Vorazes, sei lá, que quem escolhesse seria morto. Ou mesmo uma rodada do campeonato brasileiro, com todos os times parecendo lutar para não ganhar o título. 

Imaginamos que Goreti iria até Carnegie, o segundo mais apto para palestrar - depois de Meireles -, sempre elogiado pelo chefe, mas o escolhido foi o Desembargador, que não teve problema em mudar sua programação para o feriado, desde que pudesse juntar com o banco de horas, que dava três dias. O chefe, para mostrar sua autoridade, permitiu, desde que fosse antes do evento, e não depois. A contragosto, aceitou, e terça, dia 16, já foi de mala para o trabalho - voltaria só dia 28. No fim, o chefe fez o melhor para ele: o noivo, nos arranjos de seu trabalho, conseguiu ir no dia seguinte, para voltar no domingo: quatro dias namorando em Natal, depois três de congresso, e concluía com quatro dias curtindo sozinho a cidade. Me pergunto se há um grande grupo de chefes, para combinarem isso e parecer que eles têm um poder de premonição que nós não sabemos - e talvez nem as sibilas, cartomantes, cassandras e afins.

Cara, se cuida! Gosto muito de você, te desejo tudo de bom!

Havia lágrimas nos olhos de Goreti ao se despedir do Desembagador, ao fim do expediente. Seguiu borocoxó, com aquele ar de peso na consciência, falando pouco durante a ausência do colega. E se recusou terminantemente a comentar o porquê de ter desistido de ir para o congresso em tão vantajosas condições.

Hoje Goreti chegou atrasado - o que é incomum. Parecia bastante preocupado. Perguntou do Desembargador, dissemos que não chegara ainda. Até sua chegada, estava visivelmente perturbado e deu pra ver o alívio quando ouvimos nosso viajado colega, ainda antes de entrar na sala, falando para Bevilacqua:

Preciso te mostrar o retoque das minhas marquinhas!

Ao entrar, Goreti foi logo perguntando se ele estava bem.

Tudo ótimo! Que viagem maravilhosa! Agradeço pela oportunidade!

Não aconteceu nenhum imprevisto?

Na viagem? Ah, ontem foi complicado. Cheguei para pegar o avião e deu overbooking - eu e uma outra mulher que tinha participado do congresso. Ao invés de embarcar às sete da noite, só fui embarcar à meia noite. Por sorte, pagaram o táxi até minha casa, mas mesmo assim, fui dormir às três da manhã. A parte boa foi que nós dois ficamos esperando numa sala vip, com tudo liberado, até uísque double label! Bebemos, viu? Por isso essa cara de ressaca. Inclusive, uma pena que você não foi, porque acho que a moça que vim conversando, você iria adorála! Eu mesmo, se não fosse noivo e, principalmente, gay, teria me interessado - e ela está solteira! Pena que estávamos tão loucos que esquecemos de trocar qualquer contato.

Goreti ainda parecia incrédulo, e ao insistir se não tinha acontecido nada demais, fomos pra cima dele:

Abre o jogo, Goreti, que que houve que você desistiu da viagem e agora está aí, com cara de cão arrependido - insistiu Meireles.

Ele tentou tergiversar, mas abriu o jogo: havia ido numa cartomante (a cartomante é por minha conta, para dar um ar mais literário, quase um neo-Machado, ele falou taróloga e sexóloga, num terreiro de umbanda, mesmo), que havia tirado as cartas e dito que havia uma viagem programada para breve que lhe traria muita dor. Ele concluiu: só podia ser a viagem para Natal, e muito provavelmente seria a queda do avião! Por conta disso, tentou convencer o chefe a não mandar ninguém, ia se sentir culpado se o colega morresse.

Muita dor? - refletiu Desembagador - ah, sim! No primeiro domingo teve um episódio assim! Fui queimado por uma água viva, já no fim da tarde! Como doeu! Você nem imagina! Nem pude aproveitar a praia direito na segunda de manhã, antes do congresso. Vai ver era isso.

É, vai ver... - respondeu Goreti, murcho.

Eu, sinceramente, achei que faltou a Goreti o sincretismo de seu guru espiritual, e me pareceu que a grande dor dessa viagem foi por ter desistido dela. Os gregos antigos - Sófocles, por exemplo - já mostravam que não adianta lutar contra o destino.


22 de janeiro de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Fim de tarde na sala da casa de Pato Branco


Na sala, a tevê muda - esperando o jornal começar para ver as manchetes. Mãe borda no sofá, pai, na cadeira, lê uma revista - deve ser a Carta Capital -, com a perna direita cruzada sobre a esquerda. Chuvisca lá fora. Pai larga revista, esfrega os dedos nas palmas das mãos.

Vai seguir chovendo, olha como está lisa minha mão - e mostra à minha mãe.

É verão, por isso a claridade ainda é grande, mesmo já tendo passado das sete. Chove, mas um sol tímido se apresenta pela casa. A temperatura está amena. Meu pai se levanta.

Deja, você podia aproveitar e me trazer uma cuia.

É para já - ele responde e se encaminha para a cozinha. Logo dá para ouvir o barulho da chaleira sendo aberta, a seguir do forno do fogão, onde foi pegar um pedaço de salame.

Essa não é uma lembrança, isso não aconteceu. Quer dizer, não até cinco minutos atrás. Hesito em chamar de imaginação ou sensação essa nova vivência que me veio ao tomar este chimarrão já lavado e encilhado, neste início de noite chuvoso. Pego a prancheta, coloco Mogwai, What are they doing in heaven today, que muito ouvi lembrando da Misson, e construo esta nova lembrança de um dia banal de meus pais.


12 de janeiro de 2024

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Carrinho de picolé

Há quatro anos minha mãe veio a São Paulo para meu aniversário - e, de quebra, conhecer o apartamento para o qual eu havia recém mudado. Chegou no fim da tarde e no outro dia pela manhã, tão logo acordei, me perguntou, perplexa:

Dani, eu meio que acordei de madrugada com galinhas cantando, como acontecia quando eu era criança. E não deu a impressão de que foi um sonho.

De fato, não havia sido um sonho: no pátio da escola em frente havia várias galinhas, que faziam barulho o dia todo - que eu adorava, diga-se de passagem.

Mas não estamos a um quilômetro da avenida Paulista?

Em Pato Branco, minha mãe só voltaria a ter esse tipo de experiência no fim de sua vida, quando voltamos a morar com ela e meu irmão pegou quatro galinhas para criar no quintal.

Somado a isso, o fato da rua ser muito silenciosa fazia com que eu me sentisse em outro lugar, no interior ou em outro tempo, ainda que pudesse desfrutar das vantagens da maior cidade das Américas em vinte minutos de caminhada. As galinhas, infelizmente, sumiram no meio da pandemia. Restou a escola, cuja algazarra dos alunos todas as manhãs remete à minha infância: na esquina de onde morava, estava a escola Dona Frida, a segunda escola da cidade, e a hora do recreio a gritaria era tanta que abafava até mesmo o som da serraria que ficava a uns cinquenta metros (sentido centro da cidade). Esse fuzuê foi muitas vezes meu despertador. Foi a destruição dessa escola, que era também a casa da dona Frida, uma das pioneiras da cidade e então com Alzheimer, que fez com que eu deixasse de reconhecer Pato Branco como minha cidade - se reduzindo, então, à casa de meus pais.

Hoje, sem galinhas na escola e um ano a mais para pôr nos formulários, acordo cedo e tomo café com Lia. Ela sai para o trabalho e eu volto a dormir. Era para eu estar no início de minhas férias, mas o burnout chegou antes e com ele a licença médica. No meio da manhã, tal qual minha mãe quatro anos atrás, acordo com sons familiares, e me questiono se sonhei ou não. Apuro os ouvidos e novamente toca o “apito de picolé”, que me leva à casa de meus avós maternos, na periferia de Ponta Grossa (em Pato Branco os vendedores com carrinhos ainda não tinham incorporado essa tecnologia). 

Havia os picolés de água, que eram doces, mas perdiam o gosto muito cedo e eu ficava incomodado de jogar fora o gelo que sobrava (meu pai toda refeição ressalva o “com tanta fome no mundo, nunca desperdice comida!”), havia os de leite, que eram melhorzinhos, e havia os de massa, meus favoritos, mas além de serem caros, segundo minha mãe, eu só comprava se fosse comer em casa, com uma colher de verdade, porque o sorvete vinha com uma colherzinha de pau e desde cedo eu tenho ojeriza a esse tipo de artefato na boca - mesmo que seja ver outra pessoa: meus amigos e colegas de trabalho sabem, já presenciaram meu escândalo involuntário quando essa cena aterrorizante acontece em minha frente.

A recordação é nostálgica e gostosa. Apita novamente. Sinto falta o barulho das galinhas de meus avós para a lembrança ficar completa - Ponta Grossa era um permanente domingo para mim, mesmo eu já crescido. Vou até a janela, não vejo nenhum sorveteiro. Será algo na escola? Ouço outras duas apitadas até que surge em meu campo de visão um homem oferecendo amolação de facas e outros objetos cortantes. É então que noto que a lembrança é boa porque meus pais tinham emprego, salário, podiam pagar um sorvete desses; não eram eles a empurrar esses carrinhos baixos, todos os dias, debaixo do sol, no calor, assoprando o dia todo as mesmas notas, contando trocados para ver se pagavam as contas básicas do dia.

A memória é traiçoeira. O que para mim é algo gostoso, no fundo é só o apito da precariedade na qual vive a maior parte da população, situação piorada desde 2015, quando foi empurrada para uma sobrevivência indigna pelas nossas elites  - coloniais, mesquinhas e pusilânimes -, e justificada a quem sofre esse açoite desnecessário por uma mídia sem escrúpulos e por mercadores da fé que fazem da religião uma droga - mas não o ópio apontado por Marx, e sim aquela entregue às crianças-soldado, descrita por Ahmadou Kourouma.

O apito do picolé passa. A lembrança dos cheiros e texturas da casa de meus avós também se esvai. A exploração e as injustiças sociais perduram.


19 de outubro de 2023


sábado, 10 de dezembro de 2022

Dez anos - tão rápido, tão lento

Desço na estação Prefeito Celso Daniel - Santo André. Há dez anos não parava ali, desde quando abandonara o curso na Federal do ABC, ainda no segundo quadrimestre. É como voltar dez anos no tempo, mas não parece tanto tempo assim. São mesmo dez anos? 

Diferente do que fiz tantas e tantas manhãs de 2012, me encaminhei para o lado do  centro da cidade, não da universidade. E diferentemente de 2012, meu pai não me ligou às seis, horário em levantava para esvaziarva bolsa de colostomia, para saber se eu tinha dado conta de acordar (até então eu estava acostumado a dormir sempre depois das três, foi difícil voltar a acordar cedo). Estou atrasado, caminho sob o sol ardido num dia quente e seco - que me faz lembrar de Pato Branco ano passado, quando estava vivendo com minha mãe seus últimos dias. Chego já fora do horário oficial de lançamento do livro Colateral, da Isabela Veras, amiga de meia década e muitos desencontros. O horário do almoço ajuda a esvaziar a livraria, e sobram alguns recalcitrantes - eu dentre eles. 

Escultura de Ricardo Amadasi

Isa me apresenta a Alpharrabio, projeto de 30 anos de sua mãe, Dalila. O local vende livros, mas claramente isso é uma desculpa para reunir pessoas que gostam de literatura e possuem outras afinidades. Antes de ela me falar, havia ouvido Dalila contar a um grupo da compra da casa e das reformas para transformar no que é hoje. Isa conta dos eventos que acontecem todo mês - o sarau, o encontro de escritoras. Me faz lembrar de Misson, que sempre agitava eventos na Penha - às vezes conseguia algum lugar público, se não, improvisava numa praça ou reunia em sua casa mesmo. Quem sabe se não tivesse partido prematuramente não teria ela aberto seu Alpharrabio? Também me lembro da Casuística, a revista eletrônica que agitei entre 2009 e 2013 - interrompida com o vazio trazido pela partida da Misson, que assumira a função de co-editora a partir da segunda edição. E dos "poetinhas", o grupo de poesia agitado pelo Cassio e Jeff, do qual eu participava como ouvinte, por não ser um gênero no qual me arrisco. Um lugar desses seria uma preciosidade para o daniel de 2010, 2012, e seus amigos.

Antes mesmo de ir à Alpharrabio, volta e meia recordo com nostalgia daquele meu ânimo em experimentar e arriscar, talvez mesmo fazer o papel de bobo, em nome de nem sei o quê - ter gente interessante e igualmente realisticamente rebelde com o princípio de realidade por perto. 

Nunca achei que aquele meu ímpeto fosse coisa da juventude, ainda que acredite que tê-lo perdido seja fruto do tempo - não o tempo que simplesmente passa, mas o que deixa cicatrizes, no meu caso, dessas três perdas: Misson, meu pai e minha mãe. Dalila abriu a livraria com mais idade que tenho hoje, e não só isso: é explícito o tesão com que leva suas atividades - a livraria e o ativismo cultural em Santo André, que já lhe rendeu uma série de homenagens, além de um doutorado honoris causa. Claramente idade não é algo que interfere na juventude de uma pessoa - antes como ela consegue levar as adversidades da vida.

Isa me mostra detalhes da Alpharrabio: o auditório, as esculturas, os livros da editora, os livros-objeto. As escadas no jardim interno me remetem à Prainha da PUC. O mimeógrafo posto como enfeite me faz lembrar do "livro" que produzimos na escola, rodado em um aparelho desses, com o cheiro de álcool a marcar a alegria de termos nosso livro - eu tinha oito ou nove anos, estava na terceira série. Naquela época nunca que eu imaginaria que um dia lançaria livros de "verdade" - hoje me questiono do que valeria lançar os que tenho no prelo.

É perceptível o afeto que atravessa o mostrar e recordar de Isa: "cresci em meio às reuniões de poesia de minha mãe, primeiro na casa das pessoas, depois aqui. A Alpharrabio é minha segunda casa". É o mesmo afeto que me atravessa quando penso na casa de Pato Branco - e me vejo mostrando ela aos amigos e companheiras que chegaram a conhecê-la com essa mesma empolgação, de um passado vivo e presente. A diferença é que a casa de Pato nunca deixou de ser a primeira - junto com as outras que tive. Casa que sonhei hoje, e que no meu sonho não estava vazia, como está há dez meses, pelo contrário: estavam lá meu pai no balanço, minha mãe com os bonsais e meu irmão com a reforma da cozinha, que ele levou a cabo ano passado.

Na volta, na estação esperando o trem, como fizera vários fins de tarde de 2012, me pego pensando em tudo o que me ficou pelo caminho entre Santo André e São Paulo, entre 2012 e 2022: ânimos, ímpetos, desejos intensos de experimentar... futuros do pretérito interrompidos pelo que a vida tem de mais ordinário: a morte. "Viver é ir morrendo aos poucos", dizia minha mãe.

Foram mesmo só dez anos desde o último trem que peguei ali?


10 de dezembro de 2022

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Macedo, meu nobre colega [por Sérgio S., da Equipe Trezenhum. Humor sem graça.]

Macedo, meu nobre colega, como comentei em outro texto, sempre me acompanha nos entretenimentos de hora do almoço - vulgo comer e dar um rolê, às vezes fazer compras. 

Antes de continuar, um parênteses. Para não ter toda vez escrever "Macedo, meu nobre colega", vou abreviar para "Macedo MNC", mas não seja preguiçoso ou preguiçosa ou ambos e siga lendo "Macedo, meu nobre colega". Fecha parênteses.

Foto de Macedo, meu nobre colega, em suas últimas    
férias (arquivo pessoal dele, vulgo Instagram)

Não apenas isso, os demais colegas - que são nobres, mas não se chamam Macedo - dizem que somos parecidos: ambos magros, filhos de bancários, barbicha parecendo um ninho feito por um pombo bêbado, as mãozinhas para trás na hora de caminhar, guarda-roupas com pouca variedade (quer dizer, eu acho que ele tem um guarda-roupa, mas pode ser que seja uma pessoa chique e tenha um closet), humor bastante peculiar e que dividem com poucas pessoas, e branquelos - ainda que ele tenha um tom fanta mais autêntico e eu esteja para um branquelo-amarelado encardido (ao menos minha mãe sempre critica minhas roupas brancas, que ela diz estarem encardidas por conta do tom de branco que possuem). Por causa dessas semelhanças entre nós, eu acabo ficando estatisticamente parecido com um colega que trabalha alguns andares acima, no que hoje chamam de Rooftop (lê-se rufitóp), mas no meu tempo era apenas último andar, a quem chamaremos aqui de Fernández, Funcionário do Topo (FDT), sendo que o topo aqui se refere ao topo do edifício, não da carreira. Isso porque, apesar de eu não parecer com Fernández FDT, ele e Macedo MNC se parecem, e como eu e Macedo MNC nos assemelhamos, sobra que termino por ser estatisticamente parecido com o nobre colega Fernández FDT, de alguns andares acima.

Novo parênteses (me desculpe tantas interrupções): acabei de notar que o MNC não é uma boa, por dois motivos. Primeiro: vai que alguém se refira a ele como "Macedo, teu nobre colega", e um "Macedo TNC" não seria merecido com o nobre colega. Segundo, pelo risco de que alguma hora apareça no trabalho alguma "Yara, Minha Colega Admirável", e uma abreviatura com as iniciais induza um certo playboy meia bomba que faz cosplay de "não sou pulítico, sou jestor" e que gosta de se fantasiar de Village People para ir na Little Seul a achar que estou falando dele e me meter um processo. Fiquemos, então, com Macedo M, apenas, mas insisto para que o prezado leitor, a prezada leitora não seja preguiçoso ou preguiçosa ou ambos, e siga lendo Macedo, Meu Nobre Colega. Fecha parênteses. Ou melhor, abre outro, rapidinho: até pus a música aqui, pra acompanhar, achei que ficou supimpa. Agora fecha. Ou abre de novo para o tema nomes: acabei de notar que Fernández FDT ficou perto também de uma abreviatura infeliz, e que falado em voz alta pode ser confundido com um sonoro FDP, que Fernández não merece. Vamos convencionar, então, de usar só uma letra, assim, Fernández, Funcionário do Topo, o Fernández FDT, será apenas Fernández F. Agora fecha de verdade.

Na verdade foram tantas interrupções que precisarei encerrar este texto sem narrar o que pretendia e que você que me lê esperava. Peço desculpas e paciência: creio que foi por um bom motivo: facilitar a compreensão e apresentar nosso herói, Macedo M (lembrou de ler "meu nome colega"?). Na verdade, o herói deveria ser eu, Sérgio S, mas trupiquei nesses parênteses e sem querer perdi até o protagonismo da crônica. Ou nem sei se foi tão sem querer, porque Macedo M (não esqueça do "Meu Nobre Colega"!), sempre eficiente e concentrado, costuma ganhar o protagonismo e os elogios dos chefes (e não reparar nas suas barras de gergelim da gaveta).


05 de dezembro de 2022

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Das vantagens em se trabalhar no centro [por Sérgio S., da Equipe Trezenhum. Humor sem graça.]

Reconheço um ganho em qualidade de vida ao ter o trabalho transferido da Marginal Tietê para a região central. A começar pela proximidade de casa e a economia de R$ 4,40 diários, o que totaliza praticamente R$ 100,00 mensais - pois agora a mesma 1h20min que eu levava para ir a pé do trabalho para casa eu gasto para ir e voltar. Me dou por satisfeito com essa caminhada, e isso me permite a economia de outros R$ 150 de academia. 

Afora essas vantagens monetária (já que o salário segue o mesmo) e temporal, que no fundo, conforme Benjamin Franklin, é tudo dinheiro, é na hora do almoço que o local de trabalho faz toda a diferença.

Na Marginal, começava que tínhamos três opções de almoço nas cercanias - uma barata, uma média-cara e uma cara, nenhuma muito boa -, e para o restante do tempo de almoço, a opção mais interessante era ficar contemplando o rio Tietê devidamente retificado, frequentado por brilhantes animais metálicos, sob o sol escaldante de ésse pê - o que talvez inspirasse poemas parnasianos em Marinetti ou em Mishima (ainda que não veja Mishima escrevendo poemas parnasianos, a não ser, talvez, com as próprias vísceras). Como não sou futurista (nem passadista), nem poeta (mesmo calado), nem fiz o curso de Ikebana e Harakiri do Anti-Espaço Cultural Casa de Lego* na época da Universidade, esse tipo de bucolismo urbano não me comove tanto... 

Em compensação, pelo centro são muitas opções de casas de pasto nas cercanias do trabalho, com grande variedade de preços e tipos de comida. Seria difícil até de escolher, basicamente impossível de enjoar, se eu não me restrigisse às três de sempre - que sequer são as mais baratas ou as mais gostosas.

O melhor mesmo de trabalhar pelo centro fica por conta das opções do que fazer para completar o horário de almoço. Sempre acompanhado de Macedo, meu nobre colega, e às vezes algum (ou alguma) outro colega, não menos nobre, mas que não se chama Macedo, saímos para ver exposições, passear por lojas (a 25 é logo ali, e nós evitamos), ou mesmo só zanzar vendo a fauna citadina pedestre. 

Quando nos centramos nas compras, invariavelmente sabemos distribuir nossas necessidades desnecessárias ao longo do mês, para estarmos sempre necessitando de algo: um estimulante modo do salário frugal garantir que não caiamos no tédio nem no consumismo desenfreado. 

Um dia saímos para fazer uma pesquisa de preços; no outro, para pesquisar outros produtos, que podem ser mais interessantes, diante das limitações monetárias. É na sequência que decidimos ir às compras: uma chave de mandril num dia, um jogo de três cuecas no outro, um odorizador de guarda-roupas no terceiro, um copo retrátil no quarto. E assim vamos, eu e Macedo, meu nobre colega, como se fôssemos dois barões do café esbanjando dinheiro, ou como se fôssemos Estragon e Vladimir esperando Godot: "a gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe", no caso, a gente inventa algo pra comprar. 

Os dias mais interessantes (e perdulários) costumam ser os que vamos à zona, o que costuma acontecer três vezes por mês: duas para comprar ervas, castanhas, frutas secas, ervilhas com wasabi e coisas do tipo, outra para ver se há promoção de cerveja e comprar queijos. Sim, eu sei que a zona cerealista não é tão grande, e poderíamos fazer a compra dos queijos, cervejas, das ervas e das passas numa vez só, mas precisamos fazer o tempo render.

E se acaso não temos o que comprar - ou meu orçamento do mês já está comprometido -, Macedo, meu nobre colega, sempre tem suas barras de gergelim para repôr em sua gaveta. Felizmente, até hoje ele nunca atentou que elas terminam num ritmo um pouco desproporcional ao que ele costuma comer...


02 de dezembro de 2022


* Piada retomada da época do Trezenhum. Humor sem graça. Quem acompanhou na época e/ou leu o livro (ainda tem para vender), entendeu.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Casa Mathilde - Tabacaria (Revisited)

Da janela da minha baia, no meio do Edifício Martinelli, observo a praça Antônio Prado abaixo. Faz frio e a garoa fina que caía quando cheguei já cessou. Transeuntes passam, todos bem agasalhados - alguns usam máscaras. Talvez seja o clima, talvez seja meu estado de espírito, o ritmo me parece mais lento que o habitual - perguntarei à Rose quando ela chegar. Defronte a falida Casa Mathilde, dois homens com colete de “Compro ouro” conversam ao lado de uma pessoa que dorme sob um guarda-chuva. Um vendedor de artesanato acabou de chegar e começa a montar seu tabuleiro. Apesar de fechada, a doceria tem hoje as luzes acesas. Deve ser dia de faxina, feita por hábito, para retirar o pó do seu fracasso que repousa sobre os móveis (fracasso da loja não diante do sistema capitalista que a devorou, que isso é natural, mas diante do tempo que a levará ao completo esquecimento em breve, assim como fará comigo e com você que me lê). Desde que me ponho a observar diariamente a praça, nunca houve, não há e não parece que será tão cedo que haverá uma pequena do outro lado da rua a comer chocolates, tirar seu papel de prata e me lembrar de como Álvaro de Campos levava a vida (só ele?). Na verdade, quase não há crianças neste canto da cidade, salvo as bem pequenas, acompanhadas de seus pais - é como se a infância fosse proibida nas ruas de São Paulo, assim como os outdoors. Ainda que houvesse uma criança a sair da Casa Mathilde, não sou o poeta para poder cumprimentar Esteves ou quem fosse o dono do estabelecimento lá embaixo e aqui em cima rascunhar qualquer genialidade - que já sonhei ter, admito. E de todos os sonhos do mundo que já tive em mim, hoje tento buscar algum ao qual me agarrar que não seja uma quimera juvenil - reconheço de antemão que isso não é mais que fuga de me encarar no espelho sem o dominó errado que vesti (eu, que nem sou de carnaval) e me ver tristemente envelhecido, levando a vida de luto em luto. Desreconhecer-me ou redesconhecer-me? Estou mais para um Bernardo Soares desorganizado que não conseguiu sequer se realizar na escrita. É quinta-feira, ainda posso pôr o vazio que me preenche na conta do trabalho e do cansaço do dia dito útil, em que me sinto um inútil em troca de receber parcos vis metais no fim do mês - começa na sexta e se alonga por todo o fim de semana o vazio de vida que me sufoca e é de responsabilidade minha. Poderia cantar que estou vencido, que estou lúcido; mas não sei a verdade e sigo vivo (o que não deixa de ser "estar para morrer"). No máximo, há uma despedida da irmandade com minha casa de infância, na ida a Pato Branco de daqui uma semana. Que serei eu sem ela, eu que não sei o que sou? Busco metafísicas, mas a dureza do mundo se sobrepõe - talvez o fato de eu não estar mal disposto. Me sinto estrangeiro do mundo e de mim mesmo, incapaz de entender de fato o que se passa nessas pequenas alegrias que meus iguais compartilham como óbvias. Tudo me pesa. Consegui desde muito me esquivar das pessoas em linha reta, mas meus caminhos com os demais tortos do mundo apenas se tangenciam por algum tempo, depois se afastam - em algum desconhecido rumo pela estrada de nada. Na ausência de chimarrão, tomo um chá mate enquanto escuto a quinta do Mahler. Queria que o universo se reconstruísse sem ideal nem esperança, mas há uma teima de minha parte e enxergo nas notas da sinfonia um jardim florido no Hades. Rose chegou, eu a cumprimento.

15 de setembro de 2022

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Sextou!

Há entre meus colegas de trabalho uma candura das sextas-feiras que me comove. Sei que esse sentimento de sextou tem a mesma originalidade que no fim da década de 1980, início da de 1990, havia nas famílias que corriam aos supermercados no primeiro sábado depois de receberem o salário, para fazer as compras do mês - cada época com suas alegrias sui generis (apesar que estamos num revival daqueles tempos)...

No fim de expediente de quinta já há um ar diferente em toda sala - uma expectativa quase infantil pelo dia de amanhã -, e na sexta adentram já com outro espírito, radiantes, como se o que se desenhasse para começar dali oito horas e encerrar menos de quarenta e oito horas depois fosse algo mágico e único.

Fingem não saber que é só mais um fim de semana curto e banal, em que os bem organizados conseguirão acavalar atividades para aproveitar o tempo, enquanto os esgotados vão vê-lo passar na velocidade inversa do que foi a semana de labuta. Sair à noite, passear no parque, caminhar pela Paulista no domingo, comer fora, praticar algum esporte, assistir a algum filme ou a um espetáculo ao vivo, encontrar amigos, ler: a lista de opções para um fim de semana é longa e não vai dar para fazer nem metade. E a coisa piora se se tiver a necessidade de preparar o almoço da semana, fazer a faxina, pôr em dia o sono da semana - e do fim de semana também, caso saia, ainda mais quando a idade já não é mais de vinte anos -, fazer as aulas atrasadas da faculdade. Mas ainda assim gritam sextou, como se fosse uma alforria - sendo que é só um leve alívio nos grilhões, talvez...

Ignoram, antes de tudo, que sexta-feira é o dia útil mais próximo da segunda-feira e da semana que muito em breve começará e engolirá as energias ao longo de cinco arrastados dias de trabalho, como sempre faz. Ignoram que dali quarenta e oito horas será domingo à noite com toda a melancolia do tempo que passou sem ser aproveitado em sua plenitude e que em doze horas o tempo tornará a passar alheio aos seus desejos, que voltarão a ser devorados por esse monstro que povoa a sociedade atual, cruzamento de Chronos com Sísifo.

Quarenta e oito horas não dá tempo para dar uma volta ao mundo, sequer! E estou falando de viagem de avião em vôos comerciais, não em repetir a aventura de Phileas Fogg e Passepartout - para isso seria necessário ter férias de juiz e emendar com umas licenças. Se se quiser algo mais modesto, dá pra quicar em Tóquio, comer um sushi, pôr a foto no Instagram e voltar - e dormir logo!

Escrevo esta crônica na quinta. As conversas que começam a se animar com o fim do dia me lembram da véspera de natal com meus amigos, quando éramos crianças: a animação e a expectativa com o presente que receberíamos no dia seguinte. Reparo uma vez mais em meus colegas: crianças empolgadas esperando o Papai Noel, sabendo, no fundo, que ele não virá e o que os espera, de fato, é o Homem do Saco, na segunda-feira que está logo ali, na próxima esquina.


01 de setembro de 2022

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Uma passagem segura e rápida

Aproveito que atravessei o Anhangabaú para comprar um salgado para ir até o Sesc 24 de maio, acessar a internet (não tenho pacote de internet no celular e não há wi-fi onde trabalho) e comprar ingresso para o concerto da noite da Osesp - não, o programa não parece tão interessante, mas sinto que preciso sair de casa e tentar retomar o que me fazia bem antigamente (bem dizer num outro mundo, antes não só da pandemia como do golpe), e concertos sinfônicos eram das atividades que geravam em mim o que Helmut Rosa chama de “ressonância”.

Chegando no Sesc, encostado a um pilar da entrada, um homem está estranhamente curvado. O homem é negro e, no que posso notar, não está bem vestido e tem ao menos dois de seus dedos com tinta branca. Ao reparar com mais atenção vejo que está mexendo no celular: assim como eu estava prestes a fazer, ele se utilizava da internet livre do local. Dentro do Sesc, pouquíssimas pessoas, sete ou oito, e muitos bancos vazios - mas para uma pessoa negra e pobre, o prédio estava lotado ou então fechado. 

À noite, pego o metrô, desço na Estação República e opto por experimentar a passagem que vai da estação até o estacionamento da Sala São Paulo e da Estação Pinacoteca. Sem dúvida, essa passagem torna o trajeto bem mais rápido, além de proteger eventual chuva na maior parte. Não dá para dizer que não esteja bonita a cenografia dessa passagem, ainda que lembre cena distópica de qualquer videoclipe do Radiohead. No alarms and no surprises, please. Em dada altura, há bancos junto à parede de pedras que faz a contenção do terreno, com vista para os trens que passam resfolegando seus gemidos metálicos, como um trabalhador em fim de expediente. Eu só consigo pensar que do outro lado desse muro há a rua, com pobres, putas, desvalidos, trabalhadores com pouca qualificação; rente ao muro deve haver (se o governo não fez uma faxina social recente) pessoas encostadas com seus cobertores cinzas e seus poucos pertences, pessoas que hoje passam fome, e amanhã, segundo a previsão do tempo, estarão passando frio também. Por seis anos passei frequentemente por ali (pouco menos de uma vez por mês, creio), voltando da Sala São Paulo: dava um pouco de receio, em especial pela rua ser mal iluminada e em alguns trechos pouco movimentada, mas nunca vi nem sofri nada.

Ao chegar no estacionamento, um letreiro luminoso avisa: “Agora você pode acessar nossos equipamentos culturais por meio de uma passagem segura e rápida que nos conecta à Estação da Luz”. 

Entendo que muitas vezes a arte tenha o poder de nos alienar de nosso dia a dia, e acho isso mesmo saudável, pode ser de grande ajuda para depois darmos conta de encarar a realidade com um pouco mais de força e disposição, sem mergulhar na mediocridade claustrofóbica e depressiva da “utopia do possível” que tentam nos impôr - eu mesmo, ali, na Sala São Paulo, buscava (em vão), por duas horas, esquecer das muitas questões que me afligem.

O que me deixou incomodado é essa alienação se manter para depois do espetáculo, do concerto: foi o letreiro do governo a ostentar orgulhosamente a falência da nossa sociedade e chamar de segurança o que é tão somente fuga e negação da realidade.


19 de agosto de 2022

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Vinho estranho

Luciana vem me ver. Ao chegar, pergunto se quer beber algo: água, chimarrão, café (novidade na casa!), suco verde (que é vermelho, por causa da beterraba e não do meu daltonismo, apesar dos amigos não perderem a oportunidade para fazerem a piada), rum, gin, vinho tinto ou branco. Ela aceita vinho branco.

Mostro a garrafa do vinho argentino que comprei na minha última ida à fronteira, a Bernardo de Irigoyen, perto de Pato Branco, em 2018, junto com minha mãe e meu irmão. Saliento o guanaco em relevo acima do rótulo, e antes de ela formular a pergunta eu já respondo: “sim, comprei por causa da garrafa”.  Já tinha dado certo numa oportunidade, quando comprei saquê pela primeira vez, por que não daria de novo? Estava com Vannucci na Liberdade e nunca nenhum dos dois havia bebido saquê. Decidimos comprar um. Foi ele quem sugeriu comprarmos uma marca que não era a mais barata e cuja garrafa era bonita. Me pareceram argumentos sólidos. Alguns anos depois, quando fui na festa de aniversário da Paty, uma amiga cujo pai é dono de um restaurante japonês, vi que usavam do mesmo saquê - que encarei como prova insofismável da validade do argumento da garrafa bonita para bebida barata é sinal de qualidade.

Mas para agora o que há é vinho, e não saquê - retorno ao causo. Uma, duas, três tentativas, a cada vez que o saca-rolhas sai, só vem farelo de cortiça. A rolha está seca e só me sobra empurrá-la. Luciana assiste a tudo com desconfiança. Encho minha taça e experimento um gole sob o olhar atento dela. “Está estranho, mas acho que está bom, sim”. Ela recusa a oferta para provar: “eu preciso trabalhar amanhã, não posso passar o dia no banheiro por causa de um vinho ‘estranho’”. Eu ainda insisto, digo que não está ruim, ou melhor, não parece estar ruim, só um pouco estranho. Ela reitera a recusa e abro, então, o vinho tinto, comprado aquela semana numa promoção no mercado - os dois paguei praticamente o mesmo, entre R$ 30 e R$ 40, apesar dos quase quatro anos que separam as compras. Do tinto, a rolha sai sem problemas, deslizando macia para fora da garrafa, produzindo aquela exclamação sem falhas - “Pop!” -, que anuncia que ali tem vinho e não vinus acre - ou qualquer outra reação química que torne o líquido "estranho" -, o que tranquiliza Luciana. Devolvo o vinho branco à garrafa, passo uma água em minha taça e encho as duas com o vinho tinto.

Antes de continuar, a atenta leitora, o atento leitor vai se perguntar: por que raios pus o vinho de volta, se estava estranho? Ainda que eu seja de família classe média, meus pais vieram de famílias de classe baixa, nunca esqueceram disso (por questões de preconceitos vários, os termos costumam ser usados para nordestinos, negros e pobres, mas posso dizer que sou filho de um retirante com uma boia-fria) e fui criado em uma  simulação de economia de guerra, em que, por exemplo, não se joga nada fora sem motivo, porque “vai que precisa”. Sim, isso leva a situações sem sentido, como notou uma ex-namorada, quando eu havia instalado na cozinha o móvel que havia feito no curso de marcenaria, reorganizava meus víveres e vi que havia algumas castanhas portuguesas que eu ganhara de uma outra ex, cinco anos antes - certamente já impróprias para o consumo. Comentei isso com ela, e pus o pacote no armário, ao que ela perguntou: “se não dá mais para comer, por que está guardando?”, eu estava prestes a responder “vai que uma hora precise”, quando percebi que a razão era inconsistente, e com peso na consciência me vi forçado a jogar comida fora... Sobre essa ex-namorada, outro ponto bem a propósito neste longo parênteses: seus pais adoravam vinho, e tomavam apenas vinhos caros. Seu pai buscava qualquer pretexto para beber, e conversar comigo era um - eu gostava das conversas, ele contando, dentre outras coisas, da sua atuação no PC do B no final da ditadura e início da redemocratização. Numa conversa de uma hora e pouco, abria três garrafas, na qual eu bebia uma taça da primeira, meia da segunda e dois dedos da terceira - como forma de garantir que conseguiria voltar caminhando para casa -, e ele bebia o "resto". Não que ele não fizesse por hospitalidade (não era com todo mundo que ele aceitava dividir o vinho), mas, sem dúvida, eu era um ótimo interlocutor nesse sentido.

Retomemos o vinho presente, agora o tinto. Ao beber o primeiro gole, noto o que estava estranho no branco. Terminada a taça, aviso que vou voltar ao argentino. Luciana, reticente, recusa. Talvez a segunda taça tenha feito ela baixar a desconfiança, talvez tenha visto que eu, após um gole e uma taça, seguia vivo e normal (quer dizer, normal dentro do esperado após duas taças); talvez porque tenha notado que apesar das muitas partículas de rolha flutuando, o líquido era mais encorpado, mais denso que o tinto que bebia, e aceita quando insisto para que o prove. Pois tão logo bebe o primeiro gole, me critica: “Por que não me deu logo de cara este vinho!? É muito bom!”, “Mas eu te ofereci”, “Você falou que estava estranho”, “Mas eu estranhei”. Ela não dá conta de ir além de uma taça, de modo que me sobra boa parte da garrafa. 

No dia seguinte irei pesquisar na internet, para quem sabe comprar novamente, mas desistirei: meu salário de funcionário público desvalorizado não me permite: custa quase trezentos reais, mais o frete. Isso também explica meu estranhamento: desacostumado, desde que terminei com a ex acima citada, a beber vinhos de melhor qualidade, não fui capaz de reconhecer quando me deparei com um. Certamente se os pais da minha ex lerem esta minha crônica vão se perguntar por que não me ofereceram suco de uva, mesmo, diante de paladar tão primário.


10 de agosto de 2022

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Amor - releitura para uma fria tarde paulistana de 13 de maio de 2022


Há setenta anos o banal se apresentava a Ana, personagem de Clarice Lispector no conto "Amor", de modo a perturbá-la profundamente: um homem cego mascava chicletes. “Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir”.

Não sou Ana nem Clarice nem estamos em 1952. Apesar de calejado sob a lógica do choque e semi-anestesiado da brutalidade quotidiana deste século XXI, o dia a dia ainda me perturba - às vezes demais. Nada que rompa algum eventual “calmo horizonte” ou “vida sadia” que há muito desacredito haver, pelo contrário, o banal desponta para tirar da anestesia, me trazer bruscamente de volta ao “modo moralmente louco de viver” que tratamos por "normal", entre um assédio moral, um xingamento no trânsito e uma criança que pede esmolas.

Há cerca de um mês, por dez dias, passei diariamente duas vezes - uma ao ir, outra ao voltar do trabalho - por uma mulher sentada junto a um muro, numa rua de mão dupla, pernas cruzadas, sacolas em volta. Fazia calor mas ela estava sempre de roupa comprida - a mesma, que não era nova mas tampouco estava puída e pouco aparentou sujar nesses dias. Olhava sempre na mesma direção. Parecia esperar alguém, ainda que sem impaciência, como se tivesse ciência de que havia chegado cedo demais. Esperaria Godot? Ou será que quem espera Godot sou eu? 

Cogitei mudar meu caminho, ao menos o da volta, porém não resistia à tentação de passar por ali, na esperança de que algo acontecesse, alguma resolução, presenciar alguém a conversar com ela, a chegada de Godot - que fosse uma mudança de lado para o qual olhava ou de posição, além da inversão da perna que ficava por cima. O máximo que vi foi uma das vezes ela um pouco mais deitada que o habitual, em outra ela com um café com leite em um copo descartável. Teria ela se levantado para buscar ou alguém lhe trouxera? 

Dez dias ali, exatamente no mesmo lugar, quase que na mesma posição. Até que ela sumiu: quando passei pela manhã o local estava vazio como se aqueles dez dias tivessem sido uma ilusão minha, como se ela não existisse e aquela calçada fosse somente lugar de passagem desde todo o sempre. Sumiu também minha angústia de vê-la sempre ali - restou apenas a angústia.

Hoje a situação foi mais banal ainda - e mais rápida. 

Termino de atravessar a rua. Uma mulher grita "meu celular!", vejo outra mulher correndo na minha direção - quinze metros, pouco mais, nos separam. A mulher que corre é preta e usa havaianas. Está com uma camiseta vermelha manga curta, apesar do frio que faz na cidade e do vento cortante que sopra sobre o viaduto - deve haver algo escrito, não consigo ler. Em seu rosto noto algo como um sorriso - mas não deve ser um sorriso. Se for, deve ser de nervoso. Por que estaria sorrindo a mulher? Ao chegar em casa, creio identificar sua expressão na foto da capa do livreto da peça Galpão de Espera, apresentada no CCSP - mas devo estar influenciável, não há nada na boca da mulher a lhe arreganhar os dentes. Influenciável vou reler Clarice - Amor. Não coloquei Criolo para acompanhar a leitura. Deveria? Existe amor em SP - existe fome também. São coisas separadas, creio - nunca passei fome. 

A cena é rápida, mas esse tempo parece dilatado e me permite pensar e reparar em muita coisa. A mulher passa por três pessoas, que se viram para acompanhá-la; a mulher furtada começa a correr com muito atraso. Eu retardo meu passo e me ponho na linha da mulher. Uma mulher preta de havaianas e camiseta vermelha corre na minha direção. Não esboço nenhum outro movimento. Não pretendo agarrá-la e temo um choque entre nós. Não pelo impacto, mas por temer que as quatro pessoas que presenciam a cena decidam fazer justiça com as próprias mãos por causa de um celular. Ou que ao menos queiram chamar a polícia enquanto seguram aquela mulher como segurariam um animal selvagem, uma escrava fugitiva no 13 de maio de 2022, uma mulher preta e sem perspectivas que arrisca sua integridade física por migalhas que lhe permitam sobreviver até o dia seguinte - e que provavelmente já tem sua integridade emocional e psicológica destroçadas. Nossa bandeira jamais será vermelha como a camisa da mulher, mas nossas calçadas e periferias são desde muito - um vermelho muito mais vivo, de violência e morte. 

A mulher corre direto em minha direção, sua expressão com os dentes à mostra me chama a atenção. Não parece mascar chicletes, nem é cega. Seria um sorriso? Por que sorriria? Ela se insinua para minha esquerda, eu não indico nenhum outro movimento que o seguir caminhando. Ela atira o celular em meus pés, se desvia e foge. Eu não me viro para acompanhar seu trajeto, tampouco me abaixo para pegar o celular do chão. Ninguém ousa persegui-la também, para meu alívio. Seguimos todos a vida, como se aquela cena banal fosse... banal. 

A dona do celular pega seu aparelho, xinga a negra que foge: "vaca! Vacilona!". Depois me agradece. Eu não perco a oportunidade de devolver o impropério que julgo apropriado: "se seguir dando vacilo assim, vai perder o celular, mesmo". Ela agradece mais uma vez - tenho a impressão de não ter entendido quem é a vacilona da cena, mesmo depois de ter-lhe dito. 

Eu, definitivamente, não tenho certeza de ter feito com isso uma boa ação - ainda que se fosse o meu celular eu gostaria de não perdê-lo. Sigo meu caminho, estou a poucas quadras de casa, e a expressão indecifrável mulher preta que corre em minha direção numa tarde de frio e desalento me persegue e me perturba, como o cego que masca chicletes desde 1952, enquanto espera seu ônibus.


13 de maio de 2022

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Reencontro (e o tempo que passa numa velocidade que não consigo acompanhar)

A campainha toca, Guile pula de meu colo, Libertad fica alerta. É Luís - primeira visita que recebo em casa em 2022. Abro a porta, nos cumprimentamos, ele ainda de máscara. Ao tirá-la reconheço o Luís de sempre, em suas pequenas variações capilares. É ele quem me avisa do tempo: “Caramba, depois de mais de dois anos!” É isso: não foram duas semanas, e sim mais de dois anos sem nos vermos. Não é o Luis de sempre. É o Luís de 2022 - como eu também, sou o daniel de 2022.

Libertad corre para o corredor, assustada com o “estranho” - e não adiantou Luís tentar chamá-la. Guile, como é de seu feitio, vai se esfregar em suas pernas, todo “eu sou fofo, aproveite e me afofe”, cobrar seu tributo para que a visita sinta-se em casa. 

Não são duas semanas. Não são apenas as últimas novidades a contar e falar da vida, como sempre fazemos - durante a pandemia seguimos nos falando pela internet, mas um encontro real é sempre de outra qualidade, ainda mais com um grande amigo. Dois anos. Dele, sei que agora já é arquiteto e urbanista formado e devidamente desempregado - apesar do currículo. E muito iremos discutir sobre o ponto onde ele está e por onde poderia ir - eu, inveterado palpiteiro dos amigos. 

De mim... o que sei? Primeiro, que preciso perceber que muito tempo se passou desde que ele foi embora da última vez, avisando que voltaria no mês seguinte, quando as aulas da FAU começariam e ele passaria a dormir uma vez por semana em casa, como vinha fazendo há dois anos. Quantas coisas a contar em detalhes que só as mãos conseguem expressar. Libertad fica a espreitá-lo. O concurso entrado a fórceps, a transferência de um trabalho que eu gostava para um que não me faz sentido - e me faz sentir quase um parasita. Fim do relacionamento, início e fim de outro. O início de uma nova faculdade. A partida de César. Os planos mirabolantes de sempre - com os convites sem noção para ele se juntar a eles. A mudança para Pato Branco e a volta para São Paulo. A perda da minha mãe - mas antes disso, toda uma vida vivida em sete meses ali com ela e meu irmão, sabendo do fim e tentando viver como se a vida fosse seguir (e ela de algum modo segue, cá estou eu a escrever mais uma crônica). Ele sabe disso tudo, mas discutimos como se fossem novidades de ontem, da semana passada. 

Noto minha vida nesses dois anos foi de um bem-me-quer-mal-me-quer de inícios e fins. Início, fim, início. Fim, início, fim. Fim, início, fim. Início, fim, início. Fim. Início. Fim. Na volta do barco é que sente o quanto deixou de viver. E depois, nesse bem-me-quer-mal-me-quer da vida, cujas pétalas arrancadas nada tem a responder ou sugerir um caminho, vem o que? O início ou o fim?

Libertad se aproxima, ainda receosa, fica um tempo a observá-lo - e nós a ela, até que retomamos a conversa. Lembrei que certa feita Natália havia comentado que a gata andava com umas brincadeiras mais sofisticadas; alguns dias depois, ao entrar em casa, e vê-lo entretido brincando de esconde-esconde com Libertad, entendi de onde ela vinha se aprimorando - enquanto Luis ficava sem graça de ser pego em plena infância aos trinta anos. Libertad interrompe nossa conversa com miado alto direcionado a Luís: parece que lembrou, finalmente, de quem se trata, e agora pergunta se ele se lembra dela. Recebe um agrado de confirmação e a partir de então gruda nele.

Vamos entretecendo memórias, planos e angústias, entre discussões de músicas e política, eu preparando arepas (algo que aprendi a fazer em Pato Branco e que minha mãe apelidou de "xis-polenta"), e o mate circulando na roda curta de duas pessoas. Início-fim-início-fim. Recordamos da Copa de 2014 e o festival de pessoas vestidas fora da "normalidade", da padronização que a cordialidade brasileira exige: não foi mês passado, não? Início-fim-início.

Lembro da minha idéia de “sentir-se em casa”, que vai além do lugar, está nos afetos que fazem com que eu me sinta à vontade. Estou em casa duas vezes esta noite. Fosse antes, a conversa se estenderia madrugada adentro, mas eu preciso acordar cedo, para bater cartão - e ele já pela manhã pega o ônibus de volta. Fim-início-fim.

Nos despedimos ainda com muito assunto pendente. Fecho a porta. Libertad mia novamente, talvez indignada que Luis sequer brincou com ela. Fim. Eu vou me preparar para dormir. Me olho no espelho, reparo nos cabelos brancos, meus primeiros, que começaram a despontar há poucos meses. Início. Me vejo envelhecido como nunca antes me vira. Estou há dez anos em São Paulo, mas parece que faz, no máximo, dois. Fim-início. Quantos anos terão transcorrido no calendário no que senti como sendo a passagem de dois ou três meses? Inicio.


18 de abril de 2022

domingo, 6 de março de 2022

Meus refúgios quotidianos

Desde longa data busco locais de refúgio quotidiano: algum canto onde, por algum instante, o tempo caduca e o peso do mundo e a densidade da existência parecem dar uma breve trégua, um respiro. 

Na minha adolescência, em Pato Branco, achava esse refúgio em meu piano e nos Beethoven e choros mal dedilhados que eu tocava. Em Ribeirão, encontrei nos pores do sol vistos do alto, da sacada de onde morava, enquanto tomava chimarrão (hábito adquirido não fazia muito, em minha primeira viagem a Buenos Aires) e ouvia Radiohead; era também a praça Camões, nas tardes de sol dilacerante. Em Campinas meus refúgios foram uma mureta do IFCH, onde professores alunos e funcionários circulavam dando ao ambiente um ar de aquário humano; o pôr do sol no vão da Biblioteca Central; por um tempo foi o brincar com tintas, ainda que tivesse o mesmo talento que tinha para música; e, em um breve período, o fim de tarde em companhia de uma garota (a quem até hoje vejo como um marco em minha vida, quem pôs fim a quem eu havia sido até então e me empurrou para quem eu seria a partir da relação com ela). Já em São Paulo, era um lamento constante não ter encontrado esse refúgio, até que em uma das últimas conversas com minha mãe me dei conta de que eu o possuía, sim: são alguns de meus caminhares a esmo pela região central da cidade - solitário ou acompanhado.

A percepção desse refúgio em movimento em São Paulo se deu justo quando estávamos nós - eu ela meu irmão - caminhando pelo que foi nosso refúgio nesses sete meses em que voltamos a morar juntos em Pato Branco - até a partida de mãe -, a rua Salvador. 

Chegamos a ela sem querer - fica há quatro quadras de casa e creio que nunca havíamos passado por lá antes. Voltamos a ela seguidamente, sempre que mãe sentia que tinha força suficiente para subir um morro (moramos num vale, cercado por pirambeiras pra todos os lados que não em direção ao centro da urbe), sempre no fim de tarde, o sol já se pondo atrás da cidade. 

Trata-se de uma rua curta, simples, bem cuidada, estreita e plana (o que é incomum para a cidade), com casas de uma classe média conformada, sem luxo nem carências nem disputas ostentatórias, em geral com quintais muito arborizados. Começa com um terreno baldio de um lado, do qual mangueiras, bananeiras e abacateiros invadem a rua com seus galhos; e uma araucária do outro, onde agora moram as curucacas que viviam no terreno de casa, até termos que cortar nossa araucária de estimação (que corria risco de cair e não tinha como salvá-lo), em 2015, pouco antes da partida de pai. Logo a seguir, um bambuzal numa simpática (e típica) casa de madeira, com uma bomba d'água manual no quintal. Termina numa rua particular, com hortências de um lado da rua, árvores do outro, até chegar a uma casa e depois dela, a plantação de soja (isso a um quilômetro do centro da cidade). 

Talvez seja de fato uma rua simplória e sem graça, mas ao subirmos lá, com mãe encarando o cansaço da doença e do tratamento, ganhou contornos mágicos para nós. A mim, parecia saída de uma animação do Miyasaki, cujo dourado do sol se pondo carregava ainda mais essa impressão. A qualquer momento eu esperava por um dirigível ou uma bruxa a passar sobre nossas cabeças ou um totoro esperando pelo ônibus. Mas não presenciamos mais que o ordinário: plantas, flores, frutas, bambus, araucárias, aves, saguis, preás, pessoas, carros, casas, pores do sol. E desse ordinário, na companhia de minha mãe e meu irmão, tecemos nosso último refúgio comum, onde a doença dava uma trégua, a contagem regressiva do relógio parecia se interromper e discutíamos a necessidade de pedir para pegar um ramo daquele bambu amarelo e plantar no quintal da nossa casa; ou de cogitar se as curucacas voltariam para nosso terreno quando o pinheiro que tem lá crescesse mais. Um refúgio onde compartilhávamos um afeto tranquilo, suspenso das preocupações mais urgentes e aflitivas que a doença impunha, onde fazíamos planos para o futuro e combinávamos quem faria o jantar daquela noite.


01-06 de março de 2022


PS: termino de revisar esta crônica numa noite de domingo, o terceiro domingo que passo em São Paulo este ano. Diante de mais uma tarde que vai se preenchendo de ausências e vazios (como tantos inícios de noite da semana dita útil), noto outro refúgio que tinha desde que saí de casa, há vinte e dois anos, e cuja função me passara despercebida: a conversa por telefone com meus pais. Talvez eu precise achar um jeito de seguir a sugestão feita por mãe, dois dias antes de completar seu ciclo: contou que sempre que sentia necessidade, pedia "colinho" para seu pai e sua mãe. Questão é como conseguir fazer essa chamada a meus pais, encontrar seu "colinho".

PS2: pesquisei no Google Street View. As fotos são de 2011, uma rua sem graça, anódina