quarta-feira, 19 de abril de 2023

SP só para vips: a destruição da vida urbana pelas concessões dos espaços públicos da cidade

Quando a reforma do vale do Anhangabaú ficou pronta, em 2020, houve grande discussão sobre seu aspecto visual: muita gente não gostou da nova configuração do vale, criticaram a troca das pedras portuguesas e da referência ao modelo de cidade jardim e do projeto Bouvard que o projeto da década de 1990 remetia, por um vale feito de uma grande esplanada, num anódino pós-moderno que remete à cidade barroca caracterizada por Mumford, em sua ânsia de regularidade e velocidade, e que se encaixa no que me parece ser a proposta modernizadora das elites paulistanas após 1930 para a cidade, capitaneada por Prestes Maia e seu sistema de vias expressas e uso do leito de rios para construção de uma “cidade cenográfica” - a Chicago latinoamericana. 


Fora dessa questão estética - e mesmo de citações históricas -, uma vez inaugurado, a nova configuração do vale do Anhangabaú mostrou grande vantagem frente a antiga: frequentador assíduo da região desde que me mudei para a capital, em 2012, o antigo vale podia até ser mais bonito, mas era um local de passagem (e passagem incômoda, já que sequer permitia ir em linha reta de um lugar a outro), onde os únicos que ali se demoravam eram moradores de rua. Após a reforma, o vale foi adotado por skatistas - que costumo brincar dizendo que são os liquens de São Paulo -, a seguir atraindo uma ampla variedade de citadinos, se tornando parte do dia a dia de muitas pessoas, não mais apenas como passagem, e sim como um lugar para estar, de convivência entre diferentes - apesar de não ter árvores, apesar de não ter citações às aspirações das elites da primeira república ou mesmo da época colonial, apesar daqueles chafarizes patéticos, apesar dos defensores das paisagens que lembram a belle époque não terem gostado.

A mim, assumo que uma cidade bonita é uma cidade viva e plural, e não uma organizada pelo urbanismo, cheia de citações e canteiros bem cuidados, e estéril de vida, vazia de pessoas e encontros.

Ocorre, porém, que a empresa privada que ganhou a concessão do vale do Anhangabaú, em 2022, dá sinais evidentes que essa vivacidade que essa região do centro tem recuperado está em perigo - em nome da gentrificação e do lucro, claro.

Quem frequenta o vale tem se deparado seguidamente com circulação bloqueada em boa parte dele, para montagem ou desmontagem de estruturas de eventos. Assim, aquela ampla gama de usuários que se formava vai sendo impedida de utilizar um espaço público. Isso já não deixa de ser um problema: para eventos de uma ou duas noites, tem-se matado por duas semanas ou mais toda uma vida do dia a dia que se formava. 

Desde a semana passada, a intervenção no vale para evento ganhou uma nova dimensão: para a montagem de um grande evento de música, com quatro palcos, não apenas os frequentadores da região foram expulsos como a própria circulação está muito prejudicada - e cartazes avisam que vão piorar e durar até o dia 27. 

A situação, contudo, é muito mais grave: não se trata apenas de matar a vida no centro da cidade em favor de grandes eventos (e neste ponto tenho minhas críticas à ideia de virada cultural, porém isso fica para outro texto), mas de restringir quem pode frequentar esses eventos, excluindo do espaço público quem não tem dinheiro.

Se no ano passado, no ensaio dessa privatização do espaço público no vale do Anhangabaú, com a transmissão dos jogos da copa do mundo, havia uma limitação de pessoas que poderiam adentrar o espaço, por uma questão de segurança, ao menos qualquer pessoa que chegasse antes da lotação entrava - fosse rica, pobre, morador da Faria Lima ou morador de rua. Agora, a entrada é barrada a todos que não possuam dinheiro. E não é pouco dinheiro (mesmo que fosse R$ 10, isso já afrontaria o caráter público da rua e do centro). No início do mês uma festa da ESPM cobrava R$ 300 de entrada (ironicamente a festa se chama "Festa do Branco: singularidade", uma festa onde provavelmente havia gente branca padrão como se fosse produzida em série). Agora, um festival de dois dias tem as entradas a R$ 1.800 (inteira, incluídas as taxas do site; a entrada VIP fica em R$ 3.060).

Há, ademais, um terceiro problema: a reverberação do som pelo vale, em especial os graves, que incomoda (e muito) moradores de um raio de pelo menos 2 quilômetros de distância, como contou um amigo que mora no Bixiga e falou das janelas vibrando madrugada adentro, por conta do som da tal festa branca, digo dos brancos, digo festa do branco: singularidade.


O “novo vale” é apenas um exemplo. Mas a série de concessões de espaços públicos à iniciativa privada pela gestão Doria Jr-Covas-Nunes, sob a desculpa de economia (irrisória) de dinheiro público, tem tido vários eventos desse tipo, em que se exclui o caráter público de locais públicos abertos, e perturba toda a população do entorno. No início do ano foi uma rave no Jardim Botânico, o que prejudicava, inclusive, a fauna local, indo contra a própria lógica de um jardim botânico; mês que vem há um festival nas áreas abertas do Parque do Ibirapuera, com ingressos de até R$ 782 por dia (mas há ingresso social, por módicos R$ 667). Repito: não se trata de algo no prédio da Bienal, no Auditório interno, na Oca: são os espaços abertos do parque que estarão fechados a quem não puder pagar (deixo para falar mais do parque Ibirapuera em outra oportunidade - quer dizer, isso se não mudarem os “naming rights” do parque até lá, para Parque Lojas Americanas, Parque BTG ou algo assim).

E esses grandes eventos em espaços públicos concedidos à iniciativa privada acontecem como se não existissem vários locais privados (e mesmo público, porém de entrada restrita) aptos a recebê-los, com muito menos impacto social, ambiental e na vida da cidade.

Sorrateiramente - mas não muito - os espaços públicos de São Paulo vão sendo privatizados e boa parte da população da cidade vai sendo privada de ocupá-los. A cidade vai se desfazendo no que a caracteriza como cidade, que é a convivência e a troca entre pessoas dos diversos cantos da cidade, de diversas classes sociais, com diversos repertórios de vida. O próprio carnaval de rua é outro exemplo de tentativa dessa privatização, desde o início da gestão Doria Jr, e por ora represada por conta da luta firme e intransigente de muitos dos blocos, os que se negaram a entrar nessa lógica de restrição e lucro. 

Temo que ainda estejamos no início desse processo, e prefiro não imaginar até onde pode ir a destruição de São Paulo sob esse tipo de concessões, caso não sejamos capazes de nos organizar para barrá-la.


19 de abril de 2023


PS: pesquisando sobre as ações no vale, achei um site de aluguel de quartos no centro, sem nenhum CNPJ ou referência a quem seriam os responsáveis pelo site, apresentando o novo vale como grande chamariz para alugueis surreais, de R$ 3.000 por um “apartamento” de 30 m², por exemplo.

PS2: O podcast Prato Cheio, do Joio e o Trigo, está com um episódio intitulado "A cidade das marcas", que trata justo sobre essa penetração privada na lógica que deveria ser pública. Recomendo muito. Está em https://spoti.fi/3mYdWPv

PS3: Uma correção no que escrevi acima. Conforme me foi informado pelo skatista e multiartista Fernando Granja, o Vale do Anhangabaú já era um espaço utilizado pelos skatistas desde os anos 1990 (como essa região é muito ligada à cultura de rua, desde pelos menos a década de 1980). Inclusive, quando nessa reforma, se uniram para que se mantivesse as pedras de granito rosa, que se transformaram num memorial do skate, próximo à saída do metrô São Bento. Está no mini documentário "Pedra sobre pedra", disponível no youtube: https://youtu.be/waaX73obfxw . Talvez minha percepção de não muito frequentado antes da reforma, mesmo por skatistas, seja que eu tenha passado a frequentar a região quando a Praça Roosevelt havia sido recém inaugurada da sua reforma - e atraía grande número de skatistas. Ou talvez seja só eu tentando um álibi para minha percepção equivocada de antigamente.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

O Brasil para aquém do Brasil [Diálogos com o teatro]

De um dos tantos conflitos e guerras civis suavizados e esquecidos do Brasil - o Cerco de Piratininga, em 1562 -, o Coletivo Estopô Balaio usa como mote para repensar o que foi e o que está o Brasil, e que devires podemos construir a partir daqueles que sempre estiveram às margens, a quem foram negados o estatuto de cidadãos - e mesmo de sujeitos.

Com o teatro documental que marca o trabalho do coletivo (como na excelente A cidade dos rios invisíveis, apresentada no bairro ao lado), Reset Brasil relembra o que muitos talvez sequer saibam, reelabora o que passamos por alto, resiginifca o que está cristalizado na história oficial. 

De um conflito aparentemente distante são puxadas outras tantas histórias, outros tantos conflitos e guerras suavizados e esquecidos no Brasil atual - principalmente esse conflito do dia a dia, banalizado por apresentadores de tevê, políticos e empresários oportunistas, que babam ódio em seus carros blindados e lucram com o sangue das periferias.

Contudo, para além dessas representações (quase abstrações, apesar de tão presentes e palpáveis nas suas consequências), Reset Brasil é feito antes de tudo de carne e concreto, e apresenta a quem estiver disposto a conhecer (levado pela mão, praticamente, já que vão buscar os espectadores na estação Brás) aquele pedaço da cidade e seus habitantes que os centrais, os cidadãos de fato, os mais próximos do sujeito universal (homem branco hetero cristão europeu ocidental*) não conhecem, seja pela distância, seja pelo preconceito, seja pelo medo, seja pelo não saber os códigos do lugar - e que muitos fazem questão de não conhecer, justo para poder manter o preconceito que os garante subjetivamente numa posição de moralmente valorosos e impecáveis.

A história do Cerco de Piratininga, da resistência indigena contra a ocupação pelos portugueses, apoiados por outros indígenas, do território em que hoje está São Paulo, serviu para que na construção do espetáculo pelas ruas de São Miguel Paulista os atores de ascendência indígena buscassem parentes pelo bairro, com quem possam reconstruir uma história de resistências e esboçar devires menos áridos. Descendentes de quem de fato ocupa esta terra desde tempos imemoriais, vindos de todos os cantos do país, mostrando aos brasileiros, aos paulistas e aos paulistanos sua condição de estrangeiros - do território, do solo, da própria história que reivindicam como a única. Uma espécie de “walking tour” por uma área da cidade relegada pelos poderes e pelos cidadãos de fatos, Reset Brasil conta a história de vida de gente tão banal quanto os espectadores - sim, somos banais e descartáveis como um morador da periferia, mesmo com nossa cidadania plena; assim como os habitantes dali são importantes e únicos, mesmo na sua condição de subcidadania.

A resistência desses sujeitos é apresentada na história das pessoas do bairro que emprestam parte de suas narrativas de vida, nas próprias ruas do bairro, nas vielas, nas casas que sobem contra o estado, reivindicando existência e cobrando a dignidade da cidadania que as paragens mais abastadas possuem: as mães de maio exigindo justiça pelos seus filhos mortos pela polícia, os moradores de ascendência indígena exigindo reconhecimento, homens e mulheres exigindo seus direitos - os básicos, de saúde, educação, moradia digna, alimentação, e os básicos-mas-não-tratados-como-tal, como diversão, descanso, qualidade de vida.

A crítica é direta, mas a forma como é construída, a partir do que é vivenciado por sujeitos periféricos (na cidade, na renda, na origem indígena ou negra) garante que o discurso não seja reduzido a jargões simplórios ou clichês de certa esquerda acadêmica (academicista).

Não por menos a peça nos convida a pensar e repensar que pátria é essa da qual tanto falamos em reconstruir, depois de seis anos de violências e de destruição ultra-liberal, militar e fascista-cristã: começar de novo a partir de onde? Dar o "reset" nessa nossa história de exploração e violências vai nos levar até que ponto? De onde seria esse recomeço para um país digno para todos?

Enquanto Haddad e a Faria Lima discutem o novo calabouço fiscal, as famílias milenares, que aqui vivem desde antes desta terra ser marcada pelo vermelho brasil da exploração e do sangue de milhões de pessoas, índios, negros e periféricos seguem resistindo - e suas demonstrações artísticas são momentos em que nós, os brancos colonizadores, conseguimos vislumbrar um pouco do que acontece para além de nossos horizontes limitados. É quando, deixando de lado nosso orgulho e nosso narcisismo, podemos vislumbrar que talvez as pessoas mais aptas a comandar o resgate do Brasil desse inferno tropical transformado pela cultura europeia nos últimos 523 anos não sejam os descendentes de quem fez esta terra ser regada de sangue para depois queimar até se transformar em areia e ódio.

O Cerco de Piratininga continua, com nativos (já confundidos em suas cores e ideias) dos dois lados disputando se seremos uma colônia, se buscaremos ser os novos colonizadores ou se seremos algo anterior a isso, anterior à europeia divisão mundial do trabalho e destruição da Pacha Mama. 


17 de abril de 2023


* Vale ressaltar que o sujeito universal pode ser incorporado por minorias, como tentativa (sempre incompleta) de se tornar um dos opressores - inclusive porque o Brasil não é parte do Ocidente.

PS: Sobre A cidade dos rios invisíveis ainda tenho esperança de um dia conseguir escrever sobre; infelizmente assisti à peça em momento de profunda crise da escrita.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

O fatídico colega Rivarola, o Doutor Sabujinho do momento [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Em minha última crônica, preciso confessar e me desculpar publicamente, fui injusto com Macedo, meu nobre colega. Havia dito que ele era o golden boy dos chefes. Nunca foi. Apesar de funcionário exemplar, compenetrado e produtivo, o funcionário do mês sempre ficou a cargo de algum puxa-saco - e isso Macedo passa a anos luz, mesmo quando um antigo chefe insinuou que ele se daria bem se fosse um “pouco mais flexível e imparcial".

Troca-se de chefia, mudam os colegas, contudo, desde que estou em meu atual emprego, sempre temos alguém no setor que é despudoradamente um Fagundes, personagem da Laerte - e a maioria dos chefes adora esse tipo de funcionário, ao menos num primeiro momento. Curiosamente, o perfil é sempre muito parecido: um doutor em sua área, fracassado conforme seus próprios parâmetros, disposto a compensar esse seu retumbante fracasso com elogios do chefe de turno, a quem serve de maneira constrangedora e sem preocupação se isso implica pisar nos colegas. Sempre me pergunto se esse tipo de pessoa acaba assim por falta de uma mãe para elogiar ou, no outro extremo, de uma mãe que tudo elogia e não conta que ele ser o filho perfeito para ela não implica em perfeição fora de casa - e que ele não precisa provar a perfeição que a mãe vê pra toda autoridade. Enfim, por conta desse perfil comum, esse colega acaba por ganhar a alcunha, ou melhor, o título honorífico de Doutor Sabujinho - e alguns comentários maldosos, digo, imparciais, para ficar no mesmo campo que o antigo chefe.

Que conste aqui, um medium scriptum para não ter que ficar no post scriptum: se acaso este texto aparentar que tenho algo contra os doutores Sabujinhos com quem já convivi em minha vida laboral, nunca foi além do trabalho e do pessoal; e ainda assim busquei manter o máximo de isonomia e imparcialidade com os fatos.

Claro, há pequenas nuances entre um Doutor Sabujinho e outro. O atual, o fatídico colega Rivarola (que não é nobre, que fique claro, e para ter direito a algum adjetivo, achei que fatídico ornava), tem em comum com os anteriores uma proatividade ostentatória, de quem pega todas as demandas para si - mas é esperto para logo em seguida despachar parte dessas tarefas para algum colega ingênuo de fato fazer por ele, que fica com a fama no final.

O Doutor Sabujinho anterior tinha como grande frustração não ser o professor de Harvard que ele se julgava merecedor. O atual, crente piedoso do empreendedorismo e do anarco-capitalismo-cristão (afinal, na Bíblia Jesus fala em “que atire a primeira pedra primeiro os clientes Prime e Personnalité com as mensalidades em dia”), foi injustiçado pelo mercado, digo, pelo Estado, que não permitiu que sua startup vingasse e ele se tornasse o Steve Jobs brasileiro. O mais próximo do sucesso como empreendedor digital que ele chegou foi ser motorista de aplicativo (e usuário do aplicativo de ajuda emergencial do governo), após abandonar a infrutífera busca de jobs na sua área, mesmo com doutorado. Umas horas penso que foi melhor para ele: como empreendedor de sucesso, não teria um chefe para puxar saco e não poderia desenvolver suas verdadeiras habilidades (que estão muito além de qualquer doutorado).

Como todo Doutor Sabujinho, Rivarola é um profundo conhecedor de... tudo. Na verdade, de tudo e mais um pouco. E ainda um pouco mais. Sem falar na sua área de doutoramento, onde o fatídico colega parece que não ganhou o Nobel somente porque perdeu a data de inscrição. Uma versão moderna do vizir da história de Nuredin Ali e Bedredin Hassan (“um homem prudente, sábio, penetrante, perito nas belas letras e em todas as ciências”). Da queda do nome do pai na psicanálise lacaniana à fabricação de microchips com cobres aniônicos (cuprate) de lantânio, hólmio e bário; de teoria econômica (todas as vertentes) aos grupos fuchsianos aritméticos; do factum da razão nos juízos a priori à influência das civilizações pré-axumita na arte contemporânea produzida pelos dissidentes neoístas pós festivais de apartamento em New York; dos verdadeiro desejos do verdadeiro deus ao manuscrito Voynich (que ele não deve ter ainda liberado a tradução ao grande público porque está em dúvida na tradução de alguns termos), Rivarola talvez só não saiba a cor da minha cueca do dia - talvez. Mas a do chefe, ele deve saber com certeza.

A grande diferença de Rivarola com relação ao Doutor Sabujinho anterior, é que este tinha um ar meio bobo que causava certa piedade (até nos depararmos com ele caguetando alguém para o chefe); já o atual tem mil ares: adora carregar nas expressões faciais e corporais - parece que fez o curso de atuação do Wolf Maya e aprendeu direitinho (poderia ter sido ator de Malhação, se fosse bonito). Ele tem sempre a expressão super expressiva para expressar o momento* de acordo com o que sente do chefe. Se é algo grave, ele incorpora a expressão fechada, o tom severo - parece um médico sério (são raros, mas existem) comunicando o estado terminal aos familiares -, mesmo que seja só um dado outlier que será excluído do relatório do mês; se é alegria o que o chefe espera, só falta dançar declamando poesias do Casimiro de Abreu (não confundir com o Casimiro Ferreira, por favor!
) pela sala. Não há piada do chefe que não mereça uma sonora gargalhada a ecoar pelos corredores, e não há nada sério dito pelo chefe que não lhe inspire o mais compenetrado olhar.

Novamente, me alongo na apresentação do colega e acabo sendo obrigado a deixar para uma próxima o episódio que queria contar.


13 de abril de 2023


* Reitero: não fui redundante, fui influenciado pelos grandes dramaturgos gregos, como Aristófanes. Inclusive em grego fica um simpático, veja: εκφραστική έκφραση εκφράζουν.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.



quarta-feira, 5 de abril de 2023

Má Influência [por Sérgio S., ex-Trezenhum Humor Sem Graça]

Quando somos crianças e adolescentes os pais sempre temem as temidas* más influências que nos cercam. Em geral, escolhe-se por má influência alguém próximo: um amigo, um vizinho, um primo, um colega - ainda que atualmente estejam ampliando esse círculo e incluindo professores, esses comunistas que querem receber salário, ao invés de trabalhar por amor -, o que me faz pensar que é muito mais a busca de um bode expiatório, de um judas para malhar, que de fato de uma má influência. 

Curiosamente, para os pais nunca a má influência é o seu próprio filho - no máximo ele está uma má influência temporária por influência de uma verdadeira má influência, cujos pais negam a condição de má influência verdadeira e vão atribuir a filho de outrem, e assim até chegar ao primeiro motor do mundo, se formos levar às últimas consequências (o que soa até razoável, se se pensar friamente).

Meus pais, claro, nunca acharam que eu fosse uma má influência. E não só eles: criança tímida, quieta, retraída, eu era tido como a boa influência por professores e pais de amigos, como se fosse positivo uma criança ser apática - e óbvio que nenhum deles desconfiava que quem dava as ideias das traquinagens inocentes feitas pelos amiguinhos e colegas, e que lhes custava sermões e castigos (e até mesmo a fama de má influências), fosse eu.

O que eu definitivamente não esperava era que depois de velho me transformaria em uma reconhecida má influência. E descubro que isso tem um agravante: com a idade que tenho, não há como atribuir apenas um estado momentâneo de má influência, cuja origem de fato seria de algum colega - até porque fazer esse tipo de ilação é de responsabilidade dos pais, e os meus já me conhecem o suficiente para não me defender em situações do tipo.

Quem me avisou desse meu novo estatuto foi Macedo, meu nobre colega, que tal qual uma criança com medo dos pais vetarem encontrar com um amiguinho tido por uma má influência, avisou que não contaria minha “aventura” para a senhora Maceda, sua companheira (sim, muitas aspas para essa aventura).

Tanto a senhora Maceda quanto Macedo, meu nobre colega, são duas pessoas muito organizadas e muito compenetradas no trabalho. Inclusive, Macedo, meu nobre colega, sempre foi visto como uma boa influência pelos chefes que já passaram pelo setor. Tentamos - eu e Meirelles, outra nobre colega cuja apresentação fica para uma outra crônica -, dissuadi-lo de todo esse rigor: explicamos que isto não é uma empresa japonesa e o método 5S estava um pouco démodé (mais, inclusive, que falar démodé); que trabalhar direito é uma coisa, mas quando se torna um golden boy para os chefes é sinal de que se está fazendo algo de muito errado. Ele se dizia tocado, mas não mudava - até apelarmos para as palavras do Capirotinho** e ele começar a entender como funciona a "desvida laboral" (ou seria antivida?).

Assumo que eu também tenho minha fama de organizado no trabalho: minha caixa de e-mail (corporativo) já arrancou suspiros de vários colegas, e meu SGBD para contatos do whatsapp chega a assustar pessoas desavisadas. Em suma: essa minha organização causa inveja (e preguiça) de meus colegas, inclusive do Macedo. E fiquei com a fama.

É quando chegou a hora de organizar minhas férias - esse momento em que, apesar de ser parte do trabalho, eu trato como se fosse pertencente a minha vida pessoal.

Estou eu cá, a uma semana de sair de férias e embarcar rumo ao exterior, quando comento com ele que preciso decidir o roteiro e comprar logo a passagem de volta, antes que aumente o valor. Ele me olha embasbacado: “você não viaja semana que vem?”. “Sim”. E explico que já tenho estresse demais no trabalho e me falta energia para arranjar esse estresse extra de planejar as férias em detalhes: sei quando saio, sei para onde vou (quer dizer, tenho algumas ideias de onde ir, talvez), preciso decidir quando volto. 

“Você vai sem planejar?”, ele quase se exaspera, larga os talheres para pegar o celular. Comento a definição do nobre colega Goreti, que achei muito oportuna: “é tudo planejado, mas com planejamento em tempo real”.

Do celular ele me mostra a tabela de férias que estão planejando (ele sai de férias quando eu voltar): uma linda planilha colorida, divididas quase que por horas, com tempos dos trajetos, pontos a serem visitados, o número das reservas dos vôos e hotéis. Agora é minha vez de me embasbacar: uma agência de viagens para classe média não tem nem 10% desse esmero - talvez uma empresa especializada em ricaços.

Se eu consigo entender o jeito dele, ele segue com dificuldades para entender o meu: “Você ao menos sabe que cidades vai visitar?”. “Planejamento em tempo real, Macedo! Nem ideia, por isso ainda não consegui decidir quando volto: se do sul eu for para o centro do país ou direto para o norte, duas semanas dão conta; se eu decidir passar por cidades das três regiões, seria bom ficar uma semana a mais”. “E as passagens?”. “Compro na hora que decidir”. “E que horas você vai decidir, se viaja semana que vem?”. “No momento oportuno”, respondo - e me foge usar o termo em grego clássico, καιρος, pra tentar dar um ar erudito (atenção, não confundam com o uso moderno do termo, com o qual a Maju despontou). Talvez esse verniz erudito tivesse feito ele repensar o que disse a seguir: “É... definitivamente é melhor eu não contar isso pra senhora Maceda”. O tom não deixou dúvidas: eu havia me transformado em uma má influência - e para além dos chefes. Ainda tentei consertar com uma tabela quase igual à deles, feito no final do horário de almoço, mas não fui convicente: sou oficialmente uma má influência, cujos companheiros e companheiras dos meus colegas fazem o lugar dos pais e me olham de soslaio, até mesmo duvidando que meu SGBD de whatsapp seja verdadeiro.



Reparem que minha tabela é muito mais colorida e bonita e prática



05 de abril de 2023


* Não estou sendo redundante, isto é influência (má, talvez) da língua de Sócrates (o filósofo, morto por ser uma má influência, ainda que o futebolista também tenha sido considerado como tal)

** Para isso usamos o Manifesto proletário.


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.