quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Bonito: gordo, forte e corado.

"Meu deus, você engordou!", falou minha amiga, tão logo me viu, e olha que eu estava de preto e havia aparado as costeletas - que me davam cara de lua-cheia ou bolacha traquinas, segundo meus pais. Não nos víamos há seis meses - eu havia engordado tanto, a ponto de ser perceptível ao primeiro olhar? A exclamação dela fez com que me lembrasse de minha avó, que não visito há um ano. Além de todo esse tempo sem vê-la, deveria me organizar para uma visita logo, aproveitar o aumento na balança para lhe dar uma alegria ainda desconhecida. É que minha avó, sempre que a visito, tenta vir com aquele papo de nona italiana: "tá bonito: gordo, forte e corado", mas nunca conseguiu usar a frase tal qual comigo: mantive o mesmo peso entre meus quinze e trinta anos, apesar de ter crescido cerca de dez centímetros nesse ínterim. Ela dava uma ajustada: "parece que você engordou um pouco desde a última vez", dizia, numa prova ou de auto-engano ou de memória traiçoeira, e no final completava: "mas o importante é ter saúde" - coisa que eu sempre tive, até entrar no mestrado. Se eu conseguir visitá-la em breve, vai poder, finalmente!, dizer que estou "bonito: gordo, forte e corado" sem, com isso, estar falando uma mentira deslavada. Bonito, bem, sejamos compreensivos, apesar de todos sabermos que é mentira, senhora dona Maria, inclusive, é das mentiras que avós adoram contar pros netos, deixemos passar (mas aceito opiniões contrárias, desde que acompanhadas de segundas intenções); de corado, às vezes ganho tons avermelhados, principalmente quando exposto ao sol (ou a situações embaraçosas com belas raparigas do sexo alheio, o que não acontece defronte minha avó, claro, e que tenho aprendido a disfarçar); quanto ao forte, ser persistente não deixa de ser uma espécie de força, e em algumas coisas sou bastante persistente - ou seja, forte. Já o gordo, ainda que meu acréscimo de vinte e cinco por cento em um ano (malditos trinta anos!) seja visível, como ficou claro na exclamação da minha amiga, gordo, gordo não sou, mas pode-se dizer que relativamente ao que sempre fui, estou gordo. Enfim: bonito, gordo, forte e corado. Reconheço que não me acostumei com minha cara bochechuda, e muito incomoda minha barriga - os dois locais onde é visível que engordei. De qualquer forma, cabe eu ir logo para Florianópolis, dar essa alegria à matriarca da família, antes que as correrias de dois mil e quinze façam eu voltar à minha velha forma.

15 de janeiro de 2015

sábado, 10 de janeiro de 2015

Nem Charlie nem extremista

Ainda que repudie o ataque ao Charlie Hebdo, não entrei nessa comoção do "je suis Chalie". Je sui Dalmorô, e tento, no meu dia-a-dia, "je ser" do lado das minorias marginalizadas - que não é o caso do referido semanário. O que eu conhecia deles até então eram as polêmicas sobre charges contra o islã, as quais sempre me pareceram de profundo mau gosto, na melhor das hipóteses - e falo isso enquanto humorista, três anos à frente do Trezenhum. Humor sem graça, radicado na Unicamp entre 2007 e 2010 e de algum relativo sucesso [http://j.mp/trezenhum]. Li algumas coisas pela internet, posições sempre difíceis de concordar, em argumentações que pretendiam impôr a tomada de um lado: não concordo nem um pouco com os assassinatos, mas não é por isso que vou defender o Charlie Hebdo. Tampouco concordo com as execuções extra-judiciais da PM do senhor Alckmin, mas não é por isso que acho que criminosos não devam ser combatidos por uma força policial organizada pelo Estado e responsabilizados pelos seus crimes, tudo conforme as leis - ainda que estas devam ser sempre postas em questão nas esferas cabíveis, como legislativos e manifestações de rua.
É de um professor de Juiz de Fora, que atende pelo nome de El Rafo Saldanha, que li, enfim!, alguém capaz de se articular para além de dicotomias, sem a necessidade do Bem estar em um dos lados, sem dar razão a qualquer dos lados. É com esse texto que dialogo aqui, ressaltando um dos aspectos que mais me chamou a atenção - se estiver em dúvida se deve seguir meu texto ou ir para o de El Rafo, não hesite, vá para o dele: http://j.mp/17uDY0z.
O ataque ao Charlie Hebdo tem sido apresentado por muitos como um ataque contra a civilização ocidental, a democracia, a liberdade de expressão, a Europa, a França. Após o texto "Je ne suis pas Charlie", tendo a concordar com essa leitura. Ela, porém, conta só metade da história. A outra metade: a civilização ocidental, a democracia, a liberdade de expressão, a Europa, a França só foram atacadas porque não seguiram as diretrizes que com tanta pompa proclamam como conseqüência da evolução da sociabilidade humana e das quais se dizem os únicos portadores e os legítimos defensores. Se a França não tivesse fracassado como Estado Democrático de Direito, como sociedade justa e tolerante, dificilmente esse ataque aconteceria.
Entidades islâmicas acreditaram no Estado francês e tentaram pôr um limite ao que viam como ofensa contra sua religião e sua cultura - isso ainda em 2006 [http://j.mp/1y1m9lc]. A tal "liberdade de expressão" ganhou. Conforme El Rafo, foi um estímulo para que o Charlie Hebdo seguisse por essa senda - para não falar dos estímulos financeiros, com crescimento das vendas acima de cem por cento. Calados os que tentaram manter as relações dentro do razoável, ficou o caminho aberto para extremistas, fustigados pela publicação, acossados pelo preconceito, tudo isso com respaldo, mesmo que indireto, do Establishment francês.
"Qual é o objetivo disso [atacar o islã]? O próprio Charb falou: 'É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo'. Ok, o catolicismo foi banalizado. Mas isso aconteceu de dentro pra fora. Não nos foi imposto externamente. Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses – famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerâmcia (ver Caso Dreyfus) – deram ganho de causa para a revista. Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã". O ataque ao Charlie Hebdo foi um ataque não contra um semanário escroto, e sim contra um sistema falido - simbolizado por um veículo avalizado pelo governo e pela justiça. As irresponsabilidades do Charlie Hebdo sempre foram pagos pela França e pelos franceses (aqui incluídos os não-gauleses, inclusive os de ascendência árabe), não foi diferente desta vez - a direita mais reacionária e xenófoba só tem que agradecer a essa revista que se diz de esquerda. (Parênteses: vejo no jornal televiso que no dia seguinte ao "ataque terrorista" ao Charlie Hebdo houve um "ataque" a uma mesquita, que não foi terrorista, talvez porque não foi executado por árabes e sim por homens de bem?).
A França, a Europa, a liberdade de expressão, a democracia, a civilização ocidental podem tirar um grande ensinamento desse episódio se, ao invés de buscar no Outro o bode expiatório para se eximir de qualquer culpa, entenderem que precisam avançar naquilo que se julgam tão avançados. Império da lei, democracia, tolerância, e outras afins são palavras vazias na boca da maioria dos políticos do ocidente, que precários de razão se aferram à fé para defender suas posições: "estamos em um país onde a liberdade de expressão é sagrada", afirmou Bernard Cazeneuve, ministro de Assuntos Europeus da França, quando na polêmica do Charlie de 2012. Extremistas ocidentais ou extremistas islâmicos, na modernidade nenhum princípio sacro deveria estimular o ódio contra o Outro - se pondo, ainda que indiretamente, contra a vida. Direito de expressão não dá o direito a ofender ninguém gratuitamente, ainda mais as minorias, "falar que 'Com uma caneta eu não degolo ninguém', como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas".
Aos dicotômicos e maniqueus pós-modernos: não sou contra a liberdade de expressão nem defendo a censura prévia, mas há limites para tal liberdade, e ressarcimentos àqueles que se sentiram ofendidos são um bom parâmetro de até aonde se pode ir - nada que impeça uma causa que realmente valha a pena de desafiar a justiça. 
Numa disputa em que os dois lados carecem de razão, me abstenho de tomar posição favorável a qualquer um.


ps: e aos que recusam a cultura árabe sem conhecê-la, um vídeo de Boualem Rahma, de música chaabi, umas das músicas tradicionais que acho das melhores (aqueles que me lêem com freqüência talvez lembrem de eu já ter citado o estilo mais de uma vez). Um pouco além na provocação, divulgo cantos religiosos. Aos que se aventurarem pelo vídeo, se estancarem no estranhamento, tenham um mínimo de vontade e notarão que se trata de um som de qualidade estética bem acima das músicas cristãs de louvor que somos obrigados a ouvir no centro de São Paulo (ô gosto terrível tem esse deus!).

ps 2: O segredo do grão, fantástico filme do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche, de 2007, é uma boa mostra de como aceitamos sem notar o discurso preconceituoso da França gaulesa. Escrevi sobre o filme em: http://j.mp/cG080914




10 de janeiro de 2015.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Marta Suplicy: o José Serra do PT

O PT fará bem se aprender com os erros do seu maior adversário político, o PSDB, e não ceder às chantagens da senadora Marta Suplicy, do PT de São Paulo. Em 2014 Marta deu mostras contundentes de que não difere muito de seu futuro colega de senado, o tucano José Serra.
Serra sempre se vangloriou de ter sido voz dissonante no partido durante os anos FHC, ao discordar da política econômica, ainda que não o fizesse com excessiva ênfase. Até a disputa da presidência, em 2002, Serra parecia um político sério, independente de se concordar ou não com suas propostas. A partir dessa data passou a ficar mais evidente que seu grande projeto político era si próprio - o Brasil é apenas um acidente. Para além do festival de se elege-renuncia, escárnio que a população paulista e paulistana aceita de bom grado, boicotou o próprio partido nas eleições de 2006 e 2008, se ressentiu pela falta de apoio à imposição de seu nome em 2010 e, pior, jogou no lixo os resquícios de esquerda do PSDB, teoricamente ainda progressista nos costumes (apesar de reiteradas práticas contrárias aos direitos humanos, como a chancela às execuções extra-judiciais dada por Alckmin aos seus subordinados), dando ao Partido da Social-Democracia Brasileira o verniz do mais tacanho reacionarismo, desse que merece o apoio sem constrangimento de Malafaias e afins. Em algum momento, após as eleições - não recordo se 2002, 2004 ou 2006 -, aventou-se a hipótese de Serra estar organizando um novo partido, de linha nacional-desenvolvimentista. Outra hora, falavam da sua saída para algum outro partido - PMDB ou PSD. Nada disso aconteceu, e ele ganhou legenda para disputar prefeitura, presidência, senado, e sabe-se lá para qual cargo em 2018: mostra de que sua chantagem funcionou. Resultado para o PSDB de ter dado guarida ao projeto de poder de Serra: não se reciclou, não criou nomes para disputas posteriores, se enfraqueceu: a derrota de Aécio pode ser posta na conta serrista, e a disputa pela prefeitura paulistana, daqui dois anos, será a primeira chance, desde Alckmin, de surgir alguém, um poste tucano, com vistas a eleições posteriores. O único nome novo que despontou desse período Serra-Alckmin foi o ministro das cidades do governo petista, Gilberto Kassab, ou seja, um nome bem errado aos interesses do partido.
A título de comparação: o PT de São Paulo, desde 1998, teve apenas os Suplicy (Marta em 1998, 2000, 2004 (reeleição), 2008, 2010; Eduardo em 2006 e 2014, ambas tentando a reeleição ao senado) e Mercadante (2002, 2006, 2010) como nomes recorrentes em eleições majoritárias - os outros foram Genoíno (2002), Haddad (2012) e Padilha (2014). Enquanto isso, o PSDB teve Covas em 1998, Alckmin (2000, 2002, 2008, 2010, 2014), Serra (2004, 2006, 2012, 2014), José Aníbal (2002) e Aloysio Nunes (2010). Se levarmos em conta que Serra disputou duas vezes a presidência e Alckmin, uma, percebe-se a situação precária dos tucanos paulistas para o futuro breve - suas maiores esperanças sustentam-se no eleitorado raivoso anti-PT, ou na troca de cargos entre Serra e Alckmin.
Marta Suplicy tem deixado explícito que seu projeto de poder é pessoal, pouco se importando com o partido - diferentemente de Lula, que impôs novatos e permitiu que o partido seguisse arejado de nomes e de idéias, como é visível no caso de Haddad. Um primeiro caso de semelhança com Serra, de que Marta não vê limites para buscar o poder, foi a insinuação sobre a sexualidade de Kassab, na disputa pela prefeitura, em 2008. Recentemente, o primeiro aviso de que o partido pouco valia foi sua carta de demissão do Ministério da Cultura, em que ela deu mais munição para a Grande Imprensa e os especuladores pressionarem por nomes do seu agrado, ao criticar o então ministro da economia - fogo amigo é ainda melhor para fustigar um governo já escaldado. O segundo ato foi seu comentário sobre seu substituto no MinC, Juca Ferreira, ou melhor, suas acusações levianas, tão ao gosto da imprensa anti-petista, de que "a população brasileira não faz ideia dos desmandos que este senhor promoveu à frente da Cultura brasileira", e que segue sem fazer idéia, depois de seu aviso que nada diz. Por ironia, todos as pessoas ligadas à cultura que tenho em meu Fakebook e que se manifestaram sobre o novo ministro saudaram a escolha - conforme Marta, esse povo saberia o que ele representa.
Pela nota sobre Ferreira, Marta parece ter percebido que, apesar da sua base de apoio na capital, não conseguiria impôr seu projeto egocêntrico. Digo isso por ela também ter criticado em sua nota Padilha, candidato petista derrotado na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes, ano passado. Uma primeira questão se põe: a força de Marta e seu grupo na cidade é realmente dela ou é do PT? Saberemos se o PT não capitular às chantagens.
Há quem veja nesse ato de Marta o "pedido" para ser expulsa do partido e assumir o papel de mártir. Motivos ela dá de sobra. Vejo também a tentativa de construir um discurso mais afinado com o consevadorismo dos bairros centrais de São Paulo, no caso de ela disputar a prefeitura por outra legenda: a defesa da estabilidade, a acusação de desmandos e a insinuação de aparelhamento do Estado compõem muito do discurso ouvido e repetido por esse estrato, sempre macetado pela Grande Imprensa corporativa. Com isso, numa candidatura por outro partido, em 2016, ela poderia disputar com o PT o voto das periferias e com o nome anti-PT o eleitor moderado dos bairros abastados. Para os primeiros, se apresentaria como petista histórica, para os segundos, ela tem até uma capa da Veja a seu favor. Falta, claro, combinar com os russos.



05 de janeiro de 2014