domingo, 6 de março de 2022

Meus refúgios quotidianos

Desde longa data busco locais de refúgio quotidiano: algum canto onde, por algum instante, o tempo caduca e o peso do mundo e a densidade da existência parecem dar uma breve trégua, um respiro. 

Na minha adolescência, em Pato Branco, achava esse refúgio em meu piano e nos Beethoven e choros mal dedilhados que eu tocava. Em Ribeirão, encontrei nos pores do sol vistos do alto, da sacada de onde morava, enquanto tomava chimarrão (hábito adquirido não fazia muito, em minha primeira viagem a Buenos Aires) e ouvia Radiohead; era também a praça Camões, nas tardes de sol dilacerante. Em Campinas meus refúgios foram uma mureta do IFCH, onde professores alunos e funcionários circulavam dando ao ambiente um ar de aquário humano; o pôr do sol no vão da Biblioteca Central; por um tempo foi o brincar com tintas, ainda que tivesse o mesmo talento que tinha para música; e, em um breve período, o fim de tarde em companhia de uma garota (a quem até hoje vejo como um marco em minha vida, quem pôs fim a quem eu havia sido até então e me empurrou para quem eu seria a partir da relação com ela). Já em São Paulo, era um lamento constante não ter encontrado esse refúgio, até que em uma das últimas conversas com minha mãe me dei conta de que eu o possuía, sim: são alguns de meus caminhares a esmo pela região central da cidade - solitário ou acompanhado.

A percepção desse refúgio em movimento em São Paulo se deu justo quando estávamos nós - eu ela meu irmão - caminhando pelo que foi nosso refúgio nesses sete meses em que voltamos a morar juntos em Pato Branco - até a partida de mãe -, a rua Salvador. 

Chegamos a ela sem querer - fica há quatro quadras de casa e creio que nunca havíamos passado por lá antes. Voltamos a ela seguidamente, sempre que mãe sentia que tinha força suficiente para subir um morro (moramos num vale, cercado por pirambeiras pra todos os lados que não em direção ao centro da urbe), sempre no fim de tarde, o sol já se pondo atrás da cidade. 

Trata-se de uma rua curta, simples, bem cuidada, estreita e plana (o que é incomum para a cidade), com casas de uma classe média conformada, sem luxo nem carências nem disputas ostentatórias, em geral com quintais muito arborizados. Começa com um terreno baldio de um lado, do qual mangueiras, bananeiras e abacateiros invadem a rua com seus galhos; e uma araucária do outro, onde agora moram as curucacas que viviam no terreno de casa, até termos que cortar nossa araucária de estimação (que corria risco de cair e não tinha como salvá-lo), em 2015, pouco antes da partida de pai. Logo a seguir, um bambuzal numa simpática (e típica) casa de madeira, com uma bomba d'água manual no quintal. Termina numa rua particular, com hortências de um lado da rua, árvores do outro, até chegar a uma casa e depois dela, a plantação de soja (isso a um quilômetro do centro da cidade). 

Talvez seja de fato uma rua simplória e sem graça, mas ao subirmos lá, com mãe encarando o cansaço da doença e do tratamento, ganhou contornos mágicos para nós. A mim, parecia saída de uma animação do Miyasaki, cujo dourado do sol se pondo carregava ainda mais essa impressão. A qualquer momento eu esperava por um dirigível ou uma bruxa a passar sobre nossas cabeças ou um totoro esperando pelo ônibus. Mas não presenciamos mais que o ordinário: plantas, flores, frutas, bambus, araucárias, aves, saguis, preás, pessoas, carros, casas, pores do sol. E desse ordinário, na companhia de minha mãe e meu irmão, tecemos nosso último refúgio comum, onde a doença dava uma trégua, a contagem regressiva do relógio parecia se interromper e discutíamos a necessidade de pedir para pegar um ramo daquele bambu amarelo e plantar no quintal da nossa casa; ou de cogitar se as curucacas voltariam para nosso terreno quando o pinheiro que tem lá crescesse mais. Um refúgio onde compartilhávamos um afeto tranquilo, suspenso das preocupações mais urgentes e aflitivas que a doença impunha, onde fazíamos planos para o futuro e combinávamos quem faria o jantar daquela noite.


01-06 de março de 2022


PS: termino de revisar esta crônica numa noite de domingo, o terceiro domingo que passo em São Paulo este ano. Diante de mais uma tarde que vai se preenchendo de ausências e vazios (como tantos inícios de noite da semana dita útil), noto outro refúgio que tinha desde que saí de casa, há vinte e dois anos, e cuja função me passara despercebida: a conversa por telefone com meus pais. Talvez eu precise achar um jeito de seguir a sugestão feita por mãe, dois dias antes de completar seu ciclo: contou que sempre que sentia necessidade, pedia "colinho" para seu pai e sua mãe. Questão é como conseguir fazer essa chamada a meus pais, encontrar seu "colinho".

PS2: pesquisei no Google Street View. As fotos são de 2011, uma rua sem graça, anódina

sábado, 5 de março de 2022

Estamos discutindo Arthur do Val e não as violências contra as pessoas vulneráveis


A polêmica envolvendo o turismo sexual de guerra do deputado estadual do Podemos, Arthur do Val, e seu colega de fascismo, Renan dos Santos, é só mais uma mostra da latrina que se tornou nossa política institucional - e que não é mais que reflexo de toda nossa sociabilidade.

Desnecessário maiores adjetivos à atitude abjeta do integrante do MBL - esse movimento tão querido da Globo, Folha, Bolsonaro, Moro, liberais da Faria Lima e outros -, mas convém salientar que é difícil fazer um ranqueamento para apontar o que de mais escroto já saiu da boca de um político (eleito, em campanha ou usando o judiciário e o MP) nestes últimos tempos, desde que a dita Grande Mídia deu palco a todo mundo que se opusesse ao PT e às pautas sociais. O pior é que seguimos discutindo o último espalhafato, ao invés de discutir suas causas, exatamente como é o desejo dessas polêmicas lançadas seguidamente: muita discussão sobre um fato isolado, deixando para o plano secundário as questões relevantes.

Arthur do Val não é primeiro cidadão ou deputado a fazer turismo sexual, nem a aproveitar da condição social de outrem para gozar com seu corpo. Não fosse o contexto de guerra aberta na Ucrânia e seria capaz de haver quem defendesse a atitude do marmanjo por estar “vingando” o turismo sexual que europeus fazem no Brasil (com estímulo dos governos militares, inclusive o atual [https://bit.ly/3MnEL7D]). Afinal, defender estupro de colega de Câmara dos Deputados ou encoxar colega na Alesp não mereceram mais que reações indignadas em redes sociais, sem efeitos práticos aos deputados que cometeram tais crimes - o que permitiu, no final, a eleição de um deles para presidente do Brasil.

O erro de cálculo do “garoto” do MBL talvez (talvez!, a ver como será sua votação em outubro) tenha sido o momento: uma guerra hiper-televisionada e dramatizada na Europa. Muitas das pessoas que hoje se mostram chocadas (tipo Sérgio Moro e seus seguidores), nunca se incomodaram com as notícias (que com muito sofrimento ganham alguma luz na imprensa tradicional) de fatos exatamente iguais ou então muito similares que acontecem na África, na Ásia, na América Latina ou no próprio leste europeu - desde o avanço do capitalismo por aquelas terras, onde antes não se tinha a liberdade de vender o corpo (ou parte dele) para não morrer de fome (o filme “Coisas belas e sujas”, do Stephen Frears, já denunciava prostituição forçada e venda de órgãos por parte de refugiados em pleno coração da Europa que se diz civilizada, a Inglaterra). E não nos esqueçamos de tudo o que é feito em nome de Jesus - enquanto a mídia corporativa mantém seu discurso islamofóbico diário.

O foco no fato isolado - um deputado estadual fazendo prospecção para turismo sexual de guerra na Europa - abafa as discussões acerca das causas tanto do comportamento machista e perverso dele quanto das condições que permitem que ele possa se aproveitar dessas pessoas. Migrantes e refugiados são sempre populações altamente vulneráveis - sem diminuir a dor dos ucranianos que hoje vivenciam isso, ouso dizer que eles estão em situação menos horrível que pessoas de outras nacionalidades, cuja cobertura e dramatização por parte da mídia é ínfima (quando existe) e violências de todo tipo são de uma banalidade como o nascer do sol.

E quais as causas (a causa, segundo boa parte da opinião mundial) da guerra que força essas pessoas a migrarem? Seriam desejos de um presidente descontrolado (como nossa grande mídia apregoa) ou uma questão estrutural, da forma como a riqueza é produzida e a renda distribuída, além de outros fatores? E como mudar isso? Trocando dirigentes e desligando a torneira de casa na hora de escovar os dentes, ou entrando com ações contundentes contra suas causas - a começar pelo direito de propriedade dos meios de produção, um direito absoluto, que autoriza o assassinato de pessoas quotidianamente (como diz o grupo Magiluth, de Recife, em seu espetáculo “Estudo nº 1: Morte e Vida”: ninguém morre de fome, se alguém morreu de fome é porque foi assassinado).

A atitude do integrante do MBL deveria ser o estopim para discussões mais amplas e aprofundadas - além de cobrança de cassação do mandato. Pelo que noto, contudo, não estamos conseguindo fugir da armadilha posta. Agimos segundo a lógica das redes sociais: elegemos um bode expiatório, discutiremos alucinados esse caso bem específico, esperando pela próxima polêmica do mesmo tom. Hoje é Arthur do Val, ontem foi Fernando Cury, anteontem, Marcos Feliciano, antes foi Jair Bolsonaro, antes ainda Gervásio Silva, e assim seguimos: mudam os nomes, seguem as atitudes. Estamos perdendo.


05 de março de 2022


PS: eu revisava este meu texto quando me repassaram o artigo do grande Jamil Chade, “Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz” [https://bit.ly/3KpscXT]. Acho que o artigo é dolorosamente preciso nisso que tento apontar aqui: Arthur do Val beira a irrelevância diante de todo o quadro. Que seja cassado, mas vamos tratar da dor das pessoas cuja miséria servem de alimento para tantos homens - na Ucrânia como no Brasil ou na África.