quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma tarde preguiçosa

A tarde é preguiçosa. Há um ar de feriado na casa, apesar de lá fora estar estipulado que é dia de trabalho, com as máquinas das construções em volta a abafar o som dos pássaros - ainda assim, há pouco escutei uma revoada de quero-queros. Com a internet fora do ar, meu irmão está a jogar computador - já foi fiscalizar se suas galinhas seguem todas no quintal: seguem. Minha mãe tira a sesta habitual - vai acordar daqui a pouco para a hora da fruta, três da tarde, tal qual meu avô fazia. Esqueceu a porta  do quarto aberta e Guile, meu gato, se abancou ao seu lado, guardando prudente distância para não acordá-la e ser posto para fora da cama. Minha outra gata, Libertad, dorme no sofá ao meu lado, na sala de visitas - que apesar do nome, poucas vezes foi utilizada para esse fim -, enquanto eu me espicho no sofá mais velho da casa, com mais de trinta anos, e o mais confortável também - e lembro ainda indignado que minha mãe deu as outras duas poltronas que compunham o jogo, assim como indignado fico quando lembro que meu pai deu o rádio três-em-um da National, de 1976, em perfeito estado. Na impossibilidade de assistir às aulas online, me deixo levar pela Isabel Allende, e seu A casa dos espíritos. A escrita doce da chilena me inspira a escrever também - ainda não cheguei na parte de decadência que se anuncia para o último terço. Diferentemente da do romance, a casa de minha mãe não fica na esquina, mas bem no meio da quadra, e nunca foi lugar para serões nem encontros sociais. O mais próximo disso deu-se por obra dos filhos, na infância, a trazer os amiguinhos (dos quais hoje não me resta nenhum), e das visitas de parentes (boa parte uma classe média a prestações e incompente que age como se fosse Esteban Trueba), também coisa de um outro tempo, de um outro mundo - vários dos quais ainda seguem vivos, infelizmente, e assombram feito almas infernais com ameaças de visitas cheias de ódios e nesciedades, que repilo com menos violência que, calado por anos, presenciei em suas palavras contra nordestinos, negros, pobres, gays, presidiários, maconheiros, políticos, comunistas, petistas (como meu pai, que preferia ficar quieto a se rebaixar a discutir com "panacas", como ele qualificava, numa sonoridade de tapa no PAnaca). Bem que Clara havia dito à Blanca que são os vivos, não os mortos, que devemos temer. Por mais que a casa tampouco tenha tido espaço para o sobrenatural, pergunto que espíritos poderiam estar a povoá-la agora. Meu pai, meu avô, os bichos de estimação que tivemos. Meu eu criança também vaga por aqui, creio. Desconfio que esteja lendo o livro por sobre meu ombro, pensando que achava mais legal quando em uma tarde assim eu passava vendo desenhos animados ou brincando lá fora: um tempo em que ao olhar pela janela eu tinha uma ampla visão do céu, entrecortada apenas por árvores, e não esse céu esquadrinhado por prédios de gosto de duvidoso e necessidade contestável - salvo a necessidade de enriquecer os ricos empreiteiros deste sertão latinazi de futuro estéril. Lembro que durante minha infância, da janela da cozinha, antes dos prédios brotarem como formigueiros, se as árvores não estivessem muito grandes, víamos o relógio da igreja matriz - assim como ouvíamos seu badalar a cada quinze minutos. Hoje não é possível vê-lo nem escutá-lo - mas se fosse possível, seria sem utilidade, já que está parado na hora errada desde que Frei Policarpo morreu.

27 de outubro de 2021


PS: Foto tirada três horas depois da crônica.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A mídia já prepara o novo round da luta contra o SUS e os serviços públicos

Desde o início dos anos 1990 há uma pesada campanha de desqualificação de tudo o que é público - dos funcionários aos serviços - e de louvor a tudo o que é privado e segue a (pretensa e extremamente ilusória) eficiência do mercado - mineração, telefonia, cadeia de gás e petróleo, educação, saúde (parênteses: trinta anos de bombardeio ideológico cerrado e não conseguimos estabelecer uma contra-narrativa eficiente; sim, há o oligopólio da mídia, que cala toda voz dissonante aos seus interesses (e isso explica porquê um certo deputado tinha espaço, dez anos atrás, para falar atrocidades e babar antipetismo), mas há também falha na estratégia de comunicação das esquerdas. fecha parênteses). 

A pandemia do coronavírus trouxe uma série de complicações a esse discurso ideológico - repetido mesmo por quem vivencia seu negar na realidade. Primeiro, salientou a importância do SUS, a qualidade de seus serviços, apesar do subfinanciamento histórico e agravado desde o golpe de 2016 (ponto nunca tratado pela mídia corporativa). O Sistema Único de Saúde está longe da excelência de um hospital de elite, mas 98% da população está igualmente longe de um hospital desse nível. Junto com o SUS, reabilitou-se em alguma medida o funcionarismo público. Isso é preparar o discurso não só contra o ultraliberalismo defendido pelos donos do dinheiro e das empresas de mídia nas discussões eleitorais de 2022, como mesmo para o PT, que teve como uma de suas marcas certa recomposição dos serviços públicos (bem problemática, mas não é meu foco aqui).

Com a CPI do Covid e as denúncias contra a Prevent Senior, uma dose a mais de reforço no discurso da saúde pública e contra a rede privada. Neste caso, sigo a linha do Luis Nassif e não entro nessa comunhão nacional que pede a fogueira para a empresa: por mais que haja indícios de desvios graves de conduta por parte do plano de saúde, ainda não há provas robustas de que houve decisão deliberada de matar pacientes (por isso a necessidade de maiores investigações antes de um veredicto e da queima da bruxa em praça pública). Ao que tudo indica, uma das principais acusações que se tem contra a empresa é de ordem moral: atuar como uma empresa privada que visa o lucro (quem esperaria isso de uma empresa capitalista, não é? O fato de ela lucrar em cima da saúde de pessoas, e não com salsichas ou comunicações, é mero detalhe insignificante ao Mercado), e ter agido de maneira idêntica ao que fizeram suas concorrentes, inclusive na prescrição de cloroquina como tratamento, no início da pandemia - agora, por que a imprensa corporativa não fala dos outros planos de saúde, Nassif traz bons argumentos, e nenhum deles é fruto de preocupação com a saúde (ao menos não a dos pacientes) [https://bit.ly/3lScomZ].

No UOL, do grupo Folha, Thiago Herdy parece tentar fazer uma moral com os patrões ao soltar a matéria "Idosos morreram mais de covid na rede pública do que na rede privada de SP" [https://bit.ly/3pfbNh2]. O colunista ainda tem o mínimo de decência jornalística (cada vez mais rara na mídia corporativa) de pôr o lado dos críticos da sua análise simplista: está no fim do longo artigo, para os poucos que chegarem até lá - e sem que merecesse rever o temerário título da reportagem. 

E porque insisto em chamar de simplista a avaliação do repórter, por mais que os dados apontem, de fato, que na rede pública de SP houve mais óbitos que na rede particular? Pelo simples motivo que, por tudo o que se sabe do novo coronavírus até agora, há uma série de agravantes na infecção devido às condições prévias de saúde das pessoas, ao passo que o título da notícia atribui a diferença de letalidade estritamente à pretensa diferença no tratamento dos pacientes infectados - ou, em outras palavras, à ineficiência do serviço público, do SUS.

Se os dados indicam que há mais mortes na rede pública, que atende preferencialmente pessoas mais pobres e moradoras das periferias da cidade, será que as condições socioeconômicas dessas pessoas não afeta no sucesso ou insucesso do tratamento? Para Herdy, não. Covid é covid, e uma pessoa chegar aos sessenta anos sem saber que era diabética (e portanto, sem cuidar) em nada influencia suas chances de sucumbir ao novo coronavírus (exemplo esse de uma pessoa que conheço, catadora de recicláveis, que felizmente sobreviveu, depois de 27 dias de internação). Um idoso branco de classe média, com plano de saúde, com amplo acesso a informação e cuidados preventivos, dinheiro para uma dieta rica e academia, teria a mesma chance de uma pessoa pobre, que mora na periferia, que muito provavelmente em algum momento da vida já passou por insegurança alimentar e que não possui uma cultura de cuidados preventivos, com exames periódicos e visitas ao médico sem ser em casos graves, quando se apelava ao pronto socorro - provavelmente habituadas que estavam a ter que chegar às três da manhã para conseguir marcar uma consulta para dali seis meses no posto de saúde do bairro.

Há quem prefira ver a manchete de Herdy para o UOL/Folha apenas como deslize, falta de cuidado, desatenção. Com o histórico da mídia corporativa e a continuação de seu padrão de desinformação - principalmente quando está em jogo mercados altamente lucrativos -, eu não consigo ver na matéria que não o preparo para uma nova bateria de ataques contra o SUS e os serviços públicos, tentar destruir a imagem legitimamente construída durante a pandemia de que é no Estado, que serve o público, e nas empresas privadas, que visam o lucro, onde está realmente a preocupação com a saúde.

18 de outubro de 2021

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Dos sonhos à instabilidade [diálogos com o teatro]

Após 20 meses de isolamento por causa da pandemia, o 28 Patas Furiosas voltou à ribalta com Da Instabilidade aos Sonhos, no CCSP - ao mesmo tempo que apresentou uma trilogia de vídeo performance pelo YouTube. Ironicamente, tive que me contentar somente com os vídeos, por não estar em São Paulo nas datas das apresentações. Não sei o quanto vídeo e presencial se complementam, mas provocado pelas vídeos-performances, comento assim mesmo.

Nos vídeos, quatro planos que correm paralelamente: do sonho da serpente, interpretado por Lenora de Barros; do reencontro dos integrantes, em julho, para uma imersão de sete dias; das apresentações dos três espetáculos e da vídeo-performance atual do grupo.

No reencontro semi-pós-pandemia (porque vale lembrar que ainda estamos em meio à pandemia, por mais que ela esteja arrefecendo), o grupo se propôs a revisitar suas obras - Lenz, um outro, de 2013; A macieira, de 2016 e A Parede, de 2019 (minha preferida). Se deu conta, contudo, de que não fazia mais sentido reapresentá-las, ainda que estreadas em momentos marcantes de um mundo em desintegração - esse que diariamente vemos se desfazer a um ritmo cada vez mais vertiginoso, sem nenhuma antevisão do futuro, e a pandemia do novo coronavírus é só um detalhe que não sabemos se de retardamento ou de aceleração para o caos. 

Se acelerou ou retardou, a pandemia parece ser o fechamento desse ciclo - não necessariamente do horror: daí a surpresa de Lenora não na incompreensão do que lhe diz a serpente de seu sonho, antes que ainda se lembrasse como se sonha. Talvez esse o segredo sabido-e-esquecido de todo sonho: sua incompreensão, seu grande significante indefinido mas não vazio, que nos permite interpretações várias e interpretação alguma - apenas a sensação por ele causada. Por isso os ditos "sonhos de consumo" que hoje nos dominam não são sonhos de verdade e sim sequestros das nossas possibilidades: de sonhar aquilo que o inconsciente quer nos dizer à revelia de nossa compreensão, das repressões sociais dos nossos medos; assim como de sonhar utopias construídas coletivamente para um porvir sem forma porém carregado de afetos.

O reencontro para uma semana de imersão do grupo mostra o retorno do que não foi: presenças pela metade, ausências pela metade: sentir o cheiro, o toque e tudo de invisível que marca um encontro, depois de mais de um ano só de convivências virtuais. Um luto incompleto de uma perda não reconhecida em toda sua extensão. O que exatamente ficou para trás?

O não ter mais lugar para o velho e a necessidade de se seguir criando - recriando. Oroboro - a cobra a morder o próprio rabo para comer a pele morta, abrir espaços em um corpo no qual não se cabe mais. “Um grupo de teatro trancado em vídeo, truncado na linguagem”. Uma vídeo performance que traz a impressão do engodo do espetáculo que Debord já denunciava em 1967: se na primeira parte tem-se a estética de um registro estilo documentário, mais espontâneo - ainda que diante de uma câmera haja um outro tipo de espontaneidade, muito diferente de quando se está longe desse olho mecânico -, no segundo os registros ganham tons de reality show, do “espontâneo milimetricamente produzido” para voyeurs ávidos por qualquer coisa que sua vida não tem - o que evidencia a pobreza do nosso quotidiano; por fim, o terceiro já soa um filme em que os atores abertamente atuam. Onde termina o espontâneo, onde começa a atuação? Em que trechos temos um registro do ensaio, em que trechos a apresentação do que fora previamente ensaiado? Há algo que não tenha sido ensaiado, há algo que tenha sido? Até onde vai a performance? 

O reencontro do grupo sinaliza a possibilidade de uma comunhão, de um rito, de uma passagem - necessidade soprada pelos silvos da serpente à Lenora. Da minha parte, sou pessimista e creio que essa possibilidade, se existe, não vai além do grupo: os espectadores, ainda que tocados, que deslocados, por mais que estejamos no meio do palco (como em A Parede), estamos de fato em outro lugar, impossibilitados de vivenciar o que se passa nos interstícios de cada corpo e cada fala dos que ali representam/performam/atuam - afinal, somos espectadores antes de mais nada. Os vídeos apontam essa distância da pseudo-proximidade do espetáculo: ao cabo, questionamos se tudo ali não foi posto para a câmera, esse Outro em eterna promessa (e frustração) de se encarnar: ensaiado, pensado, planejado por mãos demasiadas humanas que operam máquinas e mecanismos que nos fogem do controle. Observo os vídeos como certos antropólogos descrevem os ritos de culturas tradicionais nos filigranas de seus detalhes, dissecados como cadáveres - porque para a modernidade o mágico ou é um infantilismo, ou é uma ignorância ou é um logro. Serei eu pretensiosamente moderno? 

A certa altura, questiona-se se o teatro ainda é um lugar de risco. Não tenho dúvidas em afirmar que sim - por isso a perseguição às artes do corpo (e aos próprios corpos) por parte dos neofascistas. O que eu questiono é se o teatro ainda é um lugar de ritos. E é curioso que eu responda negativamente ao meu questionamento justo diante de um grupo cujas peças (e mesmo uma oficina de que uma vez participei) sempre cumpriram com a função do rito enunciada pela serpente: desacostumar o corpo do quotidiano, saborear outra linguagem, ver com outros olhos. Tenho para mim que isso é mais uma forma de estar no mundo do que um rito para atravessá-lo.

“É sempre um risco entrar nos campos do desconhecido. Mas todo rito, para sê-lo, precisa se fechar, sob o risco de perder sua força de travessia”.

Fechados em si, ritos envolvem efetivamente um risco ao sujeito que o atravessa - muito além do existencial -; enquanto o teatro, ainda que se abra para o imponderável, tem seus riscos calculados e uma linha bem delimitada que não cruza - moderno, demasiadamente moderno. “A coisa do passado está muito presente”, diz certa hora uma das atrizes: o eterno presente que o vídeo permite será fechado quando? Como? Será necessário para deter o passado presentificado destruir todos os meios de reprodução audiovisual?

Avanço em minhas incertezas: assim como mitos, ainda cabem ritos numa sociedade moderna? Ou seriam apenas ficções impotentes? Ou, pior, o arcaico tecnologicamente equipado? A tentativa de uma epifania, como no teatro de Dionísio, tem espaço no teatro contemporâneo? Ou estariam as igrejas neopentecostais, com seus pastiches performáticos, mais próximas daquilo que o público grego vivenciava ao assistir a uma tragédia? Nossa tragédia quotidiana, essa longa derrocada do país que o 28 Patas Furiosas acaba por marcar com seus espetáculos, vivemos ela em sua tragicidade, ou foi reduzida a um drama que evitamos pensá-lo em tudo o que implica, até por uma questão de sobrevivência?

Penso que a performance presencial a que não pude assistir tenha dado um fecho - tenha feito o luto da trilogia, como consta no nome. Fico pensando como terão conseguido isso, fechar esse passado ainda pulsante, num tempo de eterno presente que é o espetáculo. Penso também que outros questionamentos não terão surgidos desse fim, premências sentidas nos corpos e nas trocas, nesses vãos invisíveis que povoam os encontros entre pessoas e deixam seus rastros - inclusive no teatro, seja o teatro um lugar de rito, seja um lugar de risco. Terá daí surgido vislumbres de ações para um porvir que mude o rumo que hoje tomamos?

11 de outubro de 2021.