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segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Dos sonhos à instabilidade [diálogos com o teatro]

Após 20 meses de isolamento por causa da pandemia, o 28 Patas Furiosas voltou à ribalta com Da Instabilidade aos Sonhos, no CCSP - ao mesmo tempo que apresentou uma trilogia de vídeo performance pelo YouTube. Ironicamente, tive que me contentar somente com os vídeos, por não estar em São Paulo nas datas das apresentações. Não sei o quanto vídeo e presencial se complementam, mas provocado pelas vídeos-performances, comento assim mesmo.

Nos vídeos, quatro planos que correm paralelamente: do sonho da serpente, interpretado por Lenora de Barros; do reencontro dos integrantes, em julho, para uma imersão de sete dias; das apresentações dos três espetáculos e da vídeo-performance atual do grupo.

No reencontro semi-pós-pandemia (porque vale lembrar que ainda estamos em meio à pandemia, por mais que ela esteja arrefecendo), o grupo se propôs a revisitar suas obras - Lenz, um outro, de 2013; A macieira, de 2016 e A Parede, de 2019 (minha preferida). Se deu conta, contudo, de que não fazia mais sentido reapresentá-las, ainda que estreadas em momentos marcantes de um mundo em desintegração - esse que diariamente vemos se desfazer a um ritmo cada vez mais vertiginoso, sem nenhuma antevisão do futuro, e a pandemia do novo coronavírus é só um detalhe que não sabemos se de retardamento ou de aceleração para o caos. 

Se acelerou ou retardou, a pandemia parece ser o fechamento desse ciclo - não necessariamente do horror: daí a surpresa de Lenora não na incompreensão do que lhe diz a serpente de seu sonho, antes que ainda se lembrasse como se sonha. Talvez esse o segredo sabido-e-esquecido de todo sonho: sua incompreensão, seu grande significante indefinido mas não vazio, que nos permite interpretações várias e interpretação alguma - apenas a sensação por ele causada. Por isso os ditos "sonhos de consumo" que hoje nos dominam não são sonhos de verdade e sim sequestros das nossas possibilidades: de sonhar aquilo que o inconsciente quer nos dizer à revelia de nossa compreensão, das repressões sociais dos nossos medos; assim como de sonhar utopias construídas coletivamente para um porvir sem forma porém carregado de afetos.

O reencontro para uma semana de imersão do grupo mostra o retorno do que não foi: presenças pela metade, ausências pela metade: sentir o cheiro, o toque e tudo de invisível que marca um encontro, depois de mais de um ano só de convivências virtuais. Um luto incompleto de uma perda não reconhecida em toda sua extensão. O que exatamente ficou para trás?

O não ter mais lugar para o velho e a necessidade de se seguir criando - recriando. Oroboro - a cobra a morder o próprio rabo para comer a pele morta, abrir espaços em um corpo no qual não se cabe mais. “Um grupo de teatro trancado em vídeo, truncado na linguagem”. Uma vídeo performance que traz a impressão do engodo do espetáculo que Debord já denunciava em 1967: se na primeira parte tem-se a estética de um registro estilo documentário, mais espontâneo - ainda que diante de uma câmera haja um outro tipo de espontaneidade, muito diferente de quando se está longe desse olho mecânico -, no segundo os registros ganham tons de reality show, do “espontâneo milimetricamente produzido” para voyeurs ávidos por qualquer coisa que sua vida não tem - o que evidencia a pobreza do nosso quotidiano; por fim, o terceiro já soa um filme em que os atores abertamente atuam. Onde termina o espontâneo, onde começa a atuação? Em que trechos temos um registro do ensaio, em que trechos a apresentação do que fora previamente ensaiado? Há algo que não tenha sido ensaiado, há algo que tenha sido? Até onde vai a performance? 

O reencontro do grupo sinaliza a possibilidade de uma comunhão, de um rito, de uma passagem - necessidade soprada pelos silvos da serpente à Lenora. Da minha parte, sou pessimista e creio que essa possibilidade, se existe, não vai além do grupo: os espectadores, ainda que tocados, que deslocados, por mais que estejamos no meio do palco (como em A Parede), estamos de fato em outro lugar, impossibilitados de vivenciar o que se passa nos interstícios de cada corpo e cada fala dos que ali representam/performam/atuam - afinal, somos espectadores antes de mais nada. Os vídeos apontam essa distância da pseudo-proximidade do espetáculo: ao cabo, questionamos se tudo ali não foi posto para a câmera, esse Outro em eterna promessa (e frustração) de se encarnar: ensaiado, pensado, planejado por mãos demasiadas humanas que operam máquinas e mecanismos que nos fogem do controle. Observo os vídeos como certos antropólogos descrevem os ritos de culturas tradicionais nos filigranas de seus detalhes, dissecados como cadáveres - porque para a modernidade o mágico ou é um infantilismo, ou é uma ignorância ou é um logro. Serei eu pretensiosamente moderno? 

A certa altura, questiona-se se o teatro ainda é um lugar de risco. Não tenho dúvidas em afirmar que sim - por isso a perseguição às artes do corpo (e aos próprios corpos) por parte dos neofascistas. O que eu questiono é se o teatro ainda é um lugar de ritos. E é curioso que eu responda negativamente ao meu questionamento justo diante de um grupo cujas peças (e mesmo uma oficina de que uma vez participei) sempre cumpriram com a função do rito enunciada pela serpente: desacostumar o corpo do quotidiano, saborear outra linguagem, ver com outros olhos. Tenho para mim que isso é mais uma forma de estar no mundo do que um rito para atravessá-lo.

“É sempre um risco entrar nos campos do desconhecido. Mas todo rito, para sê-lo, precisa se fechar, sob o risco de perder sua força de travessia”.

Fechados em si, ritos envolvem efetivamente um risco ao sujeito que o atravessa - muito além do existencial -; enquanto o teatro, ainda que se abra para o imponderável, tem seus riscos calculados e uma linha bem delimitada que não cruza - moderno, demasiadamente moderno. “A coisa do passado está muito presente”, diz certa hora uma das atrizes: o eterno presente que o vídeo permite será fechado quando? Como? Será necessário para deter o passado presentificado destruir todos os meios de reprodução audiovisual?

Avanço em minhas incertezas: assim como mitos, ainda cabem ritos numa sociedade moderna? Ou seriam apenas ficções impotentes? Ou, pior, o arcaico tecnologicamente equipado? A tentativa de uma epifania, como no teatro de Dionísio, tem espaço no teatro contemporâneo? Ou estariam as igrejas neopentecostais, com seus pastiches performáticos, mais próximas daquilo que o público grego vivenciava ao assistir a uma tragédia? Nossa tragédia quotidiana, essa longa derrocada do país que o 28 Patas Furiosas acaba por marcar com seus espetáculos, vivemos ela em sua tragicidade, ou foi reduzida a um drama que evitamos pensá-lo em tudo o que implica, até por uma questão de sobrevivência?

Penso que a performance presencial a que não pude assistir tenha dado um fecho - tenha feito o luto da trilogia, como consta no nome. Fico pensando como terão conseguido isso, fechar esse passado ainda pulsante, num tempo de eterno presente que é o espetáculo. Penso também que outros questionamentos não terão surgidos desse fim, premências sentidas nos corpos e nas trocas, nesses vãos invisíveis que povoam os encontros entre pessoas e deixam seus rastros - inclusive no teatro, seja o teatro um lugar de rito, seja um lugar de risco. Terá daí surgido vislumbres de ações para um porvir que mude o rumo que hoje tomamos?

11 de outubro de 2021.

 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sobre partidas em tempos necrófilos

Para César Bento.
"A morte é um risco para quem está vivo". Por anos essa foi uma frase repetida em minha família. Por seis anos, para ser mais preciso: de setembro de 2009 a novembro de 2015, tempo em que meu pai (e, por tabela, eu, e minha mãe e meu irmão) conviveu com um câncer (e erros médicos). Era uma forma de desanuviar o ambiente sem negar a realidade. Foram seis anos com a morte fazendo voos rasantes, em que por mais que meu pai tivesse incluído a doença na sua vida e seguido a viver normalmente (a quimioterapia passou a ser parte da rotina), eu ia dormir e acordava sempre com o receio de uma notícia fatídica, que se não fosse o fim repentino, fosse seu prenúncio para breve, sem chances de reverter. O estresse em viver sob esse medo permanente é grande e desgastante.

Logo vai fazer um ano que vivemos coletivamente sob esse mesmo voo rasante da morte, potencializado pela nossa sociedade (e sociabilidade) necrosada e nossos necropolíticos, necroempresários, necromídia, necrojuízes. Bolsonaro repete a frase inicial deste texto com sentido oposto, de negar a realidade e fugir de suas responsabilidades. Os que têm os pés no chão vivemos em um medo permanente: vai de amigos, conhecidos e desconhecidos, até minha mãe, pertencente ao grupo de risco, passando por mim próprio, que sigo vivo e tendo que sair de casa todo dia para trabalhar (hoje soube de outra colega infectada, fica o medo e o desejo de uma recuperação plena). 2020 foi o primeiro ano em 21, ou seja, desde que saí da casa dos meus pais, em que não tive notícia de nenhum suicídio de alguém próximo ou companheiro/amigo de alguém próximo - não sei se isso tem algum lado positivo: foram tantas mortes que pode ser que uma delas tenha sido um suicídio disfarçado.

Curiosamente, para o covid não perdi ninguém próximo. Mas todo esse clima parece fazer as mortes mais pesadas, mais supérfluas - no sentido de que não precisavam acontecer agora. E a impossibilidade de velar torna tudo mais irreal e mais dolorido, difícil de acreditar. Em setembro, faleceu minha avó - de idosa, mesmo. Senti que ali se rompia o último elo com minha família, meus antepassados - faço questão de não ter contato com meus familiares, salvo duas exceções -, e lamentei que fazia quase dois anos que não a via - nem nunca mais a verei.

Hoje acordei com a notícia da perda do César, um grande amigo, que desde maio estava às voltas com uma meningite bacteriana. Há quatro dias fiz os votos habituais de feliz aniversário, enfatizando que tivesse antes de tudo saúde. Ainda que soubesse que estava enfermo, nunca quis acreditar que fosse algo tão grave - e ele também foi sempre discreto quanto aos detalhes do seu estado de saúde -, daí sua partida precoce ter me pego de surpresa - e qual partida não é precoce para quem fica? 

César sempre com mil histórias e uma ótima verve para contá-las (desde sempre eu insistia que ele devia escrever essas histórias e lançar um livro, já tinha até pré negociado uma editora), que iam de encontros chatos com gente famosa a rolês exóticos com pessoas que seriam famosas no futuro, causos da cena underground paulistana dos anos 1990, com pequenas infrações legais e muitas loucuras; um cara quadrado de segunda a sexta que desbundava com louvor nos finais de semana; um dos amigos que eu sempre ia pedir opinião sobre arquitetura e decoração e referências sobre São Paulo (ficou me devendo de mostrar uma pretensa plataforma abandonada na 23 de maio); que ganhou o apelido de "Bicha má da pirogada" porque nos encontros em minha casa sempre trazia uma caixa de chocolate com açúcar (sendo que eu não posso comer açúcar) e sabia polemizar como poucos (ousasse alguém criticar o excesso vegano e ele contava como ele fazia para matar um coelho, justificando que a carne ficava melhor assim que quando comprada já do bicho morto, inclusive contando do drama do Guilherme, seu companheiro de anos, quando via ele chegando com os animais); era também um talentoso cenógrafo e iluminador cênico - eu não só gostava muito dele, como o admirava. Como minha avó, fazia quase dois anos que não o via - a última vez ele fora comigo para ver um apartamento, ficou devendo conhecer minha nova casa, e dói saber que não conhecerá. Há todo um sem sentido que essa perda fez brotar em mim nesta segunda-feira.

Em setembro de 2015, pouco antes de meu pai ser internado para a cirurgia que abreviaria sua vida, tivemos que cortar o pinheiro de estimação da casa (no Google Street View ele ainda está lá, como que a negar o que veio depois). Após cortá-lo, enquanto fazia o luto (e sem imaginar o que nos esperava), minha mãe soltou a frase que me parece definidora do nosso estar no mundo, ainda mais em momentos como esse: "viver é ir morrendo aos poucos".

 25 de janeiro de 2021