quarta-feira, 29 de junho de 2016

Nós a um passo de nossa condenação [Diálogos com o teatro]

Qual a relação entre uma ditadura (dita) comunista e a nossa atual democracia (sic)? Para um respeitável cidadão de bem, sempre bem informado pelo William Bonner e o William Waack, que veste a camisa da seleção para bater panela contra o PT (tentando forjar desonestamente uma identidade com corrupção), nenhuma, é óbvio. Para este escriba, como ficou claro ao pôr a questão, a primeira relação entre ambas é o discurso farsesco que erigem sobre si. A Companhia Teatro da Dispersão, com a peça O espectador condenado à morte, de Matéi Visniec, dirigida por Thiago Ledier, me trouxe alguns elementos a mais nessa relação.
Não, o grupo não se propôs a fazer nenhuma releitura da obra do romeno à luz das sombras que tornam estes Trópicos sempre Tristes: simplesmente encenaram uma obra escrita em 1985, com uma ditadura de vinte anos como pano de fundo, e elementos do teatro do absurdo para fazer saltar o realidade tornada absurda - ou o absurdo tornado realidade. A enorme semelhança entre a peça e o cenário atual do Brasil não é obra dos atores, mas dos personagens da nossa história recente, Sérgio Moro, Gilmar Mendes, José Serra, Eduardo Cunha, Michel Temer, Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso, entre outros, cujos nomes já foram esquecidos, passados seus "fifteen minutes of shame", como certa feita cantou Marilyn Manson. No máximo, cenografia e figurino ajudam, muito sutilmente, a fazer a ligação.
O mote da peça é simples e contraditório: um crime será cometido e é preciso julgar o condenado. Não sabemos qual o crime, e isso pouco importa: estamos diante de um tribunal que precisa fazer valer a lei, ou pelo menos precisa demonstrar seu poder. Elege-se aleatoriamente um suspeito, logo acusado, portanto culpado - a retilínea lógica da justiça para ditaduras e seu asseclas. Inicia-se o julgamento com meias intenções de manter os ritos formais: o juiz proíbe que o promotor chame o suspeito-acusado-culpado de criminoso antes do veridicto. Soa justo. Ao mesmo tempo, inicia a sessão sem a presença do advogado de defesa. Deveria soar absurdo, mas se observarmos nosso entorno e não nossos pressupostos teóricos, novamente soa justo, ou melhor, soa a Justiça brasileira. Garante-se, de qualquer modo, um arremedo dos ritos formais para garantir a parecência de imparcialidade do julgamento e de presunção de inocência do réu-criminoso. Sabemos todos qual o objetivo (repare o substantivo no singular) do juiz, do promotor, e não muito depois, do defensor, apenas ficamos aguardando quando será dado o veridicto e a sentença - anunciados desde o início da peça.
Foto: Patrícia Mattos
São chamadas as testemunhas, para que os ritos sejam seguidos. São nove no total, mas já na segunda a fantasia de todos cai: promotor, escrivão, juiz, defensor, testemunhas - da justiça toda, marcada pelo rasgar literal do fardão do juiz -, todos vociferam contra o criminoso - cuja culpabilidade está gravada na testa, segundo o defensor -, desejando não apenas sua condenação, mas seu aniquilamento - muito afim à lógica totalitária que acalenta de stalinistas a fascistas, incluída nossa Grande Imprensa e seu rebanho paneleiro. O promotor reclama: todos acreditam que o espectador é o culpado, por que só o próprio que não?, enquanto o defensor roga ao criminoso, num cinismo digno de FHC, que confesse tudo em público e que com isso alivie o peso de sua consciência e satisfaça a justiça e a sociedade: todos sabem que é um criminoso, por que não confessar? Trinta anos antes da peça ser escrita, essa confissão seria chamada de "auto-crítica", trinta depois, de "delação premiada", o mecanismo por trás, contudo, segue o mesmo - e nada tem de democrático ou justo.
Breve intervalo entre o primeiro e o segundo ato. Nele, o escrivão convida o público a bisbilhotar toda a vida pregressa do espectador condenado à morte, coletada minuciosamente pela justiça (não havia conversas privadas, ao menos), e conclama que os demais espectadores saiam do anonimato, que legitimem o criminoso enquanto tal - e a encenação burlesca enquanto justiça. No segundo ato, já sem qualquer intenção de seriedade, tentativas das diversas personagens em justificar a ordem totalitária de adesão ao poder - que chega ao paroxismo de pôr em risco o próprio poder, se não devidamente resguardado por forças repressivas contra fiéis mais realistas que o rei.
Feliz na escolha do texto para o momento que vivemos e vivenciamos, com atuações e montagens convincentes - o que eu não sei dizer exatamente o que isso significa, numa peça que tem a burla como centro -, o ponto fraco ficou, na minha opinião, na construção do personagem do juiz.
Pelo programa ficamos sabemos que a peça foi escrita nos anos oitenta, no contexto da ditadura romena; a ambientação - sem o cuidado (e a necessidade) de parecer realista - remete aos anos sessenta e setenta do século XX, quando vivíamos, nós também, nossa (até agora) mais funesta ditadura; e o texto parece ter sido escrito no Brasil de 2015, 2016. Entretanto, o juiz acaba por fazer com que o petardo contra a situação político-institucional atual perca um pouco da sua força: franzino e desde o início decadente, em nenhum momento ele tem a arrogância que os juízes brasileiros se dão (profissionais do direito em geral, com excrescências excelências, meritíssimos de merda e doutores em porra em nenhuma, com o perdão do jargão chulo), na expectativa de que a distância de títulos seja sinônimo de respeitabilidade de um judiciário que se sabe caquético, e cuja atitude é louvada pela Grande Imprensa. Se se vislumbra a figura de um Coronel Mendes no juiz, se dá antes pelo ar de bufo (mais que bufão) que o ministro do STF naturalmente possui; falta, pelo menos no início, quando a peça ainda parece séria, a arrogância vestida de camicie nere (camisa negra) de um justiceiro Moro.
Ainda assim O espectador condenado à morte deixa no colo do público o aviso de uma bomba prestes a explodir: evidencia o conforto da proteção que o anonimato de massa nos oferece, e o inconformismo light que estamos dispostos a ter, via curtidas em redes sociais, para não perder esse conforto; nos coloca em xeque quanto à nossa passividade diante de arbitrariedades da justiça, que afronta direitos individuais básicos; deixa explícito que podemos ser o próximo a merecer o aniquilamento, considerados criminosos por capricho de uma corporação de mídia totalitária ou de juiz de província qualquer e por necessidade de sangue do poder e das massas manipuladas - criminosos por termos sentado num lugar infeliz, em que sequer a visão era privilegiada. Em um Estado que é democrático e de direito apenas enquanto farsa, estamos todos a um passo de sermos condenados à morte, morte simbólica ou via auto de resistência. Ou, se o suspeito-acusado-condenado não puder ser executado por qualquer motivo - como sua reputação internacional, por exemplo -, o juiz da peça deixa claro o que se pode fazer:
"Mas se não podemos matá-lo, podemos julgá-lo até a sua morte".
O espectador condenado à morte é espetáculo obrigatório para 2016 - antes que sejamos condenados à morte.

29 de junho de 2016.

PS1: O espectador condenado à morte estará em cartaz em julho e agosto, no Viga Espaço Cênico, em São Paulo, quartas e quintas, às 21h.
PS2: Involuntariamente, muito feliz também o local de estréia: a Funarte ocupada, com um #ForaTemer sobre o "ordem e progresso" golpista no folder.
PS3: Advogo a tese de que Temer é só o bobo da corte que encabeçou um golpe de Estado dado por ditadores pós-modernos, sem um rosto específico, ou com vários rostos, a mudar conforme o ano e a ocasião, mas com uma função bem específica na engrenagem estatal, livre de qualquer controle público e, mais ainda, distante do povo. Uma ditadura dessa casta que desde sempre é uma das principais donas do poder nestas terras, uma ditadura judiciária - por ora mancomunada com o PSDB, enquanto este atender a seus interesses principais.


quinta-feira, 23 de junho de 2016

Percursos transitórios, tempos percorridos [Diálogos com a dança] [saudades feitas de afetos]

"Que demora pra começar", reclama a mulher atrás de mim, que demora para perceber que o espetáculo Percursos Transitórios, com Zélia Monteiro, já havia começado. Talvez a espectadora não fosse acostumada à dança contemporânea; contudo, antes disso, penso que todos nós andamos com dificuldades para perceber o começo e o fim dos eventos, quando eles não se dão por alguma convenção bem arraigada ou por alguma descarga espetacular de choque. Isso implica em muitas vezes não percebermos sequer o evento. Temos pressa - para tudo. E parafraseando Caiero: o mundo não se fez para apressarmos nele (apressar é estar doente dos olhos). O fruir da arte, muitas vezes, exige o abandono dessa pressa - para que possamos nos irmanar do seu fluir. Percursos transitórios tem seu tempo, feito de sutilezas e paciências. É um tempo estranho, que não é lento, mas é vagaroso. Seu discurso também é tecido vagarosamente, por trás do tule transparente que torna a luz e seus movimentos visíveis - às vezes mais que a própria artista. Melhor: luz que permite que o espetáculo seja visto e que algumas vezes toma toda a visibilidade da cena, impedindo que se veja qualquer coisa além da própria luz: a mesma fonte que revela, re-vela. 
No fluir e no meu fruir da apresentação, havia já desistido de tentar estabelecer qualquer diálogo mais racional com a obra, quando ela transitou para outro registro, numa simples mudança de luz. Notei então que, a exemplo da minha colega de platéia, eu tinha pressa - "que demora para eu entender", eu poderia ter reclamado. Por sorte, há muito sei que uma obra, um espetáculo pode ser aproveitado mesmo que não se compreenda - ainda que isso possa implicar num empobrecimento com aquilo que tal obra carrega (minha relação com a música de concerto vai nessa linha). Nessa variância da luz, o corpo de Zélia ganhou outra textura, rugosidades da pele despontaram, contornos dos músculos se destacaram, tornaram visíveis os efeitos dos anos - e dos treinos. É então que noto o quanto o percurso ali apresentado fala não só de um trajeto como também do tempo, essa coisa que não cabe nos relógios e nos calendários, que corpos denunciam, mas não contam tudo. Na sala está uma professora da PUC - eu fazia uma disciplina dela como ouvinte, ano passado, quando tive que largar as aulas. Isso faz mais seis meses, e eu juro que foi semana passada. Me dou conta que os amigos de quem sinto falta de notícias estão há seis meses eles também esperando resposta às últimas mensagens que me enviaram. Está na sala também minha professora de dança - faz dois anos e meio que tenho aulas com ela, e não seis meses, como sinto. Faz sete meses que não sei mais para quem escrevo - desde que perdi meu pai. Por um ano e meio escrevi à espera de uma resposta impossível da minha melhor amiga. Isso é muito ou pouco tempo? Eu deveria dizer que muito, afinal, é o que aponta o calendário, é o que cobra a sociedade. Não é, entretanto, como sinto - apesar das recriminações que já sofri por ser tão lento e paquidérmico. No palco, Zélia segue na apresentação de seu percurso transitório, provisório, fugaz - feito de referências muitas em muitos anos como artista -, que ocupa dilatados cinqüenta minutos que passam rápidos em meio a gestos lentos. Fico a me perguntar como Zélia não sente o tempo de cada um desses trajetos - o da sua vida, o dessa obra, o dessa apresentação -, qual deles terá durado mais?

23 de junho de 2016

terça-feira, 21 de junho de 2016

O Calibre - Paralamas do Sucesso [Vídeo]

Leio na internet notícias da nossa civilização que muito avançará se um dia chegar à fineza de um Hamurabi [http://nao.usem.xyz/883c]. Penso em escrever algo sobre. Me questiono: para quê? Quem aplaude execução não vai ler um texto meu e, caso leia, não conseguirá compreendê-lo (espero que não consiga, ou a situação é mais grave ainda). Admito: em parte eles têm razão, não houve excesso ou abuso da polícia militar, uma vez que nestes Tristes Trópicos, cada vez mais, a lei é letra morta diante da palavra do chefe, e o Slobodan Milošević bandeirante (que emplacou seu Karadžić no governo golpista de Temer, por sinal) já anunciou que a polícia do estado, transformada em milícia partidária, está autorizada a execuções sumárias de todo suspeito que reagir (por reação, entenda qualquer coisa, de levantar os braços a sacar um celular. Em geral quem reage é preto pobre e periférico, mas acontece de às vezes ser publicitário branco, mas tudo bem, são efeitos colaterais da ordem e do progresso).
Enfim, ao invés de escrever clichês, preferi fazer um vídeo clichê em "homenagem" à nossa polícia militar, que tantos assassinatos comete em nosso nome.



quarta-feira, 15 de junho de 2016

Do outro lado do mar, as sobras da Europa [Diálogos com o cinema]

Atenção: conto trechos do filme, inclusive do final
Em minha última crônica [http://bit.ly/cG16608], comento do meu assombro diante da velocidade que a história parece tomar: em um ano e meio uma peça que usava Federico Gacria Lorca para falar de nosso passado-ainda-presente de ditadura e torturas passa a falar de nosso presente-possível-futuro (também assusta nosso futuro repetir o passado). Além-mar, em Do outro lado do mar, do diretor suíço Pierre Maillard, consegue a proeza de se tornar velho entre ser concebido e ser lançado, em 2015. Causa estranhamento que o filme, ao mesmo tempo que aborda a questão mais premente na Europa - a crise humanitária dos refugiados -, tenha uma abordagem defasada, porque foi claramente concebido num contexto pré-2014: ao invés de desesperados fugindo da morte, desiludidos em busca de esperança. Não apenas isso: um padre desiludido com o que presencia fala em abandonar a igreja para se tornar marxista - agora que temos um papa mais radical e atuante que boa parte das esquerdas marxistas do mundo (a brasileira, desde sempre muito ocupadas em produzir apresentações e "papérs" para seminários e congressos marxistas em que se critica tudo o que é feito e propõe soluções teoricamente perfeitas e fenomenais). Ao mesmo tempo Do outro lado do mar é revelador: a crise que hoje presenciamos é apenas uma versão majorada de algo que está latente no próprio continente: as sobras da dita civilização-ocidental-cristã de matriz européia e seu meio milênio de hegemonia avassaladora.
O filme trata de um ex-fotógrafo de guerra italiano que, traumatizado com o horror que presencia e expõe, passa a fotografar apenas árvores. Decide ir para a Albânia, onde anos antes fez seu último trabalho de guerra - a guerra do Kosovo -, fotografar árvores. Se mete numa pequena cidade perdida, onde quase ninguém fala outro idioma que albanês, do outro lado das montanhas onde presenciou seu horror definitivo, o estupro e enforcamento por militares de uma mulher, queimada a seguir. Sem querer, se vê no meio de uma disputa entre famílias, correndo risco de ser morto.
A Albânia fica nos Bálcãs, fica, portanto, na Europa. Uma Europa que as línguas nobres da civilização escondem, mas que ressurge de tempos em tempos para lembrar que a Europa não é só Paris Londres Roma Berlim, Louvre British Museum Vaticano Pergamon, a concentração de belezas saqueadas de todo o globo: parte do que a Europa civilizada roubou veio da própria Europa - e não falo apenas de obras de arte, mas de riquezas várias, dentre elas a do futuro para novas gerações. Desde a guerra na Bósnia muito se tem alertado que os Bálcãs são a verdadeira Europa, o verdadeiro destino europeu. O caso específico da Albânia: trata-se de país outrora comunista, que na sua transição para o capitalismo foi enviado ao inferno pelo receituário neoliberal do FMI e Banco Mundial e, não saindo da pobreza, sofreu uma rebelião popular com milhares de mortes, depois de parte da população perder o pouco que tinha, devido à bancarrota (óbvia) de uma pirâmide financeira respaldada pelo Estado; não sendo suficiente ser um dos países mais pobres da Europa, recebeu enorme fluxo de refugiados da guerra do Kosovo.
Antes de falar em África ou Síria, o filme mostra que as sobras da Europa estão na própria Europa - são a própria Europa.
A honra da família patriarcal acima de tudo, inclusive da vida. A independência feminina que consiste em fugir dos homens da própria família. Brigas de família que remontam ao terror totalitário comunista e são resolvidas com sangue. Em parte lembra o sertão brasileiro retratado por Abril Despedaçado, mas estamos na civilizada Europa, fonte de luzes para todo o mundo - dizem.
Entretanto, as sobras da Europa estão também no seu centro: é emblemático o fotógrafo que não consegue dormir sem ser despertado no meio de seu sono pelo sonho com a mulher que viu morrer. Ainda que ele possa se dedicar a fotografar pacíficas árvores, está na sua memória, na sua consciência. É essa Europa que no filme já sofria com o desejo de esperança de refugiados africanos, afegãos e das partes preteridas da Europa - e que hoje se diz atacada por aqueles que sempre subjugou.
Regressar à Albânia não é apenas voltar para onde ele se esgotou, é encarar a Europa feita país, uma Europa incompleta, um continente que se pretendeu universal e que hoje está à beira do abismo. A fotografia do filme (que me remeteu muito à série "Escultura do inconsciente", do fotógrafo nipo-brasileiro Tatewaki Nio) revela muito desse desalento, desse futuro que virou passado sem se concretizar em nenhum presente. São planos gerais, ora sob névoa, ora diante de ruínas - de minas, de igrejas, de casas, de civilização -, ora diante de obras inacabadas: soou emblemático para mim uma ponte abandonada no meio do caminho, sob a qual navega um barco a remo cheio de cabras, guiado por uma senhora: ao espoliar o mundo todo para sua glória, a Europa não foi capaz de concluir as pontes para o futuro radioso que ela prometia (e nem entro no mérito sobre aonde essas pontes eurocêntricas levariam, talvez na Europa elas levassem mesmo para um bom caminho).
Tráfico de armas, tráfico de pessoas, tráfico de madeira, com conseqüente destruição acelerada do meio-ambiente; submissão feminina, briga entre famílias por questão de honra, assassinatos; ausência do Estado: sejamos bem vindos à Europa-sobra da civilização européia. Do outro lado do mar mostra à Europa dita civilizada sua própria incompetência, seu fracassado em sua própria terra, que ela por tanto tempo tão bem ocultou. Entretanto, o próprio diretor se mostra reticente em assumir o fracasso completo que é a Europa, e propõe a reconciliação - com o público, ao menos -, ao apresentar a fuga de refugiados feridos e sem dinheiro da polícia como a alegria de um novo porvir. Não posso falar pelos refugiados, mas imagino que a alegria de alguém que vislumbra poder ter esperança seja coisa muito pouca para nós que comodamente assistimos a um filme numa confortável sala de cinema - e sei que o porvir que os espera não é nada radiante. Os bárbaros que hoje a "invadem" em busca de esperança são os sub-produtos da civilização que os europeus tanto se orgulham, sem nunca assumir os ônus. Fora do cinema, ainda não há reconciliação em vista.

15 de junho de 2016



quarta-feira, 8 de junho de 2016

Mariana Pineda deveria Temer o futuro? [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

Me assusto com a velocidade com que o tempo passa ultimamente - não digo do tempo das horas, mas o tempo da história. Um ano e meio atrás, em novembro de 2014, eu escrevia sobre a peça Cantata para um bastidor de utopias, da Cia do Tijolo, como sendo uma peça sobre nosso passado - cujas marcas em nossa sociedade ainda são presentes [http://bit.ly/cG14119]. Decido ouvir as músicas do espetáculo, que em 2015 teve o lançamento de livro e cedê, quando em cartaz no TUSP - faço isso às vezes, mas em geral me centro na segunda e na última faixa, "Dia triste em Granada" e "Ainda cabe sonhar", respectivamente. Desta feita deixo o disco avançar. As músicas da peça transcorrem na Espanha que poderia ser o Brasil pós-64 - nada de novo. No terceiro ato, na cena entre o investigador-juiz Pedrosa e a conspiradora pela república, Mariana Pineda, começo a notar que a peça, de 2013, hoje fala mais do presente que do passado:
"PEDROSA - Mariana! [pausa. Corta mais um fio] Uma bela mulher como a senhora não sente medo de viver só?
MARIANA - Medo? Nenhum, senhor Pedrosa!
PEDROSA - Há tantos liberais e tantos anarquistas em Granada, que o povo não vive seguro. A senhora sabe!
MARIANA - Senhor Pedrosa! Sou uma mulher de meu lar e nada mais!
PEDROSA - E eu sou o juiz. É por isso que me preocupo com estas questões. Desculpai, Mariana, porém já faz três meses que ando louco sem poder capturar um dos cabeças..."

Pedrosa, o juiz, à caça de um dos cabeças dos que conspiram contra o rei e querem implementar a república na Espanha (apenas pra lembrar, do latim: res=coisa publica=do povo). Mantenho a rubrica de "corta mais um fio": nessa hora, fios cruzam todo o palco, num emaranhado que remete a ruas, mas também a relações. Leio agora, três anos depois da estréia, o golpe de Estado dado no Brasil e uma ditadura se desenhando num horizonte próximo: remetem também aos direitos: um fio a menos, um direito a menos, uma chance a menos de escapar disso que se auto-denomina justiça. Os fios que limitam nossos movimentos em sociedade, acabam por ser também os fios que nos protegem dessa mesma sociedade. Mariana deve temer viver só não apenas por causa de liberais e anarquistas, como também por dever temer o Estado, o rei, o juiz.
Presa, Mariana é condenada à morte, mas pode se safar, se colaborar com a justiça:
"PEDROSA - Senhora, já é hora. Sabe qual é a sentença?
MARIANA - Sim, sei, mas imagino ser mentira. Tenho o pescoço curto para ser justiçada. E para que eu morra toda Granada teria de morrer?
PEDROSA - Eu não quero que morras, mas com a minha assinatura posso apagar o lume de seus olhos. Com uma penada e um pouco de tinta, fazer que adormeça um longo sono. Fale logo, que o rei daria indulto. Quais são, diga seus nomes. Vamos, fale! Com a justiça não se joga assim.
MARIANA - Não falarei. Quem é que manda dentro da Espanha vilanias destas? Que crime cometi? Por que me matam? Nessa bandeira de liberdade bordei o amor maior da minha vida e hei de permanecer aqui trancada? Hei de morrer?
PEDROSA - Mariana, pela força há de dizer, os ferros doem muito e uma mulher é sempre uma mulher.
MARIANA - Não falarei, já estou morta. Que sono mais longo sem sonhos nem sombras. Pedro, eu desejo morrer pelo que tu não morres, morrer pelo puro ideal que iluminou teus olhos, a liberdade.
PEDROSA - Queres morrer!
MARIANA - Não falarei, não quero que meus filhos me desprezem! Eu quero que meus filhos tenham um nome claro como a lua cheia! Eu quero que meus filhos tenham um respledor no rosto que nem anos nem rosto poderão apagar. E se eu delatasse, pelas ruas de Granada, este meu nome seria dito com temor."

Os tempos são outros, é certo. Não vivemos mais uma época de heroísmos ou idealismos: os perseguidos pela nossa ditadura-em-construção-via-judiciário não são presos por lutarem por nobres ideais - talvez o líder tenha alguns ideais a mais, certa vaga e tímida noção de coisa pública para todos, e é por isso que têm tanta gana e tanta dificuldade para agarrá-lo -, e antes da forca, preferem, sim, delatar (e eu, homem do século XXI, não os critico por isso). Forca, aqui, apenas como força de expressão: no século XXI não cabe bem a quem usa toga sair matando a torto e a direito (para isso existe polícia militar ou grupos de extermínio). E essa talvez seja uma diferença importante nas formas de torturas praticadas por forças do estado: quando a vida está em jogo, o jogo dura pouco: Mariana Pineda delata ou morre. Vladimir Herzog delata ou morre. Às vezes o torturador falha: Dilma não delatou e não morreu - pelo contrário, virou a algoz de seus próprios carrascos, impotentes diante do "sexo frágil" fragilizado e exposto que eles não conseguiram vergar (o voto de impeachment de Bolsomico foi mostra desse ressentimento dos sádicos impotentes). Nas delações atuais, ninguém teve a vida (biológica) ameaçada, ninguém foi posto sob a aporia "delate ou morra".
No século XX, os ferros contra o corpo são importantes: eles marcam a vida da vítima até a morte, que pode ser logo, se preciso for. No século XXI, os ferros estão presentes, mas ficam à distância, restringem a liberdade sem tocar a vítima: o corpo se mantém são, mas confinado: o preso é culpado por ser suspeito - nada de novo diante dos regimes totalitários do século passado. As delações premiadas que o senhor Moro consegue colher acontecem na mais estrita liberdade, em tudo o que há de ambíguo na palavra "estrita". O corpo, esse não sofre de fora: Odebrecht, Machado, Cerveró, ninguém levou um soco, um choque, nada: seus corpos seguem inviolados: no século XXI descobriu-se ser mais efetivo violar a humanidade (claro, isso não vale para quem já tem sua humanidade violada desde o nascimento, essas "quase-pessoas" que o Estado considera sem valor e sem direitos, torturados e assassinados pela Polícia Militar por serem sobras humanas, numa reedição pós-moderna dos infiéis da idade Média e Moderna, a se crer no beneplácito que o papa-óstia-mor de São Paulo dá às execuções extra-judiciais praticadas pelos seus subordinados). Violar a reputação, violar os direitos, violar a humanidade - não o corpo, marca visível do Antigo Regime e dos regimes totalitários e ditatorias do século XX. Se este sucumbe, é por fraqueza do suspeito-por-conseqüência-culpado, não por ação dos carrascos - minha mãe me lembrou, quando ficou escancarada a esbórnia judiciária em cima da Constituição federal, com a divulgação de áudios ilegais da presidenta da república (de bananas), que Dilma e Lula padeceram de câncer recentemente, e situações de estresse podem desencadear o retorno (agressivo) da doença. Por ora, essa tática ainda não surtiu o efeito desejado pelos manifestantes da camisa canarinho.
Outra marca de pós-modernidade no nosso golpe atual, que torna uma fala de Pedrosa démodé: quem é o rei que nos rege, ou que esta esperando ser içado ao trono? Quem é o rei que dará o indulto aos delatores? Temos os juízes do rei, Coronel Mendes e justiceiro Moro à frente, mas a serviço de quem eles agem? Das leis - e, conseqüentemente do povo, da democracia, do Estado de Direito -, é pornograficamente explícito que não se trata. Do presidente golpista, o pusilânime Micher Temer (por sinal, sua pusilanimidade é um prato cheio à extrema-direita golpista), ou dos social-democratas-defensores-do-golpe, tampouco. Os irmãos Marinho e a rede Globo, apesar de posarem de majestade, não têm cabeça para sustentar a coroa. Estaria no estrangeiro? Não creio - não apenas no estrangeiro. E ainda que se ache um grupo a quem toda esta nossa farsa seja encenada, não há um rei, não há o rei. No lugar do rei, entidades, forças sempre faladas (e efetivas), mas ocultadas na sua concretude nas palavras dos ideólogos desses mesmos ídolos, como bem definiu o teólogo Jung Mo Sung: os mercados, os investidores (sic), os empresários (rubrica na qual são incluídos rentistas e especuladores).
Ao cabo, fica difícil não atribuir a realeza ao monsenhor Capital - já desvendado em sua teologias desde Marx. Atribuir ao capital (nacional e internacional, financeiro e "produtivo") o atual golpe e ditadura-em-construção é simplista, admito, e pouco explica. Contudo, enxergar a situação atual - em que o golpe não possui (ao que se percebe) uma coordenação centralizada - como uma confluência de interesses determinados em última instância pelo capital (que não é só riqueza, é também - e principalmente - poder), ajuda a entender quem tem e terá direito ao indulto do rei (ou seria de deus?), quem não - é por isso, por exemplo, que Temer pode ser presidente (golpista) da República Bananeira do Brasil. E quem acha que querer discutir o capitalismo e suas "externalidades" em pleno século XXI é ter parado no tempo, bem vindo ao século XIX: convém rever a foto do gabinete do presidente golpista - homens brancos heterossexuais ricos escravocratas fazendo uso do Estado para interesses oligárquicos e particulares - e, mais, ler algumas das propostas futuristas desses aliados sobre papel da mulher (incluído aí direito ao corpo e a questão do aborto), trabalho escravo, educação, saúde, pena de morte...
Mas não falemos em crise, que só o trabalho liberta.


08 de junho de 2016

Democracia e representatividade do Brasil no século XIX, versão século XXI

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Setes mergulhos [diálogos com a dança]

Acostumado a ver os intérpretes se porem à prova no meio da rua ou com o público no palco, Abissal, vai na direção oposta das últimas obras da iN SaiO Cia. de Arte, de Claudia Palma. Desta feita os artistas não estão na rua, em campo aberto para descobrir até onde vai a arte; tampouco o público não está junto, imiscuído aos artistas, mas é posto muito próximo do que foi delimitado como palco - e os artistas, quando não no palco, se tornam eles também público (visível para o grande público). "Delimitado como palco" porque, apresentado no Espaço Missão, do Centro Cultural São Paulo, o grupo teve liberdade para decidir por onde seus intérpretes circulariam. A escolha do Espaço Missão foi interessante, por ser um ambiente imerso, que deixa explícito o tempo todo que estamos abaixo do chão - e estamos todos, artistas e público, no mesmo nível. Sensação geográfica que coaduna com proposta de Abissal: o mergulho de cada intérprete-criador em suas paisagens internas. E esse mergulho está realmente presente, tão presente que, admito, vi não um, mas sete abismos próprios: talvez eu não tenha sido capaz de perceber o fio que percorre todos os artistas e dá alguma unidade a suas danças: com cada um mergulhado em seu abismo não consegui ver o estabelecimento de interação ou diálogo entre eles - realçado pela falta de contato físico. Danças individuais, duos de isolados. O abismo-palco todo iluminado do início ao fim não consegue tornar os intérpretes habitantes de um mesmo momento, apenas corpos ocupantes de um mesmo espaço, e tampouco dá impressão de distanciamento entre eles. É apenas um palco iluminado, que causa um estranhamento e uma expectativa ao se chegar: que abismo é esse, feito de claridade? Ainda mais que chão e a parede de fundo são claros - um prato cheio para se trabalhar com sombras. E foi pelas sombras que criei enorme expectativa - frustrada, o que influenciou na minha percepção geral da obra, admito. Aparecem poucas vezes, sem dar a impressão de terem sido pensadas, nem mesmo notadas positivamente: notei possibilidade de algo a la De Chirico nas sombras do chão, ou da multiplicação dos intérpretes em sombras-fantasmas na parede do fundo; mas foram espasmos de possibilidades. A nudez do espaço aumenta a responsabilidade dos intérpretes e seus abismos, único foco de atenção, passado o momento inicial de aclimação ao abismo-palco. Não decepcionam, tampouco arrebatam. Mergulham, mas não (me) abismam.

03 de junho de 2016


PS: não tem qualquer relação com a dança ou com a companhia, mas como cito o CCSP, apenas reitero meu desacordo com o processo de higienização social (a la Sesc) empreendido pelo Centro Cultural São Paulo durante a gestão Haddad [http://bit.ly/cG140528].

PS2: trocando impressões com uma das artistas do grupo - a partir deste texto, e além -, descobri que entendi errado o folder (e, creio eu, que nem tanto a apresentação): o que assisti foi a uma abertura de processo e não ao espetáculo dado por concluído - daí, creio eu, algumas das lacunas que levantei.