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sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Uma passagem segura e rápida

Aproveito que atravessei o Anhangabaú para comprar um salgado para ir até o Sesc 24 de maio, acessar a internet (não tenho pacote de internet no celular e não há wi-fi onde trabalho) e comprar ingresso para o concerto da noite da Osesp - não, o programa não parece tão interessante, mas sinto que preciso sair de casa e tentar retomar o que me fazia bem antigamente (bem dizer num outro mundo, antes não só da pandemia como do golpe), e concertos sinfônicos eram das atividades que geravam em mim o que Helmut Rosa chama de “ressonância”.

Chegando no Sesc, encostado a um pilar da entrada, um homem está estranhamente curvado. O homem é negro e, no que posso notar, não está bem vestido e tem ao menos dois de seus dedos com tinta branca. Ao reparar com mais atenção vejo que está mexendo no celular: assim como eu estava prestes a fazer, ele se utilizava da internet livre do local. Dentro do Sesc, pouquíssimas pessoas, sete ou oito, e muitos bancos vazios - mas para uma pessoa negra e pobre, o prédio estava lotado ou então fechado. 

À noite, pego o metrô, desço na Estação República e opto por experimentar a passagem que vai da estação até o estacionamento da Sala São Paulo e da Estação Pinacoteca. Sem dúvida, essa passagem torna o trajeto bem mais rápido, além de proteger eventual chuva na maior parte. Não dá para dizer que não esteja bonita a cenografia dessa passagem, ainda que lembre cena distópica de qualquer videoclipe do Radiohead. No alarms and no surprises, please. Em dada altura, há bancos junto à parede de pedras que faz a contenção do terreno, com vista para os trens que passam resfolegando seus gemidos metálicos, como um trabalhador em fim de expediente. Eu só consigo pensar que do outro lado desse muro há a rua, com pobres, putas, desvalidos, trabalhadores com pouca qualificação; rente ao muro deve haver (se o governo não fez uma faxina social recente) pessoas encostadas com seus cobertores cinzas e seus poucos pertences, pessoas que hoje passam fome, e amanhã, segundo a previsão do tempo, estarão passando frio também. Por seis anos passei frequentemente por ali (pouco menos de uma vez por mês, creio), voltando da Sala São Paulo: dava um pouco de receio, em especial pela rua ser mal iluminada e em alguns trechos pouco movimentada, mas nunca vi nem sofri nada.

Ao chegar no estacionamento, um letreiro luminoso avisa: “Agora você pode acessar nossos equipamentos culturais por meio de uma passagem segura e rápida que nos conecta à Estação da Luz”. 

Entendo que muitas vezes a arte tenha o poder de nos alienar de nosso dia a dia, e acho isso mesmo saudável, pode ser de grande ajuda para depois darmos conta de encarar a realidade com um pouco mais de força e disposição, sem mergulhar na mediocridade claustrofóbica e depressiva da “utopia do possível” que tentam nos impôr - eu mesmo, ali, na Sala São Paulo, buscava (em vão), por duas horas, esquecer das muitas questões que me afligem.

O que me deixou incomodado é essa alienação se manter para depois do espetáculo, do concerto: foi o letreiro do governo a ostentar orgulhosamente a falência da nossa sociedade e chamar de segurança o que é tão somente fuga e negação da realidade.


19 de agosto de 2022