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quarta-feira, 17 de abril de 2019

Joaquim L. [retratos feitos de memórias]

Enredado na teia da rotina, mais por comodismo (ainda que incômodo) que por falta de tempo, vou adiando o café, a cerveja, o encontro com algum amigo ou amiga para depois de amanhã, para semana que vem, mês que vem, para sabe-se lá quando (mas será!), até que uma notícia vem me lembrar que o fio que nos liga à vida é tão frágil quanto o fio com o qual tecemos nossas relações.
Conheci Joaquim antes de ele me conhecer - e a recíproca é verdadeira. O fio que nos unia era a Misson - que dizia que  casaria com Joaquim, se ele já não fosse casado (e fosse um pouco mais jovem). Foi no velório da Misson que o conheci pessoalmente, em meio a lágrimas e numa confusão de nomes que eu ouvia falar com rostos que eu havia visto pelo Facebook, sem que eu conseguisse ligar exatamente quem era quem. Pouco depois, por conta de meus textos, passamos a ter contato, por internet seguidamente, pessoalmente esporadicamente a partir de março de 2016, quando ele foi ao lançamento do meu livro sobre nossa amiga. Deram certo os cafés marcados por ele: mais experiente, talvez soubesse que a vida vive sob o espectro da morte e não tem porque ficar adiando os pequenos prazeres da existência, como uma boa conversa - e Joaquim era bom de conversa e ainda tinha o artifício de sair antes do papo esfriar, deixando aquela vontade de encontrá-lo novamente. A última vez que conversamos sobre marcar um encontro, fui eu a sugerir: falou que pretendia comprar meu segundo livro em janeiro, quando liberaria o orçamento, propus entregá-lo em mãos, em Peruíbe, para onde tinha se mudado havia pouco. Janeiro passou, fevereiro também. Pensei que poderia ir logo depois do carnaval, assim que eu recebesse as cópias do terceiro livro; recebi, ficou para outra hora, quem sabe semana que vem. Ou na outra. Ou nunca mais.
Joaquim era um cara engraçado, com muitos causos - Misson me contava vários deles. Era também alguém com uma boa cultura geral, aliada à visão crítica do mundo; tinha lado, consciência de classe e senso de até onde valia a pena se estressar por algo. Era calmo, e conseguia um impressionante equilíbrio entre não comprar briga e não ficar quieto. Da última vez que nos encontramos, ainda antes da eleição, andava amargurado com os rumos tomados pelo país, pelo Metrô - tanto que tratou de sair quando pode -, sem que se tornasse amargo por isso. Se aposentou, porém não parou nem achou que o futuro estava acabado, era só esperar a morte: foi morar na praia, e enquanto se ocupava dos pequenos afazeres do dia a dia, como pequenos consertos, mantinha o sonho de morar no interior - Cunha era uma cidade que gostava muito. Quando soube do seu acidente - caiu quando consertava o telhado de sua casa - não quis acreditar; quando vi que era verdade, quis crer na sua recuperação - lembrei que ainda quero lançar o livro com textos da Misson, achei que era hora de me agilizar, pensei que poderia conversar com ele sobre, para me ajudar, ainda que dissesse que não era bom em pôr as coisas no papel -; quando soube do seu falecimento percebi que ainda que não fosse um amigo próximo, era um amigo muito querido. 
Quando Misson faleceu, passei dois anos tentando acreditar que após a morte deveria haver algo - buscando sinais dela, vindos de não sei onde. Certa feita sonhei com a despedida de Joaquim (que era Lagares, Ian e Misson ao mesmo tempo), subindo uma escada e se perdendo no pôr-do-sol. Quando meu pai faleceu, desacreditei de tudo. Mas... se eu estiver errado, certamente Joaquim está agora em boa companhia, contando seus causos para a Misson, os dois se divertindo, como na época do Metrô.


17 de abril de 2019.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Duas perdas, um livro, Joaquim [memórias feitas de saudades] [saudades feitas de afetos]

Sonhei alguma coisa hoje, não sei o que. Lembrava quando acordei para ir ao banheiro, sete da manhã - esqueci ao voltar a dormir. (Talvez devesse ter escrito). Não sei sequer se foi um sonho bom ou ruim - não havia esse retrogosto do inconsciente, que não raro é tudo o que me sobra dos embalos de Morfeu. Acordei indiferente - no embotamento dos dias que a vida tem me imposto, como recurso para viver sem capitular. Não lamento, sei que é passageiro, sei que é da vida, mas dói ausências tamanhas: quando finalmente conseguia recompor as cores perdidas com a sua partida, uma nova perda - ainda maior - empalidece tudo ao meu redor. Não tenho mais duas das pessoas mais queridas - e além do mais, meus maiores leitores, você e meu pai. (E escrever, desde então, se parece ainda mais à condenação de Sísifo, que cumpro não só por ser obrigado, mas por não vislumbrar outra alternativa para seguir vivo). Cheguei a pensar que havia sonhado contigo, por estar hoje pensando em você mais que de costume. Logo vi que era besteira: penso em você todos os dias, ainda mais nestes em que me vejo em pontos críticos da vida. Faz falta sua presença, um abraço seu; faz falta também as muitas conversas com meu pai, sobre política e sobre a vida - hoje vi que a forma como às vezes chamo Mafalda e Guile é tal qual meu pai chamava as cachorras de casa (sua Pitocuda, dado o pitoco de rabo que deixaram na Tandi). O que me faz pensar mais em você hoje não foi sonho algum, é o amanhã - dia 25 de fevereiro de 2016, uma data sem maiores significados até 2015. Amanhã talvez eu conheça, finalmente, Joaquim. Joaquim era seu colega-amigo que você lamentava ter nascido uma geração depois, pois queria ele para seu marido. Joaquim foi também o protagonista do primeiro sonho em que sonhei sua ausência - numa mistura de personagens que povoavam suas histórias e minha imaginação -, dez dias depois daquele dia em que permaneço esperando seu retorno à casa 128, na Penha. Era o fim de um mundo tal como eu conhecia (e eu não me sentia bem) - como tampouco me senti bem com o fim de toda uma via láctea da minha existência, em novembro. (E me pergunto agora: quem vai ler isto tão logo eu publique e fazer eventuais correções de português ou apontar trechos confusos num email direto e carinhoso?). Entretanto, o fim do mundo, descubro, não é a extinção de tudo, o nada - é um renascer confuso, que é acompanhado de outras perdas e novidades insondáveis até então. Conhecer Joaquim de carne e osso, nunca tinha me passado pela cabeça - ele era um personagem seu, que coloria seus dias e animava os meus por tabela. Pelo Fake, ele falou que tentaria aparecer no lançamento do livro com minhas crônicas em diálogo com você. Meu primeiro livro, por conta da minha procrastinação crônica não será Passageiro. Diário de João, e sim [memórias feitas de saudades]. De algum modo estou contente em lançá-lo, de iniciar esta nova fase com uma homenagem à você - por mais que a matéria com que foi feito ainda faça doer meu peito. Olho para aquele mundo que não existe mais, percebo o quanto ainda respiro dele (e, sim, me sinto bem). Amanhã conhecerei Joaquim e este texto não entrará no livro: porque nele não coube tudo o que você significou para mim.
(Que meu pai tenha te dado o abraço que pedi).

24 de fevereiro de 2016.


PS: sobre o lançamento: http://j.mp/livromfs

domingo, 16 de novembro de 2014

Abraçaço [memórias feitas de saudades]

Eu escrevia sobre política. Citava Comte-Sponville, Rancière, Rawls, Nelson Rodrigues - você talvez me chamasse de academicista, só para me provocar, e escutaria toda minha justificativa de que estou longe disso, para me responder, rindo, ao fim: "calma, Dalmorito, não se ofenda, gosto de você assim mesmo". No Face, Marcos pôs uma foto na qual antevi seu comentário: "hahahaha, aí, sim, Marcos!" Era um Pica-Pau de pelúcia defronte uma cachoeira - Chapada dos Veadeiros, se não me equivoco. Não perguntei, mas tenho certeza que o intuito dele foi o de fazer esse agrado para você - ele também deve ter antevisto seu comentário. Havia me deparado com um Pica-Pau assim na República ainda esta semana - me lembrei de você e a incompletude da vida tatuada no seu braço. Pica-Pau filosófico-existencialista - só você para subverter desse jeito! Tenho andado num período estranho: não é desânimo, não é a dor da tua ausência - o vazio segue, porém tenho conseguido a cada dia preenchê-lo de memórias e da alegria de ter te conhecido -, não sei ao certo o que é. Penso ser uma das minhas ecdises. Que pele nasce sob essa que, morta, tento me desvencilhar? Há você nessa pele nova, por mais que não esteja presente da mesma forma que nas minhas ecdises anteriores. Queria te perguntar "o que faço" diante das minhas pequenas dúvidas e angústias do dia a dia. Queria pedir seus conselhos sobre garotas - que raios se faz quando começa a tocar Pela luz dos olhos teus, que você cantarolava quando falava do Marcelo? Queria te abraçar para além do meu abraço simbólico que te dou toda vez que passo pelo Charm - você faz tanta falta, Misson! Queria palpitar nos seus dilemas quotidianos, existenciais, pequenos, grandes, bizarros - cadê suas histórias do Metrô? Ouço Miho Hatori, Ecdysis. Me recordo da vez que mostrei um clipe dela, tentando te convencer de que rock alternativo japonês e coreano não eram tão chatos assim - pela internet você sempre me dizia que não assistira ao que te enviara, pois tinha medo de clicar em links com caracteres que não conhecia. A produtora do clipe de Barracuda era uma Mariana Castro - rimos no QGinho. Muito tempo depois, Marcos daria um "checkin" no QGinho, pelo Face - estávamos Yane e eu também, foi dia dois de junho. Começava ali uma revolução? Começava, mas foi interrompida no meio do caminho. Ainda me lembro da terça-feira, vinte e sete de agosto, lá pelo meio-dia, em que encontrei Yane na Sé e perguntei se ele tinha te visto, conversamos sobre você, estávamos preocupados, mas esperançosos de que você já trilhava um novo caminho para a vida. Doze horas depois... você abandonava a "não-morte", como dizem os índios Bororo. Troco de disco, ponho Caetano Veloso, Abraçaço. Foi você quem mo mostrou pela primeira vez. Questionei se você apenas queria me mostrar a música, ou se queria falar por ela. Era a segunda opção. A música? Estou triste. Há tempos evito este disco. Sempre soube que me traria lágrimas: há uma coisa que há muito queria te dizer. Guardo isso como uma relíquia, como disse Débora. Esta carta que agora te escrevo, tenho ela escrita - o essencial dela - desde muito. Não que me faltasse coragem de dizê-lo, é que esperava falar pessoalmente - diante da impossibilidade... Sei que você sabe, que você sabia. Isso era claro e óbvio, eu apenas não dera conta de nomeá-lo. Esse sentimento ganhou nome com o disco do Caetano apresentado por você. Coincidência, não? Tantas. Estou triste, estou muito triste, o que será que existe, o que quer que seja. Me sinto vazio, mas não adianta estar farto: aprendi a aceitar certas coisas da vida. Perdi meu medo do porão, você viu? A Casuística talvez volte, eu assumiria seu papel de co-editor, Daisy como editora. Uma amiga sua, Daniela Nascimento, me perguntou de você esta semana - na verdade do seu livro, que eu pretendo ainda lançar um dia: seus cadernos estão aqui comigo, um tesouro. A Augusta não tem a graça de outrora, e não é porque ela mudou. Alberta, da noite do famoso "Fanoruti", reabriu. Conheci o apartamento novo do Djalma. Achei uma nova Ruth, a balconista. Semana que vem vou para Buenos Aires, cidade que você planejava conhecer. Tenho a impressão de que você passou por um sonho meu. São duas da manhã, chove lá fora. Vida sem utopia, não acredito que exista. A minha utopia está em reencontrá-la - para além dos reencontros diários por SP. Eu tinha tantas coisas pra te contar - imagino que você também. Poderia elencá-las aqui, mas seria apenas para fugir do essencial, como fiz outras vezes. Enquanto escuto Abraçaço me baixa um sentimento sutil de conforto, parece que estou em sua companhia - há algo a mais no ar de casa hoje. O dia e o disco se encaminham para o fim - toca Gayana. O amor que vive em mim/ vou agora revelar/ este amor que não tem fim/ já não posso em mim guardar/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ eu não vou mais me calar/ eu não vou mais esconder/ este segredo guardado/ bem lá no fundo do peito/ eu amo muito você/ eu amo muito você/ não adianta fugir/ não adianta fingir/ já me cansei de sofrer/ por não poder lhe dizer/ eu amo muito você/ eu amo muito você. É Caetano, não sei para quem ele canta. Sou eu também, e canto para você, Missoneta. E por que escolhi dizer isso agora? Também não sei. Talvez para poder concluir minha ecdise, talvez para poder deixar você partir, talvez porque não coubesse mais em mim esse segredo (que todo mundo sabia, mas era segredo), talvez porque precisasse dividir essa minha relíquia. Você sabia, tenho certeza, isso era óbvio na nossa relação, mas mesmo assim eu precisava te dizer: eu amo muito você!

São Paulo, 16 de novembro de 2014.

Para Patrícia Misson, que eu tanto amo e tanta falta faz.


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Hoje acordei leve [memórias feitas de saudades]

Chego em casa onze e cinqüenta e oito da noite, silêncio me habita. Nem leve, nem pesado: silêncio. Faz um ano. Seguimos nossas vidas, carregamos sua ausência. Sua mãe comentou: "geralmente levo bem, mas tem dias que bate uma tristeza, uma saudade". Imagino. Ou melhor: sei como é - porque a dor da sua família é a mesma que a dos seus amigos. Após as badaladas para o início da missa - na mesma igreja na qual você e seus irmãos foram batizados -, uma garoa fina começou a cair, acompanhando os olhos cheios d'água de Djalma e meus, relembrando aquele fatídico vinte e oito de agosto de dois mil e treze. Não faz sentido - é tudo o que consigo concluir do abismo que se abriu sobre meus pés depois daquele telefone no meio da madrugada. Sei que a sensação de Djalma, depois do telefonema no meio da manhã em Brusque, foi a mesma. Relembro agora de quando nos encontramos, no velório, no dia seguinte: foi o abraço dele - como de tantos outros amigos - que evitou que eu desabasse de vez. Mas a falta de sentido continua - e eu busco você nas coincidências surgidas depois da sua morte: o copo, os e-mails, Luis Gotardo. Na sua casa, a pizza não foi paga com seu VR (que eu não conseguia decorar a senha). Cigarro, café, Coca: cadê você? O QGinho povoado por recordações. As lágrimas me sobem. Seus livros não estão mais nele - sua mãe comprou uma estante nova para a sala. Vejo no mural uma nota de jornal que eu nunca reparara: Se Da Vinci fosse pop. É você na foto da matéria, dois mil e quatro. No elenco, seus amigos. Do curso de teatro surgiram, mas a impressão é que amigos eram desde antes, desde sempre: ali apenas se encontraram. Vocês encenaram Beckett. O absurdo, a falta de sentido (e me pergunto se algum dia te mostrei minha peça "O silêncio", um continuando Godot). Apago a luz, uma tênue claridade branca entra pela janela, o alumínio da escada se destaca: silêncio. Silêncio, apesar da conversa animada na cozinha. Há tristeza, tristeza de saudade - muita. Mas não é uma tristeza pesada. Eu havia notado ao despertar, ciente de que dia estávamos, que eu acordara leve - estranhamente leve. À noite, entendi o porquê, no "Porra, Marcos", do Marcos, no texto das intersecções da cidade e dos afetos do Yane, na conversa com Lauro, no abraço de Djalma, no acolhimento da sua família, no café na sua casa, no sorriso dos seus pais e seus irmãos, na foto sua com Matheus e Victória, sorrindo com língua de fora para a câmera: você nos povoa - você nunca partiu.

São Paulo, 28 de agosto de 2014.

Para Patrícia Misson, que me povoa, como a tantos outros.

sábado, 26 de abril de 2014

Black Star [Memórias feitas de saudades]

Não sei com o que sonhei hoje. Sei que sonhei porque acordei com a sensação dos sonhos tristes. Foi com sua ausência, novamente? Não sei, nem idéia. Que não tenha sido em sonho, tenho sentido ela acordado. Perdi a hora, desisti do café-da-manhã e de preparar o almoço. Castanhas com goiaba e chimarrão, um desjejum um tanto incomum (havia sementes de abóbora também). Pouco depois, adentra por baixo da porta sua lembrança. Uma carta da Daisy, namorada do Djalma (que, já disse, acho que você iria gostar muito). Achei curioso: eu bem te pedia uma carta no meu texto passado, um dia antes do carimbo do correio. Por um instante, ao abri-la, achei que fosse material seu, perdido e agora recolhido. Parecia um Trumbica. Uma versão mini do Arara Teresa? Era o Misión... Ainda me falta coragem para lê-lo. Como me faltou coragem para ver um arquivo que seu irmão me mandou, já há mais de mês. Coragem me falta também para encarar novamente seus cadernos, suas cartas (tantas destinadas a mim). Também não tenho coragem de escrever uma crônica dizendo o que gostaria. Você sabe o que é. Talvez soubesse desde antes de mim, que só descobri depois de você partir. Tenho ela escrita em minha cabeça já há muito tempo - e tenho evitado Caetano por causa dela. Meu medo é de que, ao dizê-lo, tudo o mais seja supérfluo e não haja mais nada a ser dito, que eu me convença de que a espera acabou - porque não há regresso. Então guardo esse essencial para mim, como se fosse segredo - um segredo que espera seu retorno impossível. Escuto Radiohead: "blame it on the black star, blame it on the falling sky, blame it on the satellite that beams [you] home". Queria um abraço seu.

São Paulo, 26 de abril de 2014.

Para Patrícia Misson, que voltou para casa.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

What are they doing in heaven today? [Memórias feitas de saudades]

Porra, Misson! Tanta falta sinto de você. Nunca havia pensado que sentiria tamanha falta quando estávamos juntos, e não me arrependo: tínhamos a vida pra viver, nossa companhia pra dividir, a morte era algo para um futuro distante e não fazia sentido deixá-la tomar conta da vida. Agora que é passado, tampouco faz sentido, eu sei. What are they doing in heaven today?, escuto agora. E então, muito ocupada para mandar uma carta? Quando recebi a ligação às três e cinqüenta e oito da manhã, sabia que você seria um enorme vazio. Mas o enorme é vasto demais pra gente ter idéia antes de vivê-lo. Assim como o vazio. Assim como sua ausência - ainda tão presente, como suas lembranças. Comentei hoje em terapia - infelizmente não pude contar da minha nova terapeuta para você, que teria muitas piadas para fazer -, dos silêncios que tenho vivenciado nos últimos tempos. Silêncios agradáveis em companhia de outras pessoas. Lembrei dos silêncios contigo, tantos e tão leves: não tínhamos a obrigação de lançar o tempo todo palavras umas atrás das outras para saber que o outro estava próximo. O espaço-tempo ao nosso redor não era um vazio rarefeito que precisava ser preenchido: havia nos interstícios nossos afetos, nossos pensamentos - e seu cigarro com café no sofá e meu chimarrão na cadeira. Nos compreendíamos tão bem. E se não nos compreendíamos, tínhamos a sintonia para entender qual era o ponto da questão que atormentava o outro e então problematizávamos em cima dele. Mas não é do que falávamos que sinto falta hoje, é do que não precisávamos falar. Dos olhares que já diziam a piada. Dos gestos que se seguiam às palavras. Eu te ensinando a desapegar; você me ensinando a me encorpar (imagine hoje, se soubesse que estou fazendo dança). Eu aprendendo a te pedir um abraço, aprendendo a te abraçar. Nós dois usando as costas das mãos como lenço das lágrimas alheias, sem pedir nada em troca no futuro. E eu não tinha dúvidas da pertinência de te pedir companhia. Assim como você sabia que era pertinente me escrever ou tocar a campainha de madrugada, se fosse preciso - seja porque estava mal, seja porque a balada acabara e estava satisfeita com a noitada. Silêncios. Tenho escutado você neles por estes últimos tempos. Tem horas que te vejo dizer: "é isso, Dalmoro! Vai lá", antes de outra tragada carregada de alegria. 

São Paulo, 23 de abril de 2014. 

 Para Patrícia Misson, de quem sinto falta também dos silêncios.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Há tempos [memórias feitas de saudades]   

Me repito. Pode ser que haja quem esteja incomodado com este aparente mais do mesmo - sei que você não estaria. Não nos repetíamos: a cada dia construíamos novos jogos com as palavras, novas significações para velhas sentenças, novas camadas de entedimento mútuo, com a qual levávamos nossa amizade por outra dimensão, abrindo diariamente novos questionamentos recíprocos sobre velhos fatos - eu te questionar era questionar a mim mesmo, e o mesmo valia para você, tenho certeza. Semana passada, ao voltar da casa dos seus pais, resolvi dar uma arrumada na minha casa, jogar fora uma montueira de papel inútil - notas fiscais, rascunhos já transpostos pro computador, propagandas, recortes de possíveis crônicas que ficaram apenas como potência - e outras coisas. Lembro de ter te contado, quando eu ainda morava em Campinas, que esse ímpeto me surgia quando voltava da casa dos meus pais. Já pensei muito a respeito, sem conclusões: fechar o passado (que passado?), ao menos aliviar o acúmulo de lembranças e pequenas memórias, porque perdi o medo de esquecê-las sem prova material? Sei lá o porquê de me livrar de coisas velhas depois dessas visitas, mas me parece claro a semelhança entre as duas casas: há algo que foi perdido para sempre em ambas. A arrumação ia bem até eu me deparar com o cupom fiscal do mercado que fica perto da sua casa. Eu desconfiei do que se tratava - e tive razão. É do dia vinte e oito de agosto, oito e vinte e oito da manhã - desconfio que seu médico seria mais ou menos nesse horário. Está meio apagado, diferentemente das lembranças que eu e tantos outros trazemos de você. No cupom, o básico de quando íamos lá: pão, queijo, presunto, margarina, requeijão, um bolo pronto e, em sua homenagem, uma Coca-Cola. Você já havia partido, não há, portanto, cigarros. Trinta e sete e sessenta e sete. Tenho sentido tanto a sua falta. Queria te contar das boas novidades que tem me acontecido ultimamente. Queria você para desabafar desse desânimo que tem desabado sobre mim - apesar das coisas boas. Queria falar das minhas confusões - talvez mais confusas por não ter você pra me dar suas ponderações a partir de um ponto privilegiado detro do meu universo. E toca "Ando só", do Engenheiros do Hawaii, agora. Eu me lembro de "Há tempos", da Legião Urbana. E sei que você gostava mesmo de Roberto - foi com a camiseta dele que você se despediu de nós. Hoje, indo dar uma caminhada depois do teatro - este fim de semana assisti à trilogia Pirandello, teríamos muito assunto para depois de cada peça, além de você me perguntar "como assim" ao fato de eu não saber quem é o tal Cacá Carvalho -, vi um "morador de calçada" lendo um livro do Nietzsche. Pouco antes d'eu passar por ele, baixou o livro e ficou a olhar para o nada, refletindo o que lera. Será que você o conhecia? Seria um dos seus amigos da estação Tatuapé, que estavam montando uma biblioteca com sua ajuda? Na hora lembrei de nossas mensagens por celular, precisava te contar a cena - essa ainda mais do que a do homem que levava seus bichinhos pra passear na Paulista: um cachorro, uma calopsita e uma iguana. Parece que meu universo se estreitou sem seus sms com banalidades do metrô. Houve uma vez que disse aqui que não te pedia resposta. Nestes últimos tempos, gostaria tanto de um sinal seu - assim como das nossas gargalhadas, dos nossos choros, das nossas confissões ditas em voz alta porque não tínhamos vergonha um do outro. Porra, Misson! Dona Missoneta... Ontem, desanimado, fui outra vez mais passear pela Augusta, para dar meu abraço imaginário em você - acho até que esperava algo excepcional para me tirar desse estado. Além de ter dito o quanto sentia sua falta e gostava de você, te pedi em silêncio resposta - não sei se ouviu. Eu, ao menos, não te ouvi, não além do que ouço nas minhas lembranças - porque em meus sonhos sigo sonhando sua ausência.   

Para Patrícia Misson, que não tem como responder.   

São Paulo, 09 de fevereiro de 2014.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Presentes e passados [Memórias feitas de saudades]

Encontrei Djalma sexta à noite, num karaokê (olha o Dalmoro!, você diria). Me pediu um abraço forte, que estava precisando - ele também. Parece que seu espectro andou a passeio por este dias, deixando um certo pesar em nós. Não é o tipo de sentimento que você gostaria de despertar, tenho certeza, mas, entenda, a lembrança dos momentos que passamos juntos - bons e maus -, o prazer da sua companhia, o radiar do seu sorriso, a saudade de tudo isso, que flutua no vazio insubstituível da sua ausência, tem horas que dói. E tamanha dor, tanto tempo depois, se deve à pessoa que você foi - ou seja, culpa sua! Combinamos de ir na sua casa domingo, visitar seus pais, seus irmãos. Eu tinha uma lembrança para dona Mê, artesanato simples porém gracioso, um imã de geladeira de uma pequena rosa, feita sei lá de qual material, com uma rolha como suporte. Foi no dia em que sua mãe fazia anos que vi o enfeite, em uma festa em Pomerode. Hesitei entre a rosa e a pimenta. Esta, pensei, poderia representar o espantar eventuais má-sortes da sua família. Optei pela rosa, pois acho que estamos num ponto de fazer florescer o futuro, pois a vida segue, desabrochando alegrias e tristezas, planos e saudades, no seu incansável caminhar. E foi com alegria que fiquei sabendo que sua irmã conseguiu passar no curso que ela queria, na faculdade que ela pretendia - veterinária. Imagino o quanto você também não teria ficado feliz ao saber da notícia. Na despedida, parabenizei ela novamente, e comentei que era uma coisa que você sempre dizia, o seu desejo de que Victória conseguisse fazer o que desejasse - a gente dá um jeito, guardo parte do meu salário pra pagar a faculdade dela, um dia você comentou. Não sei se fiz bem, ela se comoveu e não conseguiu segurar as lágrimas - e não adiantou meu abraço forte ou o beijo terno do Djalma. Sua mãe comentou que tem sempre lembrado de você falar para ela calcular o custo-benefício. Achei graça, não imaginava que você tinha encampado meu discurso tanto assim - sabia que se admirava desse meu excesso racional para gastos, deixou isso bem claro quando comprei a máquina de pão, a qual cobriria os custos em, no máximo, seis meses. Houve um momento que estávamos sentados à mesa, o clima não era de velório, mas havia uma tristeza no ar, penetrando as lembranças alegres de quando estava conosco. Seu pai falou do seu bom coração - e também que você não era de deixar barato. Verdade. Djalma estava com a namorada - tenho certeza que você iria adorá-la. Eu estava sentado no lugar de seu pai, e ele ocupava o seu. Sua mãe me mostrou um vídeo de uma reportagem de quando houve qualquer caos na estação Tatuapé - parece que, desde sua partida, seus colegas próximos saíram todos de lá, exceto um. Entrar no QGinho para vê-lo foi difícil. Na reportagem, em meio ao blablablá idiota do ancora, às oito e vinte e um da manhã de um dia que não sei qual é, da câmera do helicóptero vejo você, uniforme do metrô, gesticulando com um colega, enquanto voltam para a estação e o trem tenta se locomover. Sabia desse vídeo, você tinha comentado, contudo nunca tinha visto. E vê-lo me causa uma sensação estranha: eu te vejo, agora, no presente: você caminha, segura o rádio, ajuda a abrir a porta, gesticula. Não há dúvidas, é você: o cabelo, os gestos. Não há dúvida: é no presente que vejo você se mover. Mas são imagens passadas. Tento segurar o choro, não consigo totalmente. Porra, Misson! Penso comigo, frase tantas vezes dita desde sua perda. Porra, Misson! Revejo os trinta segundos de sua presença uma, duas, três vezes. Volto para cozinha. Seu pai pergunta do seu livro, reconheço que não tenho tido estrutura para ler seus cadernos. Porra, Misson! Sabia que também pensei em comprar um caderno? Mas acho que não tenho muito o que escrever em cadernos. Você os leria? Seu irmão fala de aparecer na minha casa esta semana, para começarmos a organizar as linhas que você nos deixou. São linhas presentes - nosso tesouro. Você não é passado.   

Para Patrícia Misson. Porra, Misson!   

São Paulo, 02 de fevereiro de 2014.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Um convite em aberto [memórias feitas de saudades]

Descubro que aquela tequila que Tânia (para você Tatiane) te convidara, diferentemente do que você imaginara, era mesmo sério. Entrei em contato com ela este sábado (fico pensando o que você diria disso, com um sorriso aberto e um certo tom de deboche). Lembrei do seu encontro com Tânia na sexta, quando ilhado com alguns colegas da iluminaçâo em uma lanchonete, por causa da chuva que alagava a rua em frente, um dos meus amigos pediu um todinho e me ofereceu. Fosse você ou algum de nossos amigos, tiraríamos sarro que o convite era para algo mais apimentado que um simples todinho. Tudo porque você teve sede depois do encontro com Tânia e a única coisa que ela tinha para oferecer era um todinho. Foi seu único encontro com ela, um encontro rápido, esporádico, que você achou que seria insignificante para ela - por mais que vocé tenha gostado e comentasse muto tempo depois sobre. Foi um encontro que te ajudou no seu processo de se livrar da síndrome de patinho feio, como você dizia, também com as mulheres (com os homens vocé se mostrava cada vez mais confiante). Penso que foi o início da sua guinada na forma de se relacionar consigo e com o mundo, interrompida a meio do caminho. Mandei no sábado uma mensagem para Tânia, sem saber muito o porquê,talvez na ânsia de te descobrir um pouco mais e fingir pra mim mesmo que essa auséncia irreal não é real. Tinha receio de que você estivesse certa e ela me respondesse grosseiramente que sequer lembrava de você e não queria saber de notícia de morte. Mas foi justo o contrário. Apesar de má fisionomista, disse que lembrava muito bem do seu rosto, e andava pensando em você, que sumira e nunca mais a procurara para tomarem a tequila combinada. Lamentou que sua ausência fosse mais definitiva do que um não dar notícias. E comentou que só lembrava de você sorrindo. Apesar de ter te visto chorando, pesarosa, angustiada muitas vezes, na maioria te via alegre, tentando não deixar que as interpéries da vida te deixassem para baixo, sempre atenciosa e disposta a ajudar os outros (até demais, como na metádora do cacto que justifiquei sua partida para sua irmã), são essas imagens da sua felicidade e da sua bondade que primeiro me vem. Com a conversa com a Tânia descubro que teu sorriso não faz falta só a mim e aos seus próximos, que sua  ausência é sentida por gente que você encontrou uma vez, mas na qual foi capaz de cativá-la. Não me surpreende.

São Paulo, 26 de janeiro de 2014.

Para Patrícia Misson, com suas surpresas e nossas piadas

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Sob os mesmos tetos [memórias feitas de saudades]

Havíamos combinado de você morar comigo em agosto. Você tinha planos de sair da casa dos pais há um tempo. Essa mudança te gerava sentimentos ambíguos: queria e não queria. Um dos pontos era que temia que não desse certo e fosse necessário voltar para a casa antiga: não que imaginasse que teus pais não te aceitariam sem problemas: era uma questão sua consigo própria esse possível passo atrás. Outro ponto que atrapalhava eram as questões burocráticas para fechar um negócio. E no início do ano, quando buscava com mais afinco a casa, e achara algumas que interessavam e que a burocracia soava menos complicada, um conhecido que se dispusera a morar contigo e Djalma punha empecilhos aos imóveis encontrados. E era porque esse conhecido iria sair do apartamento em que eu morava que você entraria em agosto, para ficar um mês - menos talvez, a depender de quando eu me mudasse -, para testar na prática se o que te mobilizava era mesmo morar sozinha. Nos enrolamos em fechar o combinado, agosto chegou, e você continuou freqüentando minha casa sem morar nela (mas agora com as chaves e entrada livre, de qualquer modo, já que não havia outras pessoas para nos constranger na liberdade que tínhamos um com o outro). Em meados de agosto, combinávamos de você e seu pai pintarem meu apartamento para a devolução ao proprietário. Eu tinha pressa, nos enrolamos novamente, e você dizia que talvez fosse melhor eu procurar um pintor profissional. Para quarta-feira, dia vinte e oito, meus planos para a manhã eram depositar minha dissertação (seu nome era o primeiro dos agradecimentos, quando eu enunciava alguns amigos), e fazer uma cópia da chave da minha nova casa para você. Meu receio era se você seguiria me freqüentando com a mesma freqüência, diante do meu desejo de não permitir que se fumasse dentro de casa, nem na janela. Creio que continuaria a vir, sim. E creio também que logo eu abriria a exceção para que você fumasse no telhado - e você iria se divertir com esse novo lugar, se sentindo uma gata que observa São Paulo do alto. Você seguiria fazendo a piada de que não respeitaria minha regra de tirar os sapatos para entrar - "que isso já é frescura demais, Dalmoro", falaria, a cabeça meio inclinada para baixo, uma mão para o alto, como a repelir qualquer coisa, enquanto descançaria seu tênis sem se incomodar de fato. Novamente não aconteceu: nos enrolamos, porém desta vez nas tramas da vida, que nos põe na frente pessoas que parece que só chegamos a conhecer por milatre (a insustentável leveza do ser), que nos faz seguir rumos inimagináveis até nos pormos em marcha, e que, no fim, nos apresenta a única certeza da vida com atroz força e precipitação. Lembrei disso porque sonhei contigo novamente. Não lembro se te via ou não, mas você estava presente. Combinávamos de dividir apartamento, eu você e um conhecido da escola de teatro - e não por um mês, mas por tempo indefinido. Ao chegarmos ao apartamento novo (que parecia meu velho) com nossas malas (o que precisamos e temos de valioso cabe em uma mala ou duas e na companhia que está conosco, isso basta para preencher o apartamento nu), eu me dava conta de que não havíamos conversado sobre faxina, barulho, cigarro. Fiquei super preocupado: você aceitaria? Não fazia sentido pôr a amizade em risco dividindo apartamento, mas era tarde. Acordei nesse ponto do sonho, para fechar a porta a uma amiga que dormia em minha casa, na cama-sofá que você tantas vezes dormiu. Contei-lhe meu sonho e então me dei conta de que minha preocupação era exagerada: você já mora comigo há muito tempo e nossa amizade nunca correu perigo por isso.

Para Patrícia Misson. Moradora especial das minhas casas.

São Paulo, 19 de dezembro de 2013.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O frescor do verão [memórias feitas de saudades]

Levo uma amiga para conhecer o restaurante árabe da Cracolândia que tanto gosto. Apesar de ser quase oito da noite, faz calor. Pedimos um sugog e um shawarma. A cerveja é preciso comprar no bar ao lado. Minha amiga se levanta e vai. Está com um vestido leve, que a cada passo deixa a expectativa de que suba, mostrando um pouco mais suas pernas (depois me explicaria que se trata, na verdade, de um shorts). “Ah, o frescor do verão”. Lembro da frase tantas vezes trocadas com você, pessoalmente ou por sms. Algumas lágrimas me sobrem aos olhos, são poucas, mas vêm com tamanha força que não consigo segurá-las. Foi algo parecido, só que mais intenso, quando você me abraçou por conta de um desentendimento com essa mesma amiga – havia vários motivos, fazia tempo que eu precisava chorar e não conseguia, até sentir seu toque. As lágrimas me fazem lembrar de trecho de sonho que tive no final de semana, em que eu tentava segurar o choro – por sua ausência – até não conseguir mais. Essa cena tem sido recorrente em minhas noites. Minha amiga volta com a bebida e dois copos. “Que foi? Por que está chorando?”. Conto da memória que me aflorou. Vocês invertem papéis, agora ela quem me consola. “Ela deve estar num lugar melhor, rindo de você – bobo – estar chorando assim”. Poderia ser, eu adoraria que você estivesse em qualquer esquina ali perto, invisível, apoiada em uma mesa, segurando um cigarro, uma Coca-Cola, um suco, uma copo de cerveja, uma água, comentando das garotas que se aproveitam do calor para o trazer às nossas vistas o frescor de seus vestidos sobre a pele convidativa. Você olharia para mim, um sorriso nos lábios, suspiraria e diria “ah, o frescor do verão”, antes de cairmos na gargalhada.

São Paulo, 12 de novembro de 2013.

[para Patrícia Misson e nossos comentários sobre o frescor do verão]

domingo, 27 de outubro de 2013

Não te peço respostas [memórias feitas de saudades]

Páro em frente a casa número 128: havia me arrastado até lá desde a estação de metrô, querendo desistir, voltar, seguir vendo coincidências e sonhando o sonho impossível de te encontrar de novo – apenas esse e poder voar como um pássaro são meus sonhos impossíveis. Eu sabia que ali encontraria apenas a não-presença – como ela se apresentaria? Observo a garagem vazia de carro e cheia de plantas (São Paulo seria uma cidade melhor se mais casas fossem assim): as plantas estão bem cuidadas. Lembro dos grandes sacos de lixos que se acumulavam ali nos dias seguintes às não-festas (elogios ao tédio?). Eu trago um pacote do café que gosto na mochila e lágrimas nos olhos. Fico ali parado um tempo, me falta coragem: tenho medo do que sei que não encontrarei. Passa um carro que me tira desse torpor, olho para o céu cinzento (aqueles dias foram de sol), respiro fundo. Havia lembrado no dia anterior das suas férias, em abril, passadas em minha casa boa parte dela, já que nem a viagem para Buenos Aires nem a para Pato Branco aconteceram – esta por causa da minha busca por alguém pro apartamento. Seria legal, seria bom, mas não precisávamos ter tanta pressa: não fosse agora poderia ser num feriado, no fim de ano, em algum fim de semana, nas suas próximas férias. Tenho vontade de me perguntar e se... Me calo – não há futuro do pretérito. Há o presente, e preciso aceitá-lo – com suas dores e suas perdas. Toco a campainha. Adentro sua casa, uma sensação estranha, sei que você não chegará logo mais, porque “saiu para ir ao mercado” (e o ingênuo aqui acreditou nessa história). Sinto o presente bastante presente, fico aliviado com essa sensação. Há a recordação, há a dor (a dor de todos é a mesma), há as formas de tentar contorná-la, há a vida para levar (cada um com a sua). Seu irmão está acompanhado da namoradinha dele (o diminutivo pelo tipo físico dela). Seu pai e os jogos da tarde, do São Paulo e do Porto. Sua mãe conta dos pequenos planos para os dias seguintes – o banal, mas que nessas horas é de grande valor. Sua irmã não está: é dia de Enem. Djalma chegaria mais tarde. E você? E você? No “QGinho”, diferente mas ainda com sua marca, reparo na sua biblioteca. Uma bela biblioteca, cheia de títulos interessantes. Me dou conta, surpreso, de que nunca havia prestado muito atenção nela: sua companhia era sempre muito mais interessante. Encontro os dois livros que havia te emprestado. Um deles, Retratos japoneses, do Ronald Richie, tem sua assinatura na contracapa e a data da leitura: agosto de 2013. Deve ter sido último livro que você leu. Novas lágrimas, me seguro. Há, num canto, um monte de cadernos e papéis. Sigo com meu plano de lançar um livro seu – havíamos conversado sobre isso algumas vezes, lembra? Sabia que você escrevia bem, não imaginava que escrevesse tanto – há ainda os arquivos no computador, emails enviados. As cartas foram queimadas. Sua mãe me mostra um livrinho que você escreveu quando tinha oito ou nove anos. Aqui em casa tenho um outro livrinho, de quando você tinha uns quatorze. Somos parecidos em nossos cadernos: anotações de aulas trechos de livros escritos autorais tudo misturado e desorganizado. Leio um poema que me agrada muito, será mesmo seu? Nunca me mostrou verso algum. “Olírico”, título de um texto que enviou para a segunda Casuística (foi por causa da revista que nos conhecemos, em 2009), é recorrente em suas anotações. Cartas escritas e não enviadas também. Há muitas para mim. Como seus emails, não sei bem o que responder. Seus emails você dizia que eu só devia responder se sentisse à vontade ou necessidade – eu seguiria sendo seu interlocutor. Em geral eu preferia comentá-los pessoalmente. Vejo que faço o mesmo contigo com estas minhas crônicas: bem gostaria, mas não te peço resposta – você segue sendo minha interlocutora assim mesmo. Não apenas minha. Sim, você faz falta, porém ainda é presente, e somos muitos os que seguimos dialogando com você – mesmo sem respostas.

São Paulo, 27 de outubro de 2013.

para Patrícia Misson, de quem não peço respostas (por mais que gostaria).

sábado, 28 de setembro de 2013

De sonhos e coincidências (memórias feitas de saudades)

No dia em que se completava um mês da sua perda, estava tristonho e resolvi ir caminhando para a aula. Passava pelo Brás e vi um ambulante vendendo uma camiseta do Pica-Pau com o nome da sua irmã – você iria dar risada s'eu ta presenteasse (como me chamaria de acadêmico agora, por usar “ta”). À noite havia sonhado de novo com sua ausência. Diferentemente da outra vez que tive sonho assim, neste não havia pessoas ou locais familiares, não havia alguma alusão cinematográfica. Havia um quotidiano qualquer pelo qual eu circulava tentando segurar o choro (nem sempre conseguindo), por não ter mais a sua alegria, não ter mais você para compartilhar as pequenas banalidades, coisas que passariam batidas, muito provavelmente, não fosse você ter me ajudado a me aprimorar o olhar para esses tipos de miudezas. Foi um sonho também diferente do último que tive contigo, há dez dias, no qual você estava presente: subíamos a Augusta pelo seu lado preferido (o direito), nos aproximávamos da esquina com a Antônio Carlos – a qual seguidamente parávamos para bebericar uma cerveja (e você fumar) e olharmos o movimento –, eu te abraçava e dizia: “Puxa, Misson, como sinto sua falta”. Você não respondeu nada, porque antes meu celular tocou, com a mensagem de uma amiga, que perguntava de algo relacionado a você. Apenas outra de uma série de coincidências que nesse último mês abalaram minhas (des)crenças. Contra meu ceticismo, queria crer que há um além, que poderíamos ainda ter algum contato, e que essas coincidências fossem um sinal da sua presença. Mais certo, porém, que seja apenas minha dor tentando aliviar o vazio no meu dia-a-dia deixado pela sua partida. É tarefa diária reafirmar a mim mesmo a aceitação e o conformismo com sua perda (há algo mais para fazer?), ainda assim, no fim do dia, me custa a acreditar: você se foi mesmo? Se eu te mandar um sms contando da moça de gorro no Folias, você não vai responder? Ao abrir meus emails não terá um seu lá, com grandes questões existências em meios a pequenos eventos quotidianos na sua escrita gostosa de ler? No fim deste dia, no mercado, enquanto ensaiava esta crônica e me dava conta de que era capaz de lembrar em detalhes o dia vinte e oito de agosto, começa a tocar Ira!, “Vida Passageira” – outra coincidência. Queria contá-la para você, para que tirasse sarro da minha breguice.
Pouco antes, quando eu subia a Augusta, ao passar pela esquina do sonho, fiz como tenho feito sempre que passo por ali: cruzo os braços contra o corpo num abraço imaginário e digo em silêncio: “puxa, Misson, como você faz falta”.

São Paulo, 28 de setembro de 2013.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Te conto o sonho de sua ausência (memórias feitas de saudades)

Hoje sonhei com você. Minto. Sonhei com sua ausência. Eu sentia sua falta também no sonho. E chorava, chorava muito. Chorava todas as lágrimas seguradas nestes últimos dez dias, porque me resta a vida por levar – ainda embotada nas suas alegrias, manca da sua poesia, carente da sua interlocução. No sonho eu me encontraria em breve com uma guria que estava a fim (oriental, por mero acaso), mas não conseguia lembrar o nome dela – não me vinha nome algum. Pensava em te pedir ajuda, mandar um sms perguntando o que fazer, para que você me avisasse para o óbvio, para o simples, para o terreno. Sorria. Não tenha medo do ridículo. O não você já tem. Eram algumas das singelezas que você me dizia quando pedia seu auxílio nesses assuntos – mas você mesma admitia que essas coisas não eram assim tão fáceis, tanto que sempre recorria a mim para te dizer basicamente o mesmo, só que do meu jeito mais barroco. Ou repetir exatamente as suas palavras, para você me responder: meu deus, o que eu fiz?, criei um monstro! No meu sonho você estava ausente. Aquela ausência presente, sentida, indefectível. A mesma ausência que vivo quando acordado. O sonho tinha cortes espaciais sem explicações (lembra quando te contei do sonho em que eu, depois de te chamar para irmos a um castelo, te deixava sozinha pra ficar com Camila, e você aproveitou então para me falar do código de honra do grupo de amigos que fiz graças ao seu jeito agregador: se tiver mulher na parada, toda ausência é justificada?). Eu estava em um shopping. Um não-lugar (livro que você havia pego emprestado, depois que te mandara o trecho sobre o sentir-se em casa, e que você interromperia a leitura a meio caminho – para ir pra onde?), um lugar qualquer que não freqüentávamos, porque nosso lugar, fora de nossas casas, era a rua: era a Paulista, a Augusta, a República, a Sé, a Zona Leste. Eu estava nesse shopping e queria voltar para casa, precisava pegar um ônibus, mas não sabia como fazê-lo. Era noite e foi a gota d'água para que eu chorasse sua falta (a única vez que pegamos ônibus juntos, para ir a Cotia, era noite e conheci sua amiga Híndira). Em outro momento do sonho eu estava na despedida de Lagares. Na verdade devia ser Joaquim – eu sempre tive dificuldade com os nomes do seu quotidiano. Ele saía em definitivo do metrô, ia aproveitar sua aposentadoria. Nos encontramos na saída do vestiário, ele (que tinha a cara de Ian) me cumprimentava alegre, Prazer! Eu chorava porque sabia que era a última vez que o veria, que teria notícias dele – como da engenheira do metrô, da professora de inglês, de Eliza, de Carlos, de Ezgi, de Marcelo, de Nilson da granola, da Elefoa Gay, do moço que comprava bilhetes todos os dias e ficava te encarando, dos moradores de calçada, dos jovens cidadãos, das cédulas em que você escrevia Cuidado com o vão entre o trem e a palavra, entregava no troco e lamentava que não prestassem atenção, e tantos outros personagens e situações que eram quase meu quotidiano também. Lagares se encaminhava para sua partida. Era como uma sala da SP Escola de Teatro – você iria fazer cenografia e figurino lá ano que vem, lembra?, seríamos parceiros de experimento, você voltaria a mexer com teatro e arte, coisas que te faziam falta –, era também como o cenário do Show de Truman. Lagares subia por uma escada rumo a um céu com o sol contra, e acenava para todos que estavam abaixo, que estavam contentes e emocionados e acenavam de volta. Do outro lado da sala, sentado em outra escada, num escuro de platéia, eu chorava. A luz foi tomando conta dele, como no Pequeno Príncipe. Ele estava feliz, radiante – como aquele fim de tarde, que eu não sabia se era real ou era cenário.
Acordei como tantas vezes você me acordara, com o barulho de mensagem no celular. Era quase onze da manhã (e não seis, sete, como quando você me escrevia). A mensagem não falava de alguma discussão com usuário que tentara furar a fila dos preferenciais, de uma crise existencial, de alguma quotidianidade sua, de uma idéia de algo para fazermos juntos na sua folga de três. Falava de coincidências. Era de uma amiga que, por coincidência, na sua última mensagem, você perguntava sobre ela. Ela vai bem. Nos encontramos semana passada, conheceu minha mãe, devemos nos encontrar de novo esta semana. Queria que você a conhecesse também – acho que vão se dar bem.

São Paulo, 09 de setembro de 2013.

[para Patrícia Misson, que gostava de me contar seus sonhos literariamente por email]

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Patrícia M. (memórias feitas de saudades)

"Sempre acreditei que a vida fosse absurdo, limite. Foi essa idéia que não suportei mais". Me mandou esse sms no dia 19 de julho, quase sete da noite, e avisava: "Uma das toalhas terminou". Na verdade, ela terminara de bordar uma das toalhas que se propusera – mas nela sujeito e objeto, sujeito e predicado se confundiam em Vida. Nas últimas quarenta e oito horas fiz tanta coisa que não queria ter feito, mas não havia alternativa - tem horas que não nos cabe qualquer poder de escolha. Não queria ter tomado o primeiro trem para fazer o seu caminho inverso. Não queria ter que perguntar "verdade" duas vezes para começar a acreditar. Não queria abraços de amigos para me apoiar – assim como eu a eles –, a perna a tremer, as costas a doer, a respiração a faltar. Não queria ter ajudado ninguém nem pedido ajuda – no máximo queria sua opinião se o azul escuro ia ficar bom na parede da sala. Não queria a carona, a terra e as flores. Queria que fosse um sonho ultra-realista e absurdo, como a vida – irreal e sem sentido. Queria você empoleirada no sofá para fumar na janela a dizer, diante da história anedótica do meu enésimo fracasso com mulheres, "Pô, Dalmoro!, assim não!, assim não! Eu e Djalma vamos ter que te ensinar uns negócios”. Queria sms sobre usuários do metrô, às seis da manhã; paqueras ao meio-dia; toalhas bordadas às seis da tarde; piadas de seriados que nunca ouvi falar à meia-noite. Queria acordar com mensagens absurdas no meu celular, no meio da madrugada, me chamando de Fanoruti e avisando que logo chegaria na minha casa, que tinha a chave e não queria me acordar. Queria acordar às quatro da manhã como todos os dias, para ir ao banheiro, para comer uma castanha ou massa de pão que a máquina já começara a bater, porque a coberta caiu; não por causa de uma ligação do seu celular do qual falava uma voz diferente. Queria mandar um sms da conversa sem noção que ouvi no trem. Queria te contar de alguma paixonite e receber de volta notícias de Marcelo ou Ezgi. Queria você me anunciando uma moça pela qual eu iria me interessar e eu fazendo o mesmo. Mas a vida é absurdo. O tempo enlouquecera a partir da madrugada do dia vinte e oito: ele estancou às três e cinqüenta e oito, ao mesmo tempo em que as horas passavam rápidas enquanto eu estava na sua casa, esperando pela sua volta que eu sabia que não ocorreria. Passavam rápidas enquanto aguardava notícias suas e da burocracia. Passavam rápidas quando estive na sua presença. Sua aparência tão serena, você que andava seguidamente com a testa franzida – está em um texto seu do seu blog secreto –, até quando dormia – que eu também reparava. Nós e nossos blogs secretos e nossos emails e nossos sms e nossas mensagens no Facebook. A dor no peito, os exames que não apontavam nada. The panic, the vomit. Vinte e três de julho, a primeira vez, você reclamou que perdeu o dia. E teve um sonho apocalíptico depois. E se não acontecesse, os exames da manhã te salvariam? Como um cacto, que absorve as energias negativas e tenta neutralizá-la. Como uma irmã – mais que isso. Mas não tinha espinhos, não conseguia se proteger. Como minha primeira peça. Como meu último conto. O futuro do pretérito que não consola nem conforta. E se? Uma tatuagem do Pica-Pau incompleto no antebraço, como a nos apresentar nossa incompletude e a angústia desse estado – era um desenho animado, mas trazia o esculacho dos seus questionamentos radicais e sutis sobre a existência. Hoje eu sou essa tatuagem. A vida é absurdo, limite. A iminência da morte – e a morte materializada na ausência. A dor. Vinte dias antes você dizia: “Essas pessoas nunca saberão que me dão uma grande esperança, que me fazem suportar tantas coisas que não entendo, tanto concreto e alumínio. Essas pessoas me prendem naquele lugar e, tendo de repensar muitas de minhas relações mais antigas e profundas, não sei avaliar em que medida são a prova de que não sei caminhar sozinha. Eu preciso sempre de algo que esteja comigo, como se as pessoas, os lugares, as ruas fossem uma espécie de escapulário que carrego no pescoço. Não sei estar só. E é um desejo muito antigo”. Você sabia que me enxia de esperanças na Vida e me prendia como ninguém neste lugar. Com você eu também desaprendi a estar só.

São Paulo, 29 de agosto de 2013.