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quinta-feira, 25 de maio de 2023

Um cavalo de Troia no Le Monde Diplomatique - Comentário sobre o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança"

Os fascismos do século XX, assim como suas versões repaginadas neste início de século XXI, não são apenas formas de gestão do estado e da economia, não atuam apenas na macropolítica, como penetram profundamente no tecido social, nas relações micropolíticas, influenciando a sociabilidade como um todo - quantas histórias não conhecemos de famílias que se afastaram desde a emergência dos fenômenos de extrema-direita no Brasil, como o lava-jatismo e o bolsonarismo?

Tem sido comum estudiosos e analistas inserirem as técnicas neofascistas de comunicação e manipulação no seio da guerra híbrida[1]. Uma dessas estratégias consiste em forçar os limites do aceitável no debate público, de pouco em pouco, por aproximações sucessivas, de modo que parece desproporcional recorrer à justiça, e quando se nota, absurdos passam a ser ditos ostensivamente nas mídias e nas casas legislativas - desde da defesa da desigualdade de gênero e de raça, à defesa da tortura ou da criação de um partido nazista -, e nesse ponto, como tudo até então era tolerado, ações (tardias) no sentido de refrear esse avanço contra pactos civilizatórios elementares são apontados como pretensa censura à liberdade de expressão.

Assim como os fascismos do século XX souberam se utilizar das ferramentas de comunicação então emergentes, o rádio e o cinema, os neofascismos deste século XXI também souberam instrumentalizar com eficiência as novas tecnologias de comunicação, como a internet e as redes sociais - Debord dizia que o “fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado”[2]. Esta afinidade entre novas tecnologias de comunicação e extrema-direita não me parece ser por acaso: o desenvolvimento da ciência - e as novas tecnologias dela derivada - não é neutro. A ciência faz parte de um “sistema-mundo” capitalista, está inserido dentro de uma lógica, de um momento histórico específico, e ainda que haja espaço para dissidências e questionamentos, o vetor principal é o de reforço da lógica do capital, do status quo.

Na esteira do ativista português João Bernardo[3], advogo a tese de que o fascismo não é um desvio que se aproveita de fragilidades do liberalismo em momentos de crise, e sim o contrário: quando o disfarce liberal mostra seus limites em conter a rebelião das massas e garantir as taxas de lucro, o capitalismo se vê forçado a se apresentar em sua essência, retomando suas raízes ocidentais de submissão, colonização e dilapidação do mundo e de povos tidos por inferiores; o sistema europeu de produção de hierarquias e produção de desigualdades, mundializado desde o século XV, ao menos; ou seja, a necropolítica identificada com o fascismo é iminente à expansão europeia/Ocidental e ao desenvolvimento capitalismo. Por conta disso - da essência destrutiva do capitalismo e da afinidade entre o capitalismo e o desenvolvimento da técnica sob sua égide -, as formas fascistas e neofascistas de socialização, de debate, de enfrentamento agonizante (e não agonístico) na ágora, vão sendo disseminados de um modo que soa natural - por aproximações sucessivas, como disse - até que, sem que se perceba, estamos reproduzindo essas formas de sociabilidade e de visão do mundo - como o punitivismo, por exemplo -, e o debate vai sendo rebaixado a dicotomias simplórias e soluções mágicas, que temos dificuldade para complexificar e reverter. Não por acaso, “costumo dizer que o fascismo se enfia pelas frestas, como um gás inodoro que toma o ambiente sem que percebamos. Sutilmente altera a forma como percebemos o mundo, o outro, a nós mesmos; naturaliza a barbárie e nos anestesia para o horror”[4]. Isso nos exige atenção e autocrítica permanentes, de modo a garantir que não acabemos, na ânsia de tentar estabelecer algum debate e desmascarar ações mais evidentes do fascismo, por reproduzir os pressupostos daquilo que combatemos - uma coisa é buscar instrumentalizar as técnicas de comunicação já desenvolvidas pela extrema-direita, outra é utilizar suas técnicas de manipulação.

Digo isso porque foi com assombro que li na edição de abril do Le Monde Diplomatique Brasil o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", da jornalista Ariane Denoyel.

Pelo livro que a autora do artigo escreveu - Geração Zumbi, investigação sobre o escândalo dos antidepressivos -, percebe-se que é alguém que tem familiaridade com o tema da produção de doenças para venda de remédios. Contudo, uma coisa é uma “epidemia” de depressão, cujo diagnóstico é bastante impreciso e manipulável[5], outra um caso em que o diagnóstico da doença depende de um teste preciso - uma amostra coletada reagir positivamente ao COVID-19 -, e que matou milhões de pessoas em todo o mundo, em um curto espaço de tempo (ainda que o número exato possa ser questionado, como a autora faz).

O artigo em questão me pareceu muito estranho na sua estrutura e recursos retóricos, por se utilizar de muitos elementos de fake news. Isso já seria problemático, mas o fato de ir de encontro com muito do que a extrema-direita mundial propagou desde 2020, me fez parecer um cavalo de Tróia que conseguiram pôr dentro da revista.

É evidente que ao texto subjaz um viés de confirmação da sua tese. Tese que tem como um de seus pressupostos o de que as grandes corporações não possuem restrições éticas na sua busca pelo lucro. Pressuposto compartilhado por muitos leitores do Diplô (este escriba incluído), e que se lerem o artigo sem a devida atenção podem ser “capturados” pelo raciocínio lacunar mas de fácil entendimento, induzidos a concordar com premissas falhas (por aproximações sucessivas?), até se chegar a uma conclusão que até agora não possui lastro na realidade empírica, ao menos não na forma radical como foi posto pela autora: de que as vacinas foram aprovadas apenas para lucro rápido das empresas farmacêuticas, que se utilizaram com sucesso de todo tipo de fraude e suborno dos órgãos de controle estatais e mundiais para impor seus interesses, à custa da segurança da população e calando todo e qualquer questionamento sobre sua eficácia e mesmo sobre sua necessidade.

É basicamente a mesma tese das teorias das conspirações dos antivax da extrema-direita, mudando apenas o beneficiado da fraude - sai a dominação chinesa, entra a das grandes corporações. Inclusive propõe a mesma saída: se vacina quem quer, ignorando que saúde pública deve ser feita de modo público e não como compras num site de e-commerce com a liberdade absoluta sobre si do homo-oeconomicus; que vacinação só tem efetividade se feita coletivamente, dentro de uma política ampla, para além de (pretensas) escolhas individuais.

A forma como é construído o texto, cheio de nomes de indivíduos solitários lutando contra a OMS, a FDA, a NIH, a ANSM, as grandes corporações capitalistas e sei lá quem mais, é outro ponto que reforça a suspeita de estratégia de manipulação. As citações de artigos científicos sem apresentar uma contestação a eles feitos dão um verniz de sério, mas não sustentam nenhuma delas: todas essas contestações teriam sido validadas pelas revistas e ninguém, nem um mísero cientista foi capaz de as contestar, pôr em dúvida, refutar?! Assim sendo, por que esses gênios não ganharam o Nobel, então? Ah, talvez porque foram “contra o Sistema”, em que ONU, OMS, governos, mídia, todo mundo está na mesma conspiração para vender vacinas e ficar rico destruindo a saúde da população[6]... A própria jornalista não se deu ao trabalho de plantar um “cientista”, que fosse, fazendo o outro lado das acusações - isso não seria o básico do jornalismo, mesmo de opinião, ao tratar de um caso dessa gravidade?

É muito estranho que o artigo levante suspeitas sobre o cuidado em divulgar casos adversos da vacina, ignorando com uma solenidade gritante todo o contexto da época, das campanhas massivas em nível mundial dos antivacinas e anticiência. Se o Brasil foi um caso modelo desse tipo de desinformação, com respaldo presidencial, a França da autora, onde protestos contra a vacina reuniram mais de 200 mil pessoas[7], não estava imune a esse tipo de ação de guerra híbrida. Este trecho aqui, por exemplo, parece ter saído direto de uma live do Bolsonaro: "O órgão também descarta sistematicamente efeitos que não aparecem na literatura científica, mas nós não temos distanciamento suficiente dessas vacinas para excluir qualquer causalidade"[8]. Basicamente um "‘Ah, não tem comprovação científica de que seja eficaz’. Não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz. Nem que não tem, nem que tem"[9] de alguém que sabe manejar o vocabulário com algum refinamento - só faltou defender a cloroquina, porque o discurso negando a ciência está ali presente, apresentando o método científico como regras forjadas para descartar aquilo que não é do interesse dos poderosos, por mais que as evidências fossem visíveis no “mundo real”.

Que haja contestações às vacinas contra a Covid e à forma como foram desenvolvidas dentro do meio científico, não duvido - afinal, estamos falando de ciência, não de religião. Contudo, esse tipo de debate é muito mais complexo e profundo do que foi apresentado pela autora - constrangedoramente rasa em todo artigo, como sói a todo texto de manipulação.

Por fim, o artigo termina falando da "autocensura dos jornalistas"[10] sobre os efeitos adversos das vacinas. Esse é o recurso básico elementar de qualquer fake news. Sim, artigos sérios também podem apontar esse ponto (e há vários no Diplô, que não coloco em suspeita), mas toda a construção da Ariane Denoyel é arquetípica de fake news, neste ponto ela apenas alterou a ordem do chamariz, tirando do início e colocando no final, para coroar toda a linha de raciocínio que construiu anteriormente - um exercício retórico bem reconhecível.

Não sou da área, logo, pode ser que a autora tenha razão em sua tese; entretanto, a estrutura do texto o desqualifica para um debate sério, dada toda sua construção falha, como assinalei acima. O pior, contudo, é esse reforço à forma neofascista de se relacionar com notícias (e com a ciência) e como, muitas vezes, acabamos por ser capturados por ela.

Estejamos atentos e vigilantes, sempre!


25 de maio de 2023


[1] LEIRNER, Piero. O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: Militares, Operações Psicológicas e Política em uma Perspectiva Etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

[2]DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[3]BERNARDO, João. Labirintos do fascismo (cinco volumes). São Paulo: Hedra, 2022.

[4]GORTE-DALMORO, D. “O Fascismo se enfia pelas frestas”. Jornal GGN, 03 de junho de 2017. https://bit.ly/3OeItUo

[5]Com isto não nego a existência da depressão ou outras doenças psiquiátricas, mas o quanto são tratados como casos clínicos necessário de intervenção farmacológica casos que definitivamente não o são, e poderiam ser resolvidos de modo mais efetivo e menos custoso de outras formas, com outras técnicas.

[6]Confesso que senti falta do Foro de São Paulo no artigo.

[7]“215.000 franceses protestam contra a vacinação obrigatória e o certificado covid-19 pela quinta semana seguida”. El País, 14 de agosto de 2021. https://bit.ly/434myUk

[8]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", grifo meu.

[9]“Bolsonaro se embaralha ao defender uso da hidroxicloroquina contra covid-19”. Poder 360, 16 de julho de 2020. https://bit.ly/3WdLp5F

[10]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança


PS: Texto escrito para a pedido da revista (após um e-mail mais sucinto), mas que não foi publicado.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A mídia já prepara o novo round da luta contra o SUS e os serviços públicos

Desde o início dos anos 1990 há uma pesada campanha de desqualificação de tudo o que é público - dos funcionários aos serviços - e de louvor a tudo o que é privado e segue a (pretensa e extremamente ilusória) eficiência do mercado - mineração, telefonia, cadeia de gás e petróleo, educação, saúde (parênteses: trinta anos de bombardeio ideológico cerrado e não conseguimos estabelecer uma contra-narrativa eficiente; sim, há o oligopólio da mídia, que cala toda voz dissonante aos seus interesses (e isso explica porquê um certo deputado tinha espaço, dez anos atrás, para falar atrocidades e babar antipetismo), mas há também falha na estratégia de comunicação das esquerdas. fecha parênteses). 

A pandemia do coronavírus trouxe uma série de complicações a esse discurso ideológico - repetido mesmo por quem vivencia seu negar na realidade. Primeiro, salientou a importância do SUS, a qualidade de seus serviços, apesar do subfinanciamento histórico e agravado desde o golpe de 2016 (ponto nunca tratado pela mídia corporativa). O Sistema Único de Saúde está longe da excelência de um hospital de elite, mas 98% da população está igualmente longe de um hospital desse nível. Junto com o SUS, reabilitou-se em alguma medida o funcionarismo público. Isso é preparar o discurso não só contra o ultraliberalismo defendido pelos donos do dinheiro e das empresas de mídia nas discussões eleitorais de 2022, como mesmo para o PT, que teve como uma de suas marcas certa recomposição dos serviços públicos (bem problemática, mas não é meu foco aqui).

Com a CPI do Covid e as denúncias contra a Prevent Senior, uma dose a mais de reforço no discurso da saúde pública e contra a rede privada. Neste caso, sigo a linha do Luis Nassif e não entro nessa comunhão nacional que pede a fogueira para a empresa: por mais que haja indícios de desvios graves de conduta por parte do plano de saúde, ainda não há provas robustas de que houve decisão deliberada de matar pacientes (por isso a necessidade de maiores investigações antes de um veredicto e da queima da bruxa em praça pública). Ao que tudo indica, uma das principais acusações que se tem contra a empresa é de ordem moral: atuar como uma empresa privada que visa o lucro (quem esperaria isso de uma empresa capitalista, não é? O fato de ela lucrar em cima da saúde de pessoas, e não com salsichas ou comunicações, é mero detalhe insignificante ao Mercado), e ter agido de maneira idêntica ao que fizeram suas concorrentes, inclusive na prescrição de cloroquina como tratamento, no início da pandemia - agora, por que a imprensa corporativa não fala dos outros planos de saúde, Nassif traz bons argumentos, e nenhum deles é fruto de preocupação com a saúde (ao menos não a dos pacientes) [https://bit.ly/3lScomZ].

No UOL, do grupo Folha, Thiago Herdy parece tentar fazer uma moral com os patrões ao soltar a matéria "Idosos morreram mais de covid na rede pública do que na rede privada de SP" [https://bit.ly/3pfbNh2]. O colunista ainda tem o mínimo de decência jornalística (cada vez mais rara na mídia corporativa) de pôr o lado dos críticos da sua análise simplista: está no fim do longo artigo, para os poucos que chegarem até lá - e sem que merecesse rever o temerário título da reportagem. 

E porque insisto em chamar de simplista a avaliação do repórter, por mais que os dados apontem, de fato, que na rede pública de SP houve mais óbitos que na rede particular? Pelo simples motivo que, por tudo o que se sabe do novo coronavírus até agora, há uma série de agravantes na infecção devido às condições prévias de saúde das pessoas, ao passo que o título da notícia atribui a diferença de letalidade estritamente à pretensa diferença no tratamento dos pacientes infectados - ou, em outras palavras, à ineficiência do serviço público, do SUS.

Se os dados indicam que há mais mortes na rede pública, que atende preferencialmente pessoas mais pobres e moradoras das periferias da cidade, será que as condições socioeconômicas dessas pessoas não afeta no sucesso ou insucesso do tratamento? Para Herdy, não. Covid é covid, e uma pessoa chegar aos sessenta anos sem saber que era diabética (e portanto, sem cuidar) em nada influencia suas chances de sucumbir ao novo coronavírus (exemplo esse de uma pessoa que conheço, catadora de recicláveis, que felizmente sobreviveu, depois de 27 dias de internação). Um idoso branco de classe média, com plano de saúde, com amplo acesso a informação e cuidados preventivos, dinheiro para uma dieta rica e academia, teria a mesma chance de uma pessoa pobre, que mora na periferia, que muito provavelmente em algum momento da vida já passou por insegurança alimentar e que não possui uma cultura de cuidados preventivos, com exames periódicos e visitas ao médico sem ser em casos graves, quando se apelava ao pronto socorro - provavelmente habituadas que estavam a ter que chegar às três da manhã para conseguir marcar uma consulta para dali seis meses no posto de saúde do bairro.

Há quem prefira ver a manchete de Herdy para o UOL/Folha apenas como deslize, falta de cuidado, desatenção. Com o histórico da mídia corporativa e a continuação de seu padrão de desinformação - principalmente quando está em jogo mercados altamente lucrativos -, eu não consigo ver na matéria que não o preparo para uma nova bateria de ataques contra o SUS e os serviços públicos, tentar destruir a imagem legitimamente construída durante a pandemia de que é no Estado, que serve o público, e nas empresas privadas, que visam o lucro, onde está realmente a preocupação com a saúde.

18 de outubro de 2021

domingo, 9 de maio de 2021

Sobre o sacrifício (no Brasil da extrema-direita)

E será que não vivemos num território sagrado, de deuses que nos exigem sacrifícios por sua permissão para ocuparmos uma terra que não nos pertence? O fogo que aparentemente consome Amazônia, Pantanal, Cerrado, o ar puro, a biodiversidade - o corpo indígena ou indigente -, talvez seja deus nos protegendo - nós, leigos, que não o notamos. "Entre os hindus não havia templo. Cada um podia escolher o lugar que quisesse para sacrificar, mas esse lugar devia estar consagrado mediante alguns ritos, dos quais o mais essencial era aquele que consistia em dispor os fogos. O fogo é matador de demônios, mas dizer isso ainda é pouco: ele é deus; é Agni em sua forma completa". A pergunta que talvez devêssemos nos pôr: quem são os demônios que esse fogo tenta expurgar? "Do mesmo modo, segundo certas lendas bíblicas o fogo do sacrifício não é outra coisa senão a própria divindade que devora a vítima ou, para dizer mais exatamente, o sinal da consagração que a inflama". Será a nossa consagração, nessa terra que alguém tornou santa antes que percebêssemos? E inebriados pelos deuses - nos sentindo o próprio deus na Terra -, nos perdemos em rituais que nem nós percebemos - talvez o tilintar de cobres santificados nos cegue para a crua realidade? "No México e em Rodes embriagava-se a vítima. Essa embriaguez era um sinal de possessão, o espírito divino invadindo já a vítima". Nos embrigamos para esquecer os demônios que nos habitam e atormentam, mesmo quando deveríamos estar alegres. Há ainda espaço para possessões? Somos os sacerdotes, a vítima ou o demônio? Seríamos os três e ainda o leigo que assiste a tudo sem entender? "A morte deixava atrás de si uma matéria sagrada, a qual servia para desdobrar os efeitos úteis do sacrifício". Não, não morremos ainda - nós, brancos, classe média, que vemos com ignorância, angústia e medo o horror de tudo isso -, nós não somos as vítimas. Nossa participação nesse sacrifício se dá de outra forma - ao menos por enquanto. "Em Atenas, o sacerdote do sacrifício das Bouphonia fugia jogando fora seu machado, todos os que haviam participado do sacrifício eram citados no Pritaneu e lançavam a culpa uns sobre os outros; por fim condenava-se o cutelo, que era lançado ao mar". Mas em Terras Brasilis, ocupada por europeus errantes ignorantes de sua origem, seu destino e seus pecados irremissíveis, diante da sacralidade bovina, optamos por carne preta, mais abundante e mais barata no mercado - alguns dizem ser humana, como se fosse da mesma matéria da de uma pessoa branca. Porém nessa performance tropical não há troca de acusações, não há exílio para os sacerdotes do sacrifício, pelo contrário: o louvor ao cutelo que transforma imediatamente em bandido todo preto que atinge, num ritual que Marcel Mauss e Henri Hubert não imaginavam. Mas algo estamos fazendo errado nesse sacrifício, que semana passada foi de 28, só em Jacarezinho: "essas precauções, propiciações e honorificações têm uma dupla finalidade. Primeiro, indicam o caráter sagrado da vítima; ao qualificá-la como coisa excelente, como propriedade dos deuses, faz-se que ela o seja". Não somos sequer bárbaros: em que momento teríamos perdido nossa humanidade? Somos incapazes do mais elementar um ritual de sacrifício, apenas o sangue pelo sangue. "Mas trata-se sobretudo de induzi-la a se deixar sacrificar pacificamente para o bem dos homens, a não se vingar depois de ter morrido". Nossos sacerdotes e seus cutelos de pólvora parecem ter se confundido com o próprio deus - um gênio maligno a lhes insuflar o erro, falsos profetas a espalhar a mentira como se fosse boa nova. "É que com a morte do animal liberava-se uma força ambígua, ou melhor, cega, perigosa pela simples razão de ser uma força. Era preciso pois limitá-la, dirigi-la e domá-la. Para isso é que serviam os ritos". Esquecemos os ritos que controlam as forças cegas que nos dominam enquanto cremos estar a dominá-las, dessacralizamos a morte e não reconhecemos a honorificações de quem foi sacrificado em vão. Sacerdotes do vazio (quais os efeitos úteis do nosso próprio sacrifício?), nosso devaneio de imortalidade de tempo em tempo, repentinamente, se desfaz e nos vemos banhados de sangue inocente, com nosso futuro consumido pelo fogo que nada purifica - ou será que somos nós os demônios? Nosso devir é explicitado em quatrocentas mil bocas que, como peixes tirados para fora da água, se afogaram em pleno ar.


09 de maio de 2021

* Trechos do livro Sobre o Sacrifício, de Marcel Mauss e Henri Hubert.

** Trilha sonora incidental: Arvo Pärt, Spiegel im Spiegel: 3.  (https://open.spotify.com/track/7v5raGYZhiVO90qGWj5Leo?si=d320c88f9fa4457b)

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Reabrir as escolas, sim; retomar as aulas presenciais, não

Há dez meses, em 28 de junho de 2020 [https://bit.ly/cG200728], eu comentava que a esquerda e o campo progressista tinham grande oportunidade para puxar um debate sobre educação, ensino e escola: o que é, como pode ser, para que serve, quem participa? Havíamos garantido o Fundeb, a pandemia e o distanciamento social se impunham (com todas as consequências e dificuldades para as escolas), e entrava um ministro da educação que agia nas sombras e deixava, portanto, caminho aberto para que outros atores pautassem a discussão sobre educação. Se houve tal discussão, não chegou até mim. 

O tema só voltou à minha bolha semana passada, com o projeto de lei que põe as aulas presenciais como atividade essencial. Esquerda e professores foram contra, mas para mídia, donos de faculdades e deputados, quem são os professores para falar de educação? Partindo em desvantagem, silenciados pela mídia (não esqueçamos o oligopólio midiático), a forma como foi feita o oposição mostra mais uma vez a fragilidade do discurso da esquerda, incapaz de um pensar mais amplo, para além dos termos postos pelo poder. E a seguir assim, dificilmente conseguirá se impôr nas suas razões, porque a lógica na qual se insere é favorável à simplificação e mercantilização da educação.

A aprovação dessa lei não é apenas de interesse imediato dos donos de escolas e faculdades privadas, mas também de muitos pais de alunos da educação básica. Ao se opôr sem conseguir aprofundar a discussão, sem atentar o suficiente a certas reivindicações legítimas que acabam indo ao encontro de Lemann e seus colegas de classe, a esquerda dá oportunidade para a direita atacá-la como alheia aos problemas do povo, e os professores como "típicos servidores públicos", preguiçosos, que não querem trabalhar - vide o dueto tão bem sincronizado do Ricardo Barros com a Tábata Amaral.

Tábata, como sempre, merece um tratamento à parte. Anda difícil a vida dos sugar babies dos ricaços da nação, que tentam se equilibrar entre o que mandam seus donos e o que reivindicam seus eleitores. Inicialmente Tábata votou a favor da urgência do projeto, fez vídeo se justificando, para uma semana depois votar contra (seus colegas, menos espalhafatosos, puderam manter a coerência com os donos). Esse vídeo merece uma análise [http://bit.ly/tabataeduessen]. A golden girl do partido clandestino dos capitalistas seguiu seu roteiro manjado: "argumentou" que veio da periferia, conhece na prática os problemas do povo humilde, é aliada da educação e por isso votou sim. Também não deixou de se fazer de frágil e vítima indefesa, postura à qual apela toda vez que é questionada pela sua submissão incondicional aos seus daddies: se disse cansada de lacração de redes sociais - só se esqueceu de falar da esquerda antiga e autoritária e da misoginia da qual seria vítima (talvez porque isso já não gere mais efeito). A pequena malandragem da deputada está em se dizer a favor da educação como atividade essencial, sendo que o projeto de lei fala de aula presencial como atividade essencial. Pior, seu argumento apela para as crianças, mas o projeto aprovado põe também como essencial as aulas presenciais nas faculdade, às quais assistem várias mães - mas ela não se mobilizou para que as faculdades sejam obrigadas a oferecer gratuitamente creche para os filhos de suas alunas e funcionárias. O verniz da moça é lindo, mas um leve olhar atento já mostra que ela é tão sincera quanto qualquer notícia que circula nas redes de WhatsApp bolsonaristas.

Aqui eu volto à esquerda - boa parte dela, não toda - que segue em seu cochilo, esperando a pauta vir do governo, ao invés de ela pautá-lo; e que tem tido dificuldades para sair dos conceitos postos pelo poder - inclusive os sindicatos, ainda imprescindíveis mas mambembes.

Assim como a Tábata Amaral, também eu acho que educação é atividade essencial. O ponto é se educação só acontece em sala de aula. Se for, está certa a sugar baby: que se abram as escolas e sobrevivam os mais sortudos (já que a Covid, pelo que parece, não leva em consideração se o organismo é forte ou não). Para dar um ar mais descontraídos, poderíamos chamar o "seu Sílvio" para animar as marchas macabras para as escolas, "sorrindo aquele riso franco e puro para um filme de terror". Agora, se educação também é feita fora da sala de aula, é de se questionar o que as concessões públicas de radiodifusão foram obrigadas a fazer por ela nessa pandemia (e antes dela também), o que tem sido feito pelos pais e responsáveis dessas crianças, para que tenham tempo e condições para educar seus filhos (redução da carga horária sem diminuição dos vencimentos, por exemplo), o que tem sido feito a favor da cultura, etc. 

Educação ser essencial não implica em escola ser essencial. Mas onde esteve o debate sobre o que é educação nesta pandemia, em que professores, pais e alunos brigavam com computadores e celulares na esperança de oferecer arremedos de aulas (sendo que praticamente todos os lares tem um televisor que sintoniza emissoras abertas)?

E tendo feita a distinção entre educação e escola, aí, sim, podemos discutir a reabertura das escolas, contudo numa chave completamente diferente da retomada das aulas - o que excluiria as universidades, e parte dos lucros dos daddies da Tábata -, até porque o estresse emocional de conviver com essa pandemia, que nos faz viver num eterno "dia da marmota", é grande tanto para professores quanto para alunos, e fica difícil um bom aproveitamento das aulas nessa situação (falo por experiência própria, ainda que minha graduação atual seja EaD). A manutenção de escolas abertas, num regime especial, deveria ser algo proposto pela esquerda e pelos professores desde o início, não só por uma questão de sensibilidade social, como para tentar ter nas rédeas a condução da discussão. Me explico.

Há necessidade de distanciamento social, mas não são todos que puderam fazer: alguns por serem de atividades essenciais, outros porque entramos nessa surreal discussão sobre economia ou vidas, e tiveram que seguir oferecendo oito horas de trabalho alienado ao lucro do patrão, mesmo correndo risco de vida, para não morrer de fome - porque o lucro não pode diminuir, digo, a economia não pode parar. Uma amiga que trabalha num grande hospital privado contou que tão pronto as escolas foram fechadas, os funcionários se queixaram que não teriam onde ou com quem deixar os filhos, logo, ficava difícil manter o ritmo habitual de trabalho; a solução veio praticamente de imediato: o hospital alugou uma escola próxima, contratou cuidadoras, e vida que segue normal (para os ricos e quem os atende). 

Essa deveria ter sido uma das funções assumidas pelas escolas - as públicas, ao menos: local onde trabalhadoras deixassem seus filhos com alguma segurança quando fosse imprescindível. Crianças não iriam para ter aula, iriam para que suas mães não tivessem que pagar para a vizinha do bairro apinhar quarenta crianças no quintal da sua casa, para que elas não ficassem na rua ou sem um adulto por perto. 

E como fazer isso com alguma segurança? Eis a discussão que o sindicato (e não a Tábata e seus amigos do "centrão") poderia conduzir: redução da jornada para um ou dois dias por semana por professor? Escolas com no máximo 20% dos alunos? Vacinação para seus profissionais como prioritários? EPIs de qualidade e bônus salarial? Contratação emergencial de quem fosse para cumprir essa função, sem obrigatoriedade aos professores? Não sei, os profissionais da área com certeza saberiam melhor como fazer - inclusive se isso seria realmente possível de ser efetivado. 

Contudo, a discussão não feita virou discurso entregue para a direita aprovar o projeto de lei como ela bem quis, e ainda ganhar argumentos contra a esquerda e contra os professores. Na atual conjuntura, com as esquerdas incapazes de articular e/ou emplacar uma resposta à altura da situação, parece que sua demonização só se reverterá se as atuais medidas se transformarem em tragédia.



23 de março de 2021

quarta-feira, 17 de março de 2021

Fase emergencial: é proibido, mas se quiser pode (até porque os governos não dão alternativas)

Foto de paralela da 25 de Março, no dia 17
Há um meme na internet, foto de uma placa que remete a bailão do interior, em que diz: "É proibido dançar agarrado. Mas se quiser pode". A fase emergencial na capital paulistana, com várias e rígidas restrições, parece esse aviso: é proibido, mas se quiser pode. No trajeto para o trabalho, oito da manhã, várias pessoas nas ruas, o habitual fluxo de ida para o trabalho, com as bancadas de café da manhã imantando trabalhadores de diversos setores. Na Sé, a prefeitura se esmera na limpeza da rua com um caminhão pipa - e azar de quem está dormindo sobre o asfalto ainda frio. Aparentemente, tudo normal. Na volta, meio da tarde, é que se percebe pequenas mudanças, entre elas o "se quiser, pode". 

Na 25 de Março, os vendedores estão nas ruas, anunciando cabelos, tênis, camisas de times, acessórios para celulares, armação para óculos e outros artigos do gênero (achei exótico um que oferecia "cigarro, remédio, eletrônico"). As lojas estão com as portas fechadas, mas basta bater nela que você está autorizado a comprar algum dos bens de primeira necessidade citados acima; há também a opção delivery pelo WhatsApp: você chama no número e eles abrem para sua você entrar escolher o que vai ser entregue após pagar a conta. Afinal, o que é a vida se não for para consumir, mesmo que produtos falsificados, numa vã esperança de que sua vida se pareça com as peças publicitárias que vendem uma felicidade irreal? 

Nas periferias - extremo leste e sul, que foi onde circulei -, algumas lojas maiores estão fechadas, mas o pequeno e médio comércio seguem normais. O motorista critica que pobre não respeito as leis, eu tento dar uma suavizada nessa moral simplória de certo e errado sem atentar para qualquer nuance: a situação é complicada: sem um auxílio emergencial que faça minimamente frente aos gastos habituais, os trabalhadores ou trabalham ou morrem de fome (esses R$ 250,00, conseguido às custas do salário futuro de médicos do SUS, professores, policiais e outros funcionários públicos, é um arremedo que soaria como escárnio não estivéssemos em situação calamitosa); donos de pequenos negócios - no fundo proletários iludidos que são proprietários de algo -  sem apoio governamental correm o risco iminente de falir; os grandes capitalistas e seus asseclas, esses se opõem a medidas restritivas por união carnal do capital com o sofrimento, que tem a morte, a escravidão e a miséria como seus frutos mais abundantes - nada de novo na essência, apenas explicitado sem verniz ideológico. 

O que notei de mudança grande diante do meu trajeto de duas semanas atrás foi o tanto de pessoas usando máscara: até parece que estamos numa pandemia!

Esse fato me chamou a atenção e me fez pensar muito sobre: de onde teriam as pessoas voltado a perceber que a pandemia está grave - ou melhor, que há uma pandemia -, se há mais de um mês essa bola é cantada por gente séria, com estados então beirando o colapso e Manaus dando um trailer do inferno que nos espera? Dez dias atrás, no centro de São Paulo, reparei que máscara tinha virado pulseira, que se punha no rosto na hora de entrar no transporte público, alguns ainda ostentavam o nariz pra fora, para mostrar que não são maricas ou medrosas; tanto que faz umas semanas que, tendo notado a esbórnia geral, tratei de me conformar a pagar caro em máscaras hospitalares PFF2, já que ficar em casa não me era permitido, e apesar de saudade enorme de uma sala de teatro (já autorizadas pelo protocolo do governo - pretensamente atento à ciência - de São Paulo), preferi me resguardar todo tempo no qual não sou obrigado a sair. Terá sido passar 2.500 mortes diárias, porque até 2.499 não surtia efeito? Não me parece o caso.

Sei que é fácil fazer previsão de fatos consumados, mas me parece que, para além do mau exemplo dado pelo prefeito e governador (o presidente é desnecessário dizer), houve uma falha grave na hora de estabelecer as fases de abertura dos setores da economia. Não que não se possa dizer que não havia como prever: a forma como foi estruturada essa abertura gradual poderia ter se utilizado como uma das referências as pesquisas sobre rotulagem de alimentos ultraprocessados: as versões coloridas e nuançadas não tem o mesmo efeito das que imprimem um triângulo de alerta para alimentos com alto teor de açúcar, sódio e gorduras (pouco importa se esse alto é excessivamente alto, muito alto ou apenas alto, se é alto é alto. O site O Joio e o Trigo tem acompanhado com ótimas reportagens o assunto: http://bit.ly/JoioRotulagem). O mesmo dá para imaginar que se passou com as fases de abertura da economia: ao propôr quatro fases antes da volta à normalidade, e ter em novembro admitido que se chegara à verde - a quarta e última com restrições -, o recado passado foi: relaxa que a coisa já se encaminhou pro final. As amigas da minha então companheira, por exemplo, cansadas do isolamento e se sentindo autorizadas pelas autoridades, aproveitaram novembro para ir para a praia: máscara no caminho, mas chegando lá, área aberta e fase verde, para quê seguir com ela? O sinal verde é sinal de avançar - a pandemia está ficando para trás.

Deixo de lado a questão do quão essa entrada na fase verde - ao menos sua duração - foi eleitoreira, o ponto é: numa pandemia, ainda sem vacina e sem tratamento efetivo para a doença, não se pode dar a impressão de que o pior já passou e é questão de tempo de tudo se normalizar. Não se tratava de manter restrições rígidas, pois há de fato um esgotamento da situação de confinamento (dos que puderam ficar isolados), mas ao se estabelecer as etapas de abertura, deviam ter pensado nos seus efeitos psicológicos também, e decidido que as duas últimas antes da normalidade só poderiam ser alcançadas com total segurança: nem que para dar essa impressão se aumentasse de quatro para seis fases restritivas antes da normalidade, e não se passasse da quarta, que seguiria os parâmetros tal qual é hoje (que me parecem bastante lassos); haveria nesse caso sempre um aviso implícito de: ainda temos duas etapas antes de chegar à normalidade, então aproveita um pouco, mas não relaxa demais. Tenho a impressão de que foi esse o recado dado pelas restrições severas impostas atualmente, e por mais que as pessoas sigam saindo, por obrigações laborais ou fadiga de confinamento, o desdém com as máscaras voltou a ser minoritário.

Queria que esta fosse uma reflexão impotente, uma vez que, graças às vacinas, a pandemia estaria caminhando para seu fim. Infelizmente, a inoperância do governo federal não nos autoriza vislumbrar fim próximo para esta tormenta. Que ao menos consigamos passar pelos próximos momentos mas cientes do que devemos fazer - os que tiverem oportunidade de seguir vivos.

17 de março de 2021

PS: vejo nas notícias que o governo do Estado, com um ano de atraso, toma algumas medidas para tentar evitar uma maior quebradeira de pequenas e médias empresas e minorar o sofrimento de trabalhadores. Não havia um economista sério na equipe de Doria Jr, capaz de prever isso logo no início da pandemia? Já o prefeito Bruno Covas, ao invés de decretar um lockdown, antecipa feriados. A ver como será este ano, mas em 2020 as pessoas levaram bem ao pé da letra essa antecipação de feriados: trataram de aproveitar o feriado: descer pra praia, ir para a parte não cercada do Ibirapuera, passear, curtir com a família. Novamente, ao recusar o lockdown, a mensagem que se passa é de que não é tão grave assim. São Paulo é governada por dois amadores incompetentes que se destacam apenas porque no governo federal temos um competente genocida que se regojiza com a morte.

sábado, 13 de março de 2021

Sábado de exílio

“O Brasil caminha para um colapso”, avisavam os especialistas semanas atrás. Seguimos a marcha como se fosse inexorável, não sei se por cega inércia ou se por néscia convicção de que era alarmismo paranóico, e o colapso veio - agora é ser testemunha ocular da tragédia, torcendo para não ser mais que isso. Repetiremos o Equador, com mortos jogados nas ruas, ou conseguiremos uma saída italiana, com caminhões frigoríficos a retirar dos hospitais corpos humanos como se saíssem do abatedouro? Um amigo que reside no Canadá me manda uma foto de três anos atrás e pergunta se está tudo bem. Pergunta errada, ainda mais depois de ver a foto de um outro tempo, quando a necropolítica não tomara a sociedade brasileira como um todo. Vou bem no que posso estar, respondo, sem saber até onde pode-se estar bem com o que vivemos e o que nos espera para os próximos dias (quarta feira percorrerei a periferia sul de São Paulo, a trabalho, isso me deixa mais apreensivo). Meu irmão me envia uma foto do que encontraram no porão da casa da minha mãe: um gambá a assaltar a ração dos gatos. Lembro de gambá aparecer no quintal de casa faz mais de vinte anos: não tinha uma perna. O prendemos numa caixa de sapatos e o levamos, eu e meu pai, para próximo da zona rural e longe da Tandi, nossa cachorra, que por sorte não conseguiu pegá-lo antes de nós. Faz mais de um ano que não encontro pessoalmente com minha mãe, uma angústia me bate. Quando será a vez dela ser vacinada? Ainda valerá para algo a vacina? Pela segunda vez na vida me arrependo não saber dirigir: nesse um ano poderia ter alugado um carro e ido visitá-la, como meu irmão tem feito (meu outro arrependimento por não ter carteira era quando pegava carona na faculdade com colegas bêbados, sendo eu o único sóbrio). Dormi com pouca coberta, acordei com dor de garganta; faço as contas: não, saí há menos de quatro dias, logo não tem como ser manifestação de sintoma de covid. A vida na sua permanência tênue, a saudade batendo forte, a distância. É sábado à noite, eu estou em casa, na rede, jogando bingo no celular (quando deveria estar assistindo às aulas da faculdade). No som, não sei porquê, coloquei músicas que escutava quando adolescente (e ainda ouço): Metallica, Oasis, Pato Fu, Sheryl Crow, Gonzagão, Toquinho e Vinícius. Vinte e cinco anos atrás, eu estaria em casa, no computador, entrando em sala de bate papo do mIrc. Hay dias que no sé lo que me pasa, eu abro meu Neruda e apago o sol. Quinze anos atrás, estaria em casa, lendo qualquer coisa, talvez escrevendo, talvez jogando algo - ouvindo Radiohead, Mogwai, Mombojó ou Goldfrapp. Come on rain down on me, from a great heigh. O que me pega não é estar em casa num sábado à noite, é a condição que me faz estar aqui. Covid lá fora, aqui dentro ainda a remoer o fim de relacionamento: a sala vazia de móveis, apta para dançar, me lembra que falta meu par dos embalos das madrugadas de 2020. Amigos me perguntaram do meu sumiço, expliquei: é meu processo de lidar com tudo isto. E tenho dificuldade, não com o fim do relacionamento, que isso a experiência nos ensina a não superdimensionar, a dificuldade é a saudade, a distância forçada dos amigos, da minha casa de Pato, o não poder flanar despreocupadamente pela cidade para desanuviar pensamentos e sentimentos - quem sabe encontrar al diablo mal parado en la esquina de mi barrio, ahí donde dobla el viento y se cruzan los atajos. Dez anos atrás eu estaria no “QGinho” da Misson, ouvindo Kiss FM, em companhia do Marcos e do Djalma - em conversas sobre crises existenciais e piadas ruins, ela insistindo que eu lembro o Sheldon Cooper enquanto toca Teatro dos Vampiros: então os meus amigos estavam procurando emprego, enquanto nestes dias tão estranhos fica poeira se escondendo pelos cantos, as perdas se acumulando na memória (eu ainda custo a acreditar que César se foi). O rádio segue tocando as músicas de antigamente: canções do exílio - eu que por quatro anos recitei Gonçalves Dias para ganhar nota em português, com a irmã Maria José (e não entendia esse José se ela era mulher). Na playlist faltaram La Renga, Molotov e os rocks en castellano para completar minha trilha sonora adolescente. Faltaram os rocks bielorrussos em som alto que meu pai ouvia. Algumas vezes nesse último ano mandei mensagens acusando saudade a vários amigos. Responderam que também sentem. E a conversa encerra sem avançar muito, nessa saudade abafada que não consegue pôr em dias as não novidades dos dias sempre iguais nem trocar obviedades sobre o horror homeopático que nos corrói feito lepra confundida com uma psoríase. Mesmo a amiga que vinha encontrando com alguma frequência - cada duas semanas -, também ela está em seus momentos de se fechar, e há dois meses não fomos além de algumas poucas linhas. Não é falta do que dizer: talvez seja o cansaço, o fracasso, mesmo quando temos novidades. As notícias da minha mãe sobre o gambá e os gatos da sua casa fazem eu me sentir no exílio, um anti London London. Guile e Lilbertad permitem não me sentir tão sozinho. Lá fora faz uma noite bonita, famílias choram em velórios rápidos, pessoas tomadas pela loucura coletiva recusam toda dor que não seja a das suas alucinações como mimimi, o presidente debocha - não é coveiro. Noto que envelheci rapidamente estes últimos dias, tenho medo, sinto saudades, e tudo o que me resta é a sensação de impotência.

14 de março de 2021


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Covid um ano depois: estamos melhores enquanto seres humanos e sociedade?

Cá estamos, os sobreviventes, um ano de coronavírus no Brasil, quase um ano de isolamento social. Me ponho a pensar o ponto onde nos encontramos. 250 mil mortos depois, o que é o tal "novo normal" que foi apregoado - para além da normalização desse (mais esse) horror transformado em fria estatística banal? Boa parte do Brasil conta esses mortos como conta os mortos por arma de fogo anualmente, como conta os milhões de africanos escravizados e assassinados: números.

Estamos sempre uns passos atrás da maioria da humanidade, discutindo e disputando questões que já se tornaram ponto pacífico: se é uma doença de fato ou uma invenção da mídia, se é uma gripezinha ou um vírus mais sério, se cloroquina salva ou é charlatanismo, se isolamento resolve algo, se vacina funciona, se precisa mesmo usar máscara, se existe segunda onda. O nível do debate rebaixado a esse ponto esconde que o que foi de fato rebaixado é a vida humana: todos vão morrer, e daí? Se de tiro da PM, de coronavírus, fome ou enfarto, e daí? Segue o baile: aqui na Terra estão jogando vartibol, tem muito culto, muito choro e BBB.

Outro ponto é que ao aceitar o debate em termos constrangedoramente simplistas, na ânsia de afirmar o óbvio e negar os negacionistas, a esquerda nega a si própria e recusa a política: ao pôr a ciência acima de qualquer questionamento e de qualquer disputa, deusa suprema cuja palavra deveria ser a lei inquestionável, se esquece que a ciência serve para balizar as ações políticas, que envolvem uma miríade de aspectos que extrapolam mesmo os métodos mais rigorosos. A necessidade de isolamento social é óbvia desde o início, com qual amplitude e como fazê-lo, contudo, é um campo legítimo de disputa, pois não se trata de mera aplicação de uma fórmula: é negociar com vários atores sociais, pesar e sopesar aspectos secundários à doença, mas relevantes à sociedade: de sobrevivência material de toda a sociedade à moradia precária de boa parte dela: não, não é uma questão simples; diferentemente de qual medicamento ministrar, não se limita a conhecimento técnico, mas ambas foram tratadas da mesma forma - e essa afirmação da ciência como detentora da palavra final sobre a organização social abre espaço para o mesmo diante da “ciência econômica”, e se ela diz que privatização e estado policial (também chamado de mínimo) salvam...

Há um ano eu e meus colegas de fração de classe (classe média, branca, universitária, de esquerda e/ou progressista) nos trancávamos em casa, temerosos como se vivêssemos em Gaza, enxergando uma precariedade do ser onde havia apenas uma restrição à nossa liberdade pequeno burguesa - desde sempre limitada, mas que poucos percebem e menos ainda se incomodam.

Na bolha dessa fração, a qual estou (muito bem) inserido, nos "stories" e postagens das redes sociais despontavam dicas de bem viver: lembrar de tomar sol, de fazer exercícios, de fazer yoga, de meditar, de comer frutas, de comprar plantas. Platitudes proferidas como se fossem novidades inéditas por uma classe cuja vida parece não ir além de um fluxograma de trabalho alienado (não percebido), compras, viagens clichês e pequenas tormentas sentimentais. Parecia cuidado, mas eram apenas demonstrações narcísicas.

Como ficou claro em texto publicado pela editora n-1, na sua série (em geral muito boa) Pandemia Crítica, "Um tiro em mim: quando ficar em casa é também estar em perigo", um texto muito bem escrito, em estilo de filme de ação, mas que escancara toda a futilidade dessa classe média que adora encher a boca para falar mal de seus congêneres bolsonaristas ou novistas: a autora (anônima) que precisa se reafirmar narcisicamente, individualmente e até um tanto infantilmente na sua prepotência, da sua tarefa sublime e sem fim que é a produção de conhecimento científico (porque a faxineira, o entregador, o motorista de ônibus, que seguiram seu trabalho de peão, não parecem capazes de produzir conhecimento, provavelmente nem devem saber o que é ciência): “elxs atiraram em alguém que estava estudando e pensando o mundo de forma crítica para reinventar o lugar das coisas”. Eis uma frase gritante pela precariedade da percepção da autora, pela superestimação do eu e seus afetos limitados e limitadores, alguém que vai reinventar o lugar das coisas, como deus ou, como diria Freud, “sua majestade, o bebê”. Pensa o mundo de forma crítica, mas foge de pensar a si própria da mesma maneira: daí que o lugar das coisas reinventado promete ser mais do mesmo, entre a tecnocracia, a hierarquia e a alienação. Foi quando notei: a vida segue normal, só se aceleram os processos de mudança do trabalho em alguns setores. E de vez em quando acontece um tiro de chumbinho num apartamento classe média, um simulacro de baixa periculosidade de um policial invadindo uma comunidade e atirando com arma letal a queima roupa.

Houve os que anunciavam um mundo mais solidário e humano que estava sendo gestado na pandemia, o despertar de outra consciência - afinal, diziam, o vírus igualou todos. Até então eu não negava a possibilidade (ainda que negasse essa igualdade), porém não conseguia ver onde estaria esse mundo novo, enquanto eu, em teletrabalho (home office, na língua descolada da classe), terceirizava a morte ao entregador do aplicativo (isso até ter que começar com trabalho presencial, no início de maio).

Não estou com isso igualando negacionistas e reacionários a quem aceita a ciência e tenta ter uma visão progressista, mas apontando que o ethos de classe, se a crítica não é feita com afinco e persistência, acaba por prevalecer.

Nossa resistência e disposição em seguir os protocolos de distanciamento social diante de uma terra onde o salve-se quem puder suicida domina foram sendo minadas - e o atos de muitos deixaram de corresponder às palavras. É o cansaço pelo isolamento drástico (e, vemos agora, desproporcional, ou ao menos pessimamente coordenado, que impingiu custos emocionais extras), pelas notícias da ilha brasiliense, que segue passando as boiadas; pela eleição da desesperança, pela naturalização da morte, pela denegação da realidade. Boa parte dos que se precaviam no início, ao invés de tentar passos cuidadosos de afrouxamento, aderiu à esbórnia - usando máscara tampando o nariz, quando dá para usar, se enganando que isso é seguir os protocolos e é suficiente.

A vida volta ao normal (isso foi notável nos dez quilômetros que percorro à pé na volta do trabalho, desde maio, o tráfego lentamente adensando, os moradores de rua, apesar de seguirem muitos e em número maior, voltando a fazer figuração diante da multidão a ocupar o centro para as compras), negacionistas e não-negacionistas se misturam no metrô, no trajeto para o trabalho ou para as compras, nas praias lotadas, nas viagens, no bar com os amigos (e inimigos), no shopping, nos restaurantes, nas academias (inclusive as do empresário bolsonarista), e agora, teatro. E tudo devidamente registrado e divulgado nas redes sociais, para ajudar os recalcitrantes, que seguem o esquema casa-trabalho-mercado-casa (com encontros mensais ou quinzenais a um ou outro amigo que se sabe também cuidadoso), a se sentirem otários, talvez uma tentativa inconsciente de sabotar a fibra desses idiotas da cientificidade. 

Mas resistimos quixotescamente, em parte por cuidado com nossa saúde, com nossa vida, em parte por preocupação com a pólis, com nossos concidadãos, com você que me lê, “hipócrita leitor, meu igual, meu irmão” - porque o que a pandemia evidenciou é que “ninguém aqui é são”.

Um ano, 250 mil mortes depois, contrariamente ao que muitos dos meus amigos imaginavam e vislumbravam, não saímos melhores dessa experiência - nem piores. Os que sobrevivemos (ao menos os sobreviventes sem grandes traumas) saímos o que sempre fomos - e tem quem prefira não se olhar no espelho.


26 de fevereiro de 2021


terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Bruno Covas e seu filho no Maracanã: a mensagem da imagem

"À mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecer honesta". A importância da aparência na cultura ocidental vem de longa data - do imperador romano Julio Cesar, ao menos -, mas sob a sociedade do espetáculo essa velha máxima foi superada pela de que "à mulher de César não é preciso ser honesta, basta parecer honesta". Em muitos casos, nem parecer, apenas aparecer como honesto no momento oportuno - Temer, Doria Jr, Bolsonaro que o digam, despontaram como se porto de Santos, rachadinhas e Embratur nunca tivessem existido.

Não entrei na comunhão nacional gerada pelo início da vacinação nestes Tristes Trópicos, em 17 de janeiro: sabendo dos entraves gerais e das inoperâncias nacionais, não vislumbro ser vacinado antes de dezembro e ainda temo receber uma vacina que já pouco protege, por conta das mutações do vírus (ainda que isso, por enquanto, não tenha sido posto no horizonte pelos cientistas, até onde me consta). Minha mãe, prioritária, quem sabe consiga ser vacinada meio logo e possa vir me visitar ainda este ano, depois de mais de um ano nos vendo apenas por videochamada. 

Entendo o sopro de alento que o início da vacinação trouxe a muitos, mas não deixou de me causar assombro como esse sopro veio desprovido de qualquer construção crítica mais bem fundamentada. “Doria Jr fez um golaço”, comentavam, como se aparecer ao lado da primeira pessoa vacinada redimisse o governador de todos seus atos contra a saúde pública, a pesquisa científica, a universidade pública - isso já em plena pandemia, já quando ele se dizia defensor da ciência - e a produção de remédios - e não falo aqui de troca, quando prefeito, de isenções fiscais por "doação" remédios quase vencidos cuja boa parte seria incinerado a um custo elevado, mas do sucateamento da Furp e do Instituto Butantã. Vale lembrar que este só não virou peça histórica graças à combinação pandemia e negacionismo da ciência por Bolsonaro, no qual Doria Jr viu oportunidade de se apresentar como a extrema-direita racional (Adorno e Horkheimer mostram como o nazismo era racional) e “razoável” (se privatizar e tirar direitos de trabalhadores, as elites brasileiras acham qualquer coisa razoável). Todo seu histórico de destruição virou fumaça diante da vacina: Doria Jr, “o político da ciência e da sensatez”. Só não se tornou também “o homem da tolerância política” porque Dilma Rousseff fez algum alarde ao avisar que não aceitava seu convite para furar a fila - e com esse ato, Dilma reforça a frase do primeiro parágrafo, ao lembrar que ela e Lula, dois dos políticos mais probos da história do país, são taxados como os maiores corruptos, simplesmente porque não conseguiram vencer a máquina midiática e aparecer como honestos: quem controla a produção de imagens e narrativas detém incomparável poder, incompatível com a democracia, mesmo a espetacular.

Assim como Doria Jr, Bruno Covas não precisa temer a mídia. Como seu padrinho político, o prefeito parece esquecer que a mulher de César no século XXI não precisa ser honesta, basta parecer honesta; contudo, à diferença dele, não possui qualquer jogo de cintura, quem dirá a lábia canastrona de vendedor de enciclopédia no interior e a desfaçatez do gigolô que se diz arrependido e promete fidelidade.

Junto com Doria Jr, Covas repetiu o mantra do "fique em casa". Como Doria Jr, assim que pode, saiu passear: mas ao invés de ir pra Miami (onde poderia achar qualquer álibi inconsistente: que foi em jatinho particular com a esposa para ficarem enfurnados e isolados na sua casa florida, sei lá, pra não ter o risco de alguma garota constrangê-los cobrando uma conta antiga), o prefeito foi assistir ao jogo da final da Libertadores no Maracanã, com mais alguns convidados VIPs - ele, que estava em tratamento contra o câncer até quinze dias antes, ou seja grupo de extrema vulnerabilidade, que mais deveria se resguardar.

A final da Libertadores ter público em plena pandemia já é uma afronta, um reescancarar daquilo que as “modernas arenas” que substituíram os estádios já escancaram há anos: futebol é cada vez mais um espetáculo para poucos usufruírem ao vivo - só para os VIPs. Neste caso, só para os VIPs dos VIPs. Para um político que tem tentando trabalhar uma imagem pública de progressista desde que assumiu a Disney, digo, a prefeitura de São Paulo, um deslize desses é grave - até porque não foi só uma notícia de jornal, mas uma foto que rodou a internet, e na sociedade imagética, uma imagem pode ser avassaladora (Roseana Sarney sabe bem). A explicação para seu ato, dado em seu Instagram, só piora a situação. A questão pode ser abordada pelo aspecto político e sociológico.

Politicamente é um movimento que causa estranhamento. Bruno Covas trabalhava com afinco sua imagem de um “velho PSDB”, um PSDB de direita democrática e progressista, retomando projetos êxitosos da gestão Haddad; esse passeio com o filho, junto com as ações que tem tomado desde que ganhou a reeleição, vão na contramão de todo esse trabalho. Ao que tudo indica, a eleição serviu para que Covas e o partido notassem que ele é um quadro eleitoralmente frágil, quase inviável: se largar a prefeitura para disputar o estado, perde votos dos paulistanos sem conseguir compensar no interior (como foi o caso de Serra e Doria Jr). Daí a impressão de ter entregue a prefeitura toda para o grupo de Doria Jr (representado pelo vice Ricardo Nunes?) desde já, talvez com o plano de tentar imitar seu padrinho e ver se consegue superar as próprias fraquezas; assim, todos os movimentos de respeito aos direitos humanos - que, por mais que tímidos, marcaram uma diferença significativa frente a gestão desumana de Doria Jr - terem sido jogados fora: do cercamento de praças (o caso noticiado é da praça no bairro nobre, mas na 25 de Março, por exemplo, a Ragueb Chohfi já foi cercada há tempos) às pedras antimendigos, passando pela intensificação no confisco dos pertences dos moradores de rua (só esperando pelas operações da GCM na (mal) dita cracolândia). Se for esse o caso, entende-se o mandar às favas a construção da sua imagem pública e ir curtir a final da Libertadores com o filho.

Aqui entra o ponto sociológico de minha análise: ao ser pego no Maracanã, a resposta de Covas explicita sua adequação à sociabilidade perversa brasileira, recentemente assumida como virtude por políticos como Bolsonaro, Moro ou Doria Jr: o privilégio do verdadeiro líder de estar acima do bem e do mal - e das leis. Ser aspirante a um mini-Luís-XIV-versão-século-XXI seria a demonstração cabal do seu valor, como era outrora o despotismo do senhor de engenho perante suas posses - terras, mulheres, escravos, estado. O problema de Covas é que ainda que formado nessa sociabilidade, ele não é um perverso: ele não consegue jogar flores no chão, falar "e daí, não sou coveiro", grasnar qualquer atrocidade; por isso seu passo atrás, seu tentar se justificar com sua excepcionalidade: mereceria estar no Maracanã em meio a uma pandemia, 230 mil mortos, crise na saúde, na economia, no estado, porque "é um direito" seu "usufruir de um pequeno prazer da vida" depois de passar pelo tratamento de um câncer - contrariamente ao que sempre diz aos seus comandados. Só ele quer desfrutar de um pequeno prazer da vida? Só ele ficou doente durante a pandemia? Filhos com saudades de seus pais idosos que moram longe, se tem responsabilidade (e um emprego), não tem esse direito. Pais e mães cujos filhos estão entre os que tiveram a vida levada pelo coronavírus - só no estado de São Paulo os mortos já lotam o Itaquerão e começam a encher um segundo estádio -, não podem mais ter esse pequeno prazer. Mas hipócrita é quem segue as recomendações que o governador do estado e o prefeito da cidade repetem.

Pelo posto que ocupa, Bruno Covas deveria ser o primeiro a dar o exemplo. E ele dá: se o exemplo é positivo ou negativo, é outra história. Prefeitos acusados de furar fila da vacina podem, inclusive, usar essa questão com o álibi: estão dando o exemplo da importância da vacina, já que o chefe do executivo nacional faz campanha contrária (isso não vale para parentes, mulheres e amigos do prefeito que furam a fila, aí o exemplo volta a ser de apropriação privada do público). Ao dizer que seu caso é especial e merece ser excluído das restrições que todos deveriam estar submetidos, simplesmente “porquessim”, qualquer um pode alegar o mesmo - como já é feito, mas agora há uma legitimidade a mais: o prefeito da maior cidade do país, que repete diariamente “fique em casa” e “cuide-se” também assume que qualquer motivo serve para não ficar em casa nem se cuidar devidamente. "Pequenos prazeres" justificariam a negligência com o vírus - nem precisa ser "grandes prazeres".

Uma atitude dessas de um político, de um homem público, é um deslegitimar a política e recusar a coletividade em nome de um hedonismo mesquinho. É um passo a mais no nosso caminhar para o abismo da convivência social, onde tem voz uma ideologia darwinista-social-ultra-individualista que apregoa a sociedade como feita de mônadas e recusa a óbvia interdependência de todos na construção do bem comum (do mal comum também); é um reforço ao que temos de pior da nossa sociabilidade forjada na escravatura e no estupro, um individualismo tacanho e incapaz de enxergar o próprio bem no dia de amanhã. Bruno Covas tem a consciência tranquila.

09 de fevereiro de 2021