sábado, 28 de abril de 2018

Quando um amigo passa o limite e assume ser fascista

Nunca havia feito isso antes - excluir pessoas do meu Fakebook por motivos políticos. Sou alguém que acredita - insiste em acreditar - no diálogo, no bom uso da razão. Não, não acho que sou o dono da razão, mas se não sei o que é o certo - sequer acredito em uma certeza única -, não hesito em ver muitas posições como claramente equivocadas - o fascismo e a desumanização do outro são algumas delas. Enquanto muitos já excluíam de seu Fakebook batedores de panelas nos inícios do golpe, eu via em meus amigos patos não má-fé, mas limitações de percepção, crítica e cognição, visto estarem demais imersos na linguagem espetacular, sob bombardeio intenso de uma mídia goebbelsiana: era difícil dialogar, mas eu  cria haver possibilidade, assim que surgisse uma brecha - poderia chamá-los para um uso razoável da razão.
Quem busca a razão para justificar injustiça e arbítrio mostra não fazer bom uso da razão. Quem comemora a desumanização do outro atesta sua incapacidade para a vida em sociedade. Não é uma situação definitiva - mas é limite, enquanto não for superada.
A condenação de Lula, faz vinte dias, foi a consagração do fascismo nestes Tristes Trópicos: a inversão do ônus da prova, a falsificação de provas, leis e ritos formais alterados conforme interesses pessoais de acusadores e juiz-inquisidor. Isso é julgamento nazifascista, stalinista - justiça é só um nome pomposo para a institucionalização do arbítrio dos mesquinhos. É o estado de exceção que vale para pobres pretos e periféricos democratizado a quem não lambe os pés dos poderosos - ainda que não os afronte. Alguém que acompanhou, mesmo que a distância, toda essa farsa nazifascista sul-brasileira, não tem como justificar o arbítrio ocorrido.  Não por acaso, muitos dos amigos que esfuziantemente bateram panelas estão silentes, quando não se dizem desiludidos com todas as instituições - executivo, legislativo e judiciário: notaram que até dentro de seu preconceito há um limite para o ódio. Ainda que tarde, perceberam que foram enganados, feitos de patos, ao endossar o coro dos manipulados pela mídia - agora calam, antes que se vejam novamente no ridículo de achar que pensam por conta própria enquanto repetem bordões vindos de cima. É a brecha para chamá-los à crítica, antes que a memória curta os induza novamente a agir como massa de manobra.
Comemorar uma prisão de um senhor de setenta anos (pois é, o vigor e a energia de Lula não raro faz com que esqueçamos que ele não tem quarenta, cinquenta anos) é gozar com a perversão institucionalizada - assim como os que gozaram com Maluf preso (agora que não tem poder algum). Comemorar uma prisão é uma aberração que a sociedade brasileira naturalizou, mesmo em suas fileiras progressistas: numa sociedade que já adentrou a modernidade, a prisão de alguém pode ser um alívio, nunca uma alegria. Preso deveria estar quem apresenta real perigo à sociedade - como quem fala em "escolher um que a gente mata depois" ou que é capaz de comprar agentes públicos que o investigam, por exemplo -, e não qualquer um, preso por um desejo de vingança que beira os primórdios da socialização humana - degenerado por todo o aparato tecnológico, que permite mil outras alternativas de reparação de danos e reintegração de desviantes (nem estou aqui questionando quem impõe o que é desvio o que é normal), assim como formas mais cruéis de tortura.
Quando vi em minha linha do tempo pessoas comemorando a prisão de Lula, ou tentando racionalizar uma justificativa para seu ódio tecnicamente equipado - ainda chamando os que bramem contra a injustiça como ressentidos -, me dei conta que haviam ali atravessado a linha da convivência humana, e adentravam decidida e declaradamente no fascismo: não vislumbro possibilidade de diálogo com quem não é capaz de identificar no outro um humano, um igual. E não há mais justificativa para manter sua posição - salvo severas limitações cognitivas, o que não é o caso - que não o prazer com a dor alheia, o desejo de aniquilação de tudo o que lhe perturba a pretensa harmonia de sua vida estreita e pusilânime. Não são ignorantes, não são burros, não são ingênuos: são pessoas de mau caráter, mesmo. Fascistas. Assassinos esperando sua oportunidade de serem o próximo a despachar o inimigo no trem para Auschwitz. Não por acaso hoje, dia 28, entro para ver se não fui precipitado em meu julgamento e vejo essas pessoas indignadas com cercas derrubadas pelo MST, exigindo justiça, e fazendo silêncio com os atentados contra o acampamento Marisa Letícia - se a Globo permitir, logo lançam um movimento "white fences matters". Confirmo que minha decisão foi correta: quem se regozija com a injustiça e (pretensa) humilhação de uma pessoa é capaz de sentir o mesmo prazer com qualquer outra - desde que não seja ela própria ou alguém muito próximo. Inclusive, não duvido que quanto maior a dor, maior o prazer - por que não, então, a morte, lenta, quem sabe sob tortura? Dispenso "amigos" que irão comemorar eventual condenação minha para a câmara de gás - incapaz que serei de provar minha inocência diante das convicções de meus algozes.

28 de abril de 2018

PS: já há muito tempo, por ter tido contato mais próximo, tomei decisão de romper com familiares nazifascistas - sabia que ali as possibilidades de bom uso da razão eram reduzidas. Acho que família não é justificativa para aceitar esse tipo de pensamento e ação (falo também em ação visto que um primo meu já integrou (não sei se ainda integra) gangues neonazistas em Curitiba). Mais curioso que esses parentes são os que mais falam em boas energias, amor: são professores de yoga, psicólogos exotéricos - tudo isso para no fim do dia achar que há pessoas e há não-pessoas, a despeito de serem todos homo sapiens.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Um jovem com uma caixa de engraxate

Numa cantina quase chegando em casa, vejo um rapaz - dezesseis, dezoito anos - com uma caixa de engraxate. Há tempos não via cena assim - parece que no século XXI essa caixa com graxas havia sido substituída por "caixas" com livros e canetas. Me veio uma lembrança, uma sensação de infância, fim dos anos 1980, início dos anos 1990, um tempo de inocência - para mim. Um época inocente quando crianças de dez anos saíam pelas ruas da cidade oferecendo para engraxar os sapatos da classe média, e se dizia que isso contribuía para seu crescimento, para a formação do caráter - sacrificar a infância e os estudos e aprender em troca a estar sempre de joelhos aos que mandam. Talvez me soe inocente aquela época porque eu era inocente - criança classe média numa pequena cidade do sertão paranaense. Mas quando lembro de coisas de meus pais, ou dos adultos da época, essa inocência persiste: andar de carro sem cinto, ou na caçamba da picape, Xuxa e suas paquitas supersexualizadas entretendo as manhãs infantis, entrecortadas por propagandas que induziam as crianças a fazer chantagem com os pais para conseguir consumir o que eles queriam (eles os anunciantes), os humorísticos família que reforçavam esteteotipos e preconceitos aos cidadãos de bem, estimulavam a rir da desgraça alheia e reafirmavam sua inferioridade congênita de negros, nordestinos, mulheres e gays; e as novelas que educavam todos a como se comportarem como "ricos", paradigma para uma classe média inculta e tosca, adestrada pela tevê para seguir assim, bruta e esteita, mas se achando cosmopolita e chique, distante da ralé brasileira. Tempos de uma inocência onde cada um sabia seu lugar e os do topo da pirâmide - ainda escorados na pedagogia de chumbo - nos ensinavam que isso era harmonia social e democracia racial. Um tempo inocente que muitos hoje lamentam e tentar forçar o tempo a andar para trás, sem politicamente correto, sem ideologia de gênero, sem essa coisa de homem com homem e mulher com mulher, sem isso de justiça se meter em briga de casal, sem negros usando jaleco e estetoscópio, sem doméstica cobrando salário - afinal, é praticamente da família, come e dorme na casa, não precisa ganhar mais que uma gorjeta para os dias de folga, se tiver uma boa patroa que lhe dê dia de folga. O rapaz com a caixa de engraxate me fez imaginar qual terá sido o futuro de tantas crianças que vi em minha infância com esse mesmo instrumento de trabalho e formação cidadã. Ouso afirmar que dificilmente um deles se tornou alguém na vida - ao contrário das crianças que quando contrariadas enchiam o peito para falar "sabe quem é meu pai?" -, provavelmente os adultos que hoje são devem ser taxados de "vagabundos", "bandidos", "marginais" pelos cidadãos de bem que viam na caixa de engraxate um benfazer àquelas crianças, seu despertar para o futuro - enquanto seus filhos estudavam nas melhores escolas particulares da cidade e passavam as tardes a brincar despreocupadamente do futuro. Talvez hoje esses adultos só encontrem uma resposta para seu desamparo em religiões que prometem uma vida como aquela das novelas, ao custo do dízimo e de seguirem o script: passarem desde já a imitar os ricos da tevê, chamando de vagabundos, bandidos e marginais seus vizinhos, e sonhando dos bons tempos que eram os anos 1980. As crianças com caixa de engraxate da minha infância - início da redemocratização - viviam em um tempo inocente, de uma inocência prenha de um futuro roto - cujas tentativas de remendo (já neste século) foram tímidas diante das fissuras gestadas.

12 de abril de 2018


PS: um pouco depois cruzo com três policiais militares, que conversam tranquilamente na noite aprazível. Pego um pedaço da conversa, um deles escarnece, enquanto os outros dois gargalham: "...vou denunciar o genocídio da população negra...". Não sei, não entendi: não vejo graça em assassinatos, talvez por não ser militar.

terça-feira, 3 de abril de 2018

O PT quer uma vitória emblemática em São Paulo - poderia se contentar apenas com a vitória

Não acompanhei os bastidores da escolha do candidato do PT ao governo de São Paulo (isso, claro, se houver de fato eleições em outubro - ainda por cima livres e democráticas), e admito ter sido com surpresa que vi o nome de Luiz Marinho, ex-prefeito de São Bernardo do Campo - como expectador distante, imaginava Haddad como nome natural do partido, até por toda a exposição que o ex-prefeito paulistano possui. 
Ao ler a entrevista de Marinho para a Carta Capital [http://bit.ly/2IpYIJk], a impressão que se tem é que a análise de conjuntura do partido, ainda que em boa medida correta, é exagerada e ingenuamente otimista - o que reflete na ausência de Haddad das prévias e a escolha de Marinho. O PT, diga-se de passagem, é exímio em traçar estratégias eleitorais ruins - para ficar num contraexemplo: pelo que se diz na história oficial, o "Lulinha paz e amor" que sacramentou a consagração do partido, em 2002, foi um atitude do candidato mais que do partido.
Com o campo hegemônico do estado rachado, com duas candidaturas de peso - Márcio França, com a máquina estadual e Doria Jr, com dinheiro, muito dinheiro, a máquina federal e um pouco mais de dinheiro -, aumentam as chances de derrota do condomínio tucano que governa São Paulo há vinte e quatro anos. A análise explicitada por Marinho esquece que a eleição é em dois turnos, e com ao menos três nomes fortes - incluído aqui o do PT -, dificilmente alguém consegue levar no primeiro turno, e não é de se esperar apoio de PSDB ou PSB ao candidato petista num eventual segundo turno. Aí falta conhecer melhor o eleitorado do estado, de modo a montar uma candidatura mais eficiente em "ludibriá-lo" (porque o eleitor paulista demonstra uma capacidade analítica na qual não há muito espaço para convencimento pelo discurso racional: ele tem um fraco bem forte pelo engodo). Uma vitória de Marinho seria de uma simbologia gigantesca, não apenas pela vitória no bunker tucano, como por se tratar de alguém da base do partido, um ex-sindicalista (por mais que o sindicalismo, fora as greves de 79/80, e em especial após a "rosa neoliberal", não seja nada muito animador), isso numa terra em que consumidores são chamados de "patrão" ou "empresário" - numa versão pós-moderna do "meu rei", gíria pretensamente baiana, com mais cara de novela da Globo.
O discurso de Marinho, conforme a entrevista, é um tanto solto, abstrato: questões de administração, de prefeitos a passar o pires, tentativas de "desconstruir" o discurso tucano - que é o discurso afinado com a grande mídia -, apontamentos ao que não foi feito nessas mais de duas décadas de Tucanistão - mais do que se fez. Tem sua experiência na prefeitura como atestado de conhecimento do manejo da máquina executiva, e por ter sido ministro da Previdência de Lula, pode tentar federalizar a eleição, num ponto muito fraco do governo golpista - e Doria Jr tem muitas declarações públicas de amor a Temer. Não se trata de pôr em questão sua competência, mas sua simbologia em um estado muito conservador: Marinho é do PT - o "partido do mal", conforme mídia e seguidores do pato (mesmo muitos dos arrependidos) -, é ex-sindicalista, e não há grandes feitos a apresentar como ministro da previdência, que não que não fez o que Temer tentou fazer. Marinho precisa encorpar seu discurso, além de tentar suavizar sua imagem para melhor deglutição desse eleitorado - não é tarefa fácil.
Haddad tem um perfil eleitoral muito mais palatável: descolado, bonitão (isso é besteira, mas influencia, e não se aprendeu com Collor), educado - professor universitário -, "aparenta ser de boa família, tem essa pinta de pai em propaganda do Itaú Personnalité" - como descreveu certa feita Antonio Prata [http://bit.ly/2Gzg3mE]. Marinho tem aquele jeitão de funcionário da "adm", um cara ok, que não desperta maiores suspiros - talvez seja excelente de palanque (virtual e real) e consiga reverter isso sem maiores dificuldades, mas começa atrás. Ademais, Haddad teria a vantagem de se contrapor diretamente a Doria Jr, comparando ações e intervenções enquanto prefeitos da capital: iria além de acusações e mostras do que Doria Jr não fez, apresentando ao mesmo tempo suas realizações - ainda sou da tese que se Haddad tivesse trocado um hospital por mais publicidade teria ganho fácil em 2016; apesar que acho que era estratégia eleitoral não fazer muita propaganda durante a gestão e aparecer como uma onda que leva tudo na campanha, mas foi traído pela mudança nas regras eleitorais implementadas para 2016, que cortou pela metade o tempo de campanha (de 90 para 45 dias).
Se Marinho talvez seja capaz de reanimar a velha militância petista, me parece que o foco, pela situação do país assim como pelo contexto eleitoral do estado, pede uma estratégia de vitória pelo caminho mais curto. Não se trata de vencer a qualquer custo, mas Haddad é visto com alguém do meio classe média, quase uma "pessoa de bem" infiltrada no PT - como foi Marta um dia e Suplicy ainda é -, o tipo de pessoa que não precisa se justificar tanto para ganhar simpatia dos conservadores: há o risco de termos que ouvir um "Rota na rua" novamente de um candidato petista - como Genoíno em 2002 [http://bit.ly/2Gur1cU] -, e isso é tudo o que não precisamos neste momento de golpe e violência cada vez mais aberta e "democrática" - mas pode ser vital para conseguir a vitória.
Como disse, a opção por Marinho é uma escolha que implica num enorme simbolismo em caso vitória - é por conta desse simbolismo que o preço para sua vitória é mais alto. É um candidato viável, com boas chances de vitória - o massacre midiático do PT está tendo efeito rebote e hoje é óbvio que o partido recupera um pouco da sua imagem, enquanto os demais derretem como gelo sob o sol de verão do Saara -, mas não é o nome mais forte do partido. Ao assumir o risco, o PT pode estar perdendo sua melhor oportunidade desde 2002 - e São Paulo perde mais ainda.

03 de abril de 2018