quinta-feira, 20 de junho de 2002

Asneiras Futebol Clube

Tenho acompanhado com certa distância esta copa. A seleção canarinho não me empolga, o Galvão Bueno me dá azia, os horário não ajudam, a Argentina está fora, e estou torcendo por Coréia e Senegal na final. Se assisto pouco, menos ainda converso sobre o assunto; mas é o suficiente para escutar uma infinidade de asneiras. Deve ser o espírito da copa e do seu locutor oficial, o amigo Galvão (que costuma fazer comentários de extrema importância, de detalhes que passariam em branco, como “36 minutos!!, vamos para 37!!!!!!!!). infelizmente as besteiras que tenho escutado não são obras da ignorância, como as dos três patetas da Globo, antes são de preconceito. Comento três que mais me chamaram a atenção, proferidas todas no Bandejão.

A primeira. Conversavam dois camaradas, ao meu lado, sobre a copa que estava prestes a começar. Concordavam que a copa estava errada: onde já se viu deixar de fora grandes seleções, como a Holanda, e ter um monte de seleção da Ásia e da África, que não jogavam nada, só faziam número? Ou seja, para que dar chances aos pequenos, aos mais fracos? Eles provavelmente não deveriam ter esse raciocínio apenas para o futebol. Imagino que agora que teremos pelo menos uma seleção que só faz número entre os quatro primeiros da copa, eles nem lembre do que disseram, e que na próxima copa repetirão a mesma sentença.

A segunda é já tradicional. Comentei sobre a “vitória” gloriosa do Brasil contra a Turquia (vale lembrar, pênalti que existiu não marcado contra o Brasil, e pênalti que não houve marcado a favor do Brasil), que ganhar assim era uma vergonha, que não deveria nem ser comemorada. A resposta, óbvia, foi a de que faz parte do jogo e azar dos turcos se eles não tinham a malandragem dos brasileiros. Moral da história: o que importa não é competir, é ganhar, e não importa como. Quase certeza que se a injustiça fosse contra o Brasil, essas mesmas pessoas estariam proferindo inflamados discursos, promovendo abaixo-assinados pela moralização das arbitragens no futebol, uso de VT, ponto eletrônico e o que mais fosse para evitar novos erros do juiz. Como foi a “nosso” (eu não me incluo nesse nosso) favor, tudo bem; melhor até.

A terceira pérola é uma síntese das duas primeiras. Ainda falando do primeiro jogo do Brasil, eu disse que tinha torcido para o Brasil sequer ir à copa. Impossível, me responderam, a Fifa iria fazer quantas repescagens fossem necessárias, iria arranjar um jeito de pôr o Brasil na copa. Preferi não prosseguir nesse assunto, não adiantaria dizer que a Fifa não é como a CBF ou como o Brasil, que França e Inglaterra ficaram da copa de 94 e a Fifa não fez um jogo extra, não pôs nenhuma a mais. Como brasileiro é caridoso!: para os grandes, que tem condições de conseguir o que querem, mais uma chance (principalmente se eu for o grande), aos pequenos, azar deles, cresçam e apareçam.

Campinas, 20 de junho de 2002

sábado, 15 de junho de 2002

O MST revive Canudos

Assisti, dia 12 de junho, à uma palestra sobre mídia e a criminalização dos movimentos sociais, que fazia parte da programação do II Amigos do MST. Uma grande aula por parte dos palestrantes: o jornalista da Caros Amigos, José Arbex Jr., e o chefe de departamento de jornalismo da PUC-SP, cujo apenas o primeiro nome – Hamilton – foi anunciado.
Quando na vez de Arbex falar, ele comentou de um movimento social do início do século XX. No sertão nordestino, marcado pelo latifúndio, pelo coronelismo, pela fome, surgiu uma "comunidade alternativa". Não havia abundância – mas tampouco fome – nessa comunidade formada por miseráveis, excluídos que ali nutriam mais que o corpo, nutriam a esperança de um porvir melhor. Sem qualquer apoio oficial essa comunidade cresceu; tinha até sistema de irrigação quando foi arrasada por tropas do governo – o mesmo governo que ignorava essa pessoas até antes de se organizarem. A imprensa da época tratava o assunto com certa parcialidade: aquela comunidade era formada por criminosos, perturbadores da ordem (baderneiros, diria-se hoje), cujo líder era um lunático monarquista. Tratava-se, é óbvio, de canudos e seu líder, Antônio Conselheiro, que o governo e a elite satanizaram na época, mas que a história, graças e Euclides da Cunha, reservou uma imagem mais justa.
No final do mesmo século XX, num país marcado pelo latifúndio, pelo coronelismo, pela violência, pela fome, surge um movimento organizado que quer a reforma agrária e um país mais justo. Porém, como esse movimento não se localiza em apenas um local, como Canudos, o governo e as elites não conseguiram matar a todos, por mais que tenham tentado – vide o massacre de Eldorado dos Carajás, com seus 19 mortos (muitos à queima-roupa), os relatos de sobreviventes sendo obrigados a comer o cérebro de seus companheiros e as mais de 120 absolvições. Por sua vez, a mídia faz bem feito a sua parte: a quadrilha MST, formada por criminosos, baderneiros, perturbadores da ordem, quem já não ouviu falar? E da prisão de um de seus líderes, José Rainha, por porte ilegal de arma? Talvez não se tenha conhecimento da prisão de outros 25 líderes, só no último mês, por formação de quadrilha e perturbação à ordem pública. Denúncias de desvio de dinheiro por parte do MST sempre aparecem, e do prêmio de educação que o movimento ganhou da UNESCO, alguém viu algo a respeito na mídia? E das duas "universidades" do MST, que forma, entre outros, técnicos em administração fora dos padrões capitalistas?
Quando visitei um acampamento, cerca de um mês atrás, conversei com alguns acampados. Depois de uma vida de dificuldades, morando sempre nos subúrbios, mudando sempre de cidade, em busca de emprego, não conseguindo, muitas vezes, arranjar um novo emprego; aquelas pessoas, muitos já com mais de 50 anos, contavam dos seus planos de como iriam "ajudar o país a crescer". E não se tratavam de uma vaga esperança, de um sonho distante, mas de planos que logo começariam a serem postos em prática. Aquelas pessoas sentiam-se – quem sabe pela primeira vez na vida – humanos. A Globo, a Veja, a Folha, não publicam entrevistas assim, por que será?
Arbex disse que as elites não gostavam do MST porque ele dava voz e vez a pessoas marginalizadas. Eu vou além. O MST dá a elas auto-estima, confiança em si, o sentimento de coletividade, de companheirismo, dá a elas uma dose de independência do governo.
Todos os que chegaram à universidade estudaram sobre Canudos nas aulas de história do segundo grau, mas poucos conseguem notar esse Canudos que se repete nos dias de hoje. Porque Canudos foi ensinado como coisa do passado, numa aula que ensina apenas fatos do passado. A história ensinada sem consciência tem pouco ou nenhum valor. O MST revive Canudos.

Campinas, 15 de junho de 2002