segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

Prioridades

Estava eu zapeando os canais pela tv quando me detive em um debate sobre os problemas da saúde pública. A discussão se deteve em dois eixos principais: a má formação de certos médicos, que precisam fazer cursos de aprimoramento mas não fazem, e a má distribuição dos médicos pelo país. Assim foi a discussão por vários minutos, até o âncora chamar uma nova notícia. Não houve em todo esse debate qualquer menção sobre verbas para a saúde, superávit primário, ou qualquer coisa do gênero.
Estranhou? Eu também. Claro que não se tratava de um debate sobre a saúde pública brasileira, e sim sobre a de Portugal um dos primos pobres da União Européia , mas mesmo assim, o fato de não se entrar em questão de se haverá verbas ou não, e onde serão gastas essas verbas caso sejam liberadas surpreende um brasileiro típico, acostumado com a tecnocracia fiscalista e liberal dos últimos dez anos. Não deixei de ficar surpreendido ao lembrar que a vida política de um país pode não se reduzir a fechar o caixa para pagar os juros no fim do ano ou agradar os mercados, podendo, inclusive, tratar do bem-estar da população. Tudo uma questão de prioridades. Em Portugal, o bem-estar da população; no Brasil, o bem-estar dos especuladores.
No dia seguinte, enquanto esperava minha namorada ser consultada, chegou um homem que precisava fazer alguns exames pelo INSS. A secretária, muito ocupada em lixar a unha, não se deu ao trabalho de olhar para o homem, para informá-lo que o INSS estava em greve e o médico não estava atendendo, que quando a greve terminasse ele deveria ir novamente ao INSS marcar uma nova data para os exames. Enquanto isso o governo Lula lamenta não ter podido cortar uma parcela da verba da saúde, tal como tentara, para agradar o maltrapido mercado. Prioridades.

Campinas, 15 de dezembro de 2003

quinta-feira, 20 de novembro de 2003

O esporte é o ópio do povo

Assistindo a um noticiário na globo, vejo a entrevista de um rapaz. Diz o repórter “em 93 fulano (não me lembro o nome do infeliz) podia andar de cabeça erguida, hoje...” e é o entrevistado quem completa “hoje está uma tristeza”. Falta apenas ele começar a chorar.

Mas o que houve para que esse rapaz tenha mudado tanto em nove anos? Será um desempregado, lembrando-se do tempo em que tinha um emprego? Será um empregado, lembrando-se do tempo em que tinha um salário que comprava mais que uma cesta básica? Nada disso, era um palmeirense que se envergonhava do time atual e recordava as glórias passadas.

Esta semana, ao caminhar pela faculdade, quatro de cada cinco conversas falavam do rebaixamento do time alviverde. Já quase não se lembravam de quem é o tal de Lula, e muito provavelmente não sabem das últimas (intermináveis) turbulências no Oriente Médio e na Venezuela.

Concordo com aqueles que dizem que não devemos nos restringir apenas a assuntos sérios, que precisamos de algumas distrações. Mas daí para o que vemos nos esportes – no caso brasileiro, mais especificamente, o futebol – a distância é grande.

Os esportes têm hoje cada vez menos a função de passatempo (se é que algumas vez tiveram), e são tomados como assunto sério. As discussões sobre futebol são para a “grande massa” da mesma importância e gravidade que as discussões acerca de política e economia são para a dita “elite”. Os estádios que (creio) poderiam ser uma forma de catarse para muitos, ao se reunirem a uma multidão para gritar e pular, não cumpre esse papel, pois o futebol não é uma simples diversão, que terminará quando acabar o jogo. O fato de haver jornais e revistas especializados mostra que o futebol é assunto sério, não apenas para os que deles vivem, como também para os torcedores. Nos grandes jornais do país, o espaço dado ao caderno esportes costuma ser, pelo menos, do mesmo tamanho que o dado às artes (uma outra forma de distração, muito mais construtiva que o esporte). Dificilmente vemos a foto principal da capa de um jornal dada a um escritor ou a um quadro, mas ao Palmeiras, ao Barrichello, à seleção, isso não é incomum.

O filósofo francês Robert Redeker, numa entrevista à revista Carta Capital (edição 153), disse que o esporte é pior do que a religião. Esta, bem ou mal, ao menos criou toda uma sociedade; e o primeiro, o que fez?

Não podemos ficar presos a assuntos sérios, mas também não podemos fugir deles. Transformar o que deveria ser diversão em assunto importante é como querer tratar política e economia como assuntos menores: é preciso haver uma certa distinção entre o que é sério e o que é divertimento, para não se fechar apenas em um assunto. Se o futebol é tratado como assunto sério, passa a servir tanto para bate-papo de botequim, como discussões sérias; e a política, que horas entra? E a discussão sobre os rumos do país? Sobre o valor da cesta básica ser igual a um salário mínimo?

Talvez Marx esteja errado: o esporte é o ópio do povo.

Campinas, 20 de novembro de 2002