quarta-feira, 14 de janeiro de 2004

Os doutores anencéfalos

Acho que nem vale a pena comparar aqui o Brasil com a Holanda, afinal,trata-se de países muito diferentes, com a diferença primordial que na Holanda pensa-se, enquanto no Brasil pasta-se ou, na melhor das hipóteses, rumina-se. E não falo do povão, das pessoas sem dentes e sem escola, que esperam todos os dias acordar com a notícia da volta de São Sebastião. Falo dos doutores letrados, desses de anel no dedo, que usam ternos importados e falam a língua da metrópole.
Não, não estou me queixando aqui do ministro da economia e dos economistas em geral, analfabetos na própria língua mãe e que não podem ser chamados de míopes porque não têm visão (vale ressaltar que há economistas que não só enxergam como pensam, mas esses estão longe do poder e da mídia). Falo da turma do direito, mesmo.
Um advogado (cujo nome não foi divulgado) entrou no Superior (ó!) Tribunal de Justiça pedindo para que um aborto de um feto anecéfalo (sem cérebro) não se realize. O ministro Feliz Fishcer concedeu a liminar impedindo o aborto. Desculpa dada pelo advogado, e aceita pelo ministro, é de que o feto estaria na iminência de sofrer uma ameaça de morte, o que contraria aquele livrinho de piada que pra ralé tem poder de lei chamado Constituição, que tem como um dos pilares a defesa do direito à vida. Claro
que não é o advogado que tem que agüentar na coluna, por nove meses, o peso de um monte de carne prestes a ser jogada fora, não muito depois de ser parida.
A questão do aborto é polêmica, sem dúvida. No Brasil, nem isso: a questão sequer é abordada. Talvez isso se explique pela religião. Na Holanda, como em outros países da Europa, a religião predominante é a protestante, que não quer dizer muita coisa vide exemplo de Bush Jr , mas que tem no momento da sua fundação todo um movimento de contestação. Isso talvez ajude a
circular um pouco as idéias. O contrário do Brasil, em que predomina a igreja católica e ascende as seitas neo-pentecostais, que são pra lá de reacionárias (vale lembrar que pregam abstinência sexual e são contra camisinha e outros anti-conceptivos), não sobra muito espaço para se refletir e discutir. Se dependesse das igrejas, não sobraria espaço algum pra se pensar! Como muitos seguem à risca as diretrizes da igreja (pelo menos no aspecto pensar), resulta que a gente é obrigado a conviver com absurdos como essa liminar.
Fosse um feto sadio e normal, até dá pra entender o porquê de vozes se levantarem contra o aborto. Afinal segundo a carcomida e decrépita ética cristã trata-se de uma vida, e o aborto é um assassinato (para um debate mais aprofundado sobre aborto, e a ética cristã em geral recomendo o livro Vida Éticado filósofo australiano Peter Singer, editora Ediouro. Sobre o aborto também vale a música do Gabriel O Pensador, Pátria que me pariudo disco Quebra-Cabeça). Agora, pra que gestar durante nove meses um feto que nascerá sem cérebro e não tardará muito para morrer (se é que dá pra chamar de vida o que ela terá)? Matar um feto que não viverá é um atentado à vida? E todo o desgaste e custo e inconvenientes que terá a progenitora, isso não é um atentado à sua vida? Vai ter de parar com suas atividades rotineiras, perder nove meses da vida, por causa de um monte de carne que vai direto pro lixo? A decisão do STJ é simplesmente revoltante. Falta um mínimo de bom senso. Estudam tanto pra continuarem tapados como uma porta! E o movimento feminista do Brasil, onde está?

Pato Branco, 14 de janeiro de 2004

sexta-feira, 9 de janeiro de 2004

Uma mão lava a outra

Falei na última crônica nas verbas distribuídas generosamente pela imprensa nacional. As revistas semanais não ficariam de fora, claro. Entende-se bem o porquê da revista Veja ter ficado com o bolo maior (R$ 1,2 milhão), afinal trata-se da maior revista semanal do país. Mas na segunda posição veio a revista Carta Capital, com seus modestos 55 mil exemplares (a revista Época tem algo em torno de 500 mil leitores). Nada surpreendente. Carta Capital, que Mino Carta, seu editor-chefe, se gaba de imparcialidade, independência e espírito crítico, apoiou Lula já no primeiro turno da eleição presidencial. E como diz aquela canção do Arnaldo Antunes: uma mão lava a outra, lava uma. O apoio que Mino deu à Lula não foi algo tão desinteressado assim, preocupado unicamente na melhor opção para o país.

No quesito independência, Carta Capital, ao que parece, não vende reportagens como Veja, mas tem esquece de certas coisas que deixa a gente pasmo.
Exemplo primeiro: já faz um par de anos Carta Capital fez uma reportagem sobre transgenia, mas transgenia em animais, em plantas, nada. Uma das principais propagandas daquela edição era da Monsanto. Talvez seja só coincidência, mas...
Exemplo segundo: a revista tem como um de seus sócios o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, sócio também de uma universidade particular, a Facamp (que se utiliza de parte da estrutura da Unicamp, diga-se de passagem). Educação superior no Brasil é um tema que recebe uma atenção considerável da revista, mas detalhe: nem uma linha sobre universidade públicas. Estão ameaçando cortar a luz da UFRJ por falta de pagamento? Vão fechar o PS do HC da Unicamp? Instalação de cartão de débito de banco privado como cartão de registro acadêmico nas universidades paulistas? Bem, isso Carta Capital
desconhece. Agora inadimplência de alunos, aumento na qualidade das universidade particulares, boas universidades a preços acessíveis, tudo isso você encontra nas páginas da revista.
Semana passada saiu na Folha de São Paulo uma reportagem sobre o recorde de aposentadorias na Unicamp, vamos ver se desta fez Carta Capital fala alguma coisa.

Pato Branco, 09 de janeiro de 2004