quarta-feira, 5 de maio de 2004

Lulla lá

A cada palavra Lula se mostra cada vez mais patético. Patético porque não reconhece o próprio tamanho. Nem ele nem a sua corte de bajuladores. Do grande estadista que um empresário disse que Lula era mostrou-se um péssimo administrador, sem nenhuma vocação para cargo executivo.
Há aqueles que o chamam de traidor. Mas isso não é consenso nem inteiramente correto. Para aqueles que votaram nele na esperança de mudança, sem dúvida Lula é um traidor. Mas duvido que o próprio e sua corte se vejam assim; afinal, ninguém muda o discurso de maneira tão abrupta se já não pensava isso antes. O governo Lula só pode estar de acordo com o que ele pensava já há algum tempo, se ele não havia explicitado essas suas “novas” posições, é porque não dariam voto.
Lula não segue apenas a linha do seu antecessor direto, FHC; segue também a linha de Collor. É certo que FHC não diferia muito de Collor, mas Lula mostra-se menos sutil ao seguir os passos deste. Me refiro agora mais ao plano do discurso, menos do da ação política e econômica. Lembro de quando eu estava na quinta ou sexta série do ensino fundamental. O Collor já tinha sido deposto, mas ainda assim havia uma professora que defendia o seu governo e lamentava a sua queda: Collor passava uma imagem positiva de Brasil no exterior, coisa que o Itamar deixava a desejar. Lula segue essa linha, vender uma imagem positiva do país. Se encontra com líderes internacionais, questiona um que outro penduricalho das relações mundiais, consegue algumas vezes modificações simbólicas e inexpressivas, e não mexe no pontos capitais da política e da economia externa, por exemplo: a dívida externa dos países subdesenvolvidos, o direito de autodeterminação dos povos, a volatilidade do capital especulativo, o estado paralelo formado por corporações transnacionais em países pobres (o caso do subsídio ao algodão estadunidense foi a primeira medida concreta nesse sentido que o governo alcançou).
Mas é no discurso que Lula segue entusiasticamente Collor. O pensador marxista franco-helênico Nicos Poulantzas identifica na política capitalista algumas cisões dentro das classes burguesas e operárias. Na primeira, que detêm o poder, temos a classe hegemônica (que é a fração da burguesia que realmente controla o Estado) e a que se encontra fora do poder. Na classe operária temos os operários sindicalizados e a massa desorganizada. No Brasil atual, a classe hegemônica é a burguesia financeira. Na luta contra essa forma de conduzir a economia, a burguesia alijada do poder e os proletários organizados se unem nas suas reivindicações (CUT e Fiesp defendendo redução dos juros, por exemplo). Para contrapor essa força e se manter no poder, a classe hegemônica, através do seu representante máximo, se utiliza dos proletários desorganizados (denominados por Poulantzas como ‘classe apoio’) para jogá-los contra os organizados. É o descamisado contra o marajá do Collor, o cortador de cana contra o professor universitário do Lula. Trata-se de uma tática utilizada a partir da queda do muro de Berlim. Antes levantava-se a situação marginal dessa grande massa e prometia a ela os benefícios assegurados pela constituição: promessa de carteira assinada, aposentadoria, férias remuneradas, etc. Collor, FHC e Lula ao contrário, levantam a situação marginal da massa e acusam os trabalhadores que possuem direitos de privilegiados. Jogam a classe apoio contra o proletário organizado. E esse discurso tem por objetivo acabar com os benefícios adquiridos pela classe trabalhado e não a inclusão dos excluídos neles. A última pérola de Lula nesse sentido foi dizer que quem paga imposto no Brasil é privilegiado. Ora, privilégio, segundo o dicionário, é a “vantagem que se concede a alguém com exclusão de outrem e contra o direito comum”, e não há na constituição qualquer artigo que diga que somente x% dos brasileiros podem receber um salário suficiente para pagar imposto, para dizer que se trata de um privilégio, responsável pela exclusão do resto da população. Agora os novos privilegiados são os aposentados que ganham um salário mínimo sem trabalhar. O governo já estuda projeto que o reajuste do mínimo seja somente para os salários e não para as aposentadorias.
Diante disso alguma surpresa com o aumento ridículo do salário mínimo? No máximo a surpresa é de que o governo Lula tem conseguido a proeza de reajustar o mínimo abaixo dos índices pífios de FHC (4,7% contra 1,2% do atual). Esse descaso com o populacho (o mesmo que Lula usa para atacar os ‘privilegiados’) é ainda mais revoltante quando se sabe que o governo economizou, só no mês de março, 10,3 bilhões de reais, o suficiente para cobrir por doze meses um aumento de R$ 40,00 no salário mínimo (de R$ 240,00 para R$ 280,00) e ainda sobraria 5,2 bilhões para serem gastos em obras que o país tanto necessita.
Na Argentina, onde o governo não é muito melhor que o nosso, Kirchner deveria ter economizado 1,1 bilhão de pesos mas economizou 3,9, mas pelo menos parte desse dinheiro será gasto no aumento de salários e aposentadorias.
Diante disso, vamos correr pra onde?

Campinas, 05 de maio de 2004

domingo, 25 de abril de 2004

A política do umbigo

Falei na crônica passada de meu cepticismo quanto à política passada, exponho agora o ponto principal dele.
O objetivo primeiro do poder é o próprio poder. Já dizia Maquiavel quinhentos anos atrás, e se eu não enxergava antes era por ingenuidade. Basta uma passada de olho em qualquer lugar em que há poder para ver que, salvo raríssimas exceções, quem ocupa algum cargo de poder o faz antes de mais nada porque faz bem pro ego. Presidente, deputado, prefeito, reitor, movimento estudantil, é difícil fugir à regra. Interesse coletivo? Isso é questão secundária, que o detentor do poder irá tratar se o tempo que ele gasta para vislumbrar consigo mesmo e com o poder que detem não ocupar o dia todo.
O Lula é um “tipo ideal” de pessoa que não consegue olhar a coletividade para a qual deveria trabalhar porque não consegue tirar os olhos da sua imagem com a faixa presidencial refletida no espelho. Não se trata de nenhuma novidade, visto que seu antecessor também pode ser considerado um tipo ideal. Isso ajuda a explicar, inclusive, porque não existe diferença entre um e outro. O pessoal que orbita ao redor do poder, tanto neste quanto no governo passado, já deixou explícito que o objetivo deles era o poder (alguém lembra dos 20 anos de poder do Sérgio Motta?). E as brigas entre governo e oposição não passam de dor de cotovelo, porque uns tem pote de doce na mão e os outros não.
Mas não é preciso ir tão alto quanto a presidência da república para verificar como o poder vicia. Vejamos o caso do reitor da Unicamp. O movimento estudantil na universidade pode até fazer barulho mas tem uma força muito pequena nos órgãos deliberativos em que possui representantes (como o conselho universitário), mas mesmo assim o reitor tenta enquadrar totalmente os estudantes à sua vontade. Primeiro tentou assumir o DCE (Diretório Central dos Estudantes), lançando a chapa “Bons tempos júnior” (a sua campanha para reitor era a “Bons tempos”). Fracassado, ele ignora as eleições realizadas pelos alunos para a escolha dos representantes discentes e promove uma eleição subordinada à reitoria, com regras explícitas para enfraquecer a organização dos estudantes (como o voto por pessoa e não por chapa, a impossibilidade de se eleger mais do que dois alunos por instituto, entre outras). Isso para se tornar o rei da Unicamp.
Mas não precisa ser poder oficial, como o do presidente da república ou do reitor da universidade. Um caso bem emblemático aconteceu no DCE da Unicamp, destituído há dez dias. Nessa novela três grupos: os dissidentes da gestão, os remanescentes dela (o seu “núcleo duro”, grupo que está há três anos a frente do DCE) e os seus opositores. A crise começou com uma auditoria pedida pelos opositores, pois o DCE não havia prestado conta nos dois últimos anos. Essas suspeitas foram o suficiente para que os opositores fizessem o julgamento do desvio de verbas da gestão atual e passada. Nesse rebuliço, o grupo dissidente, acusando o “núcleo duro” de autoritarismo, pulou fora do barco, criando uma baita crise. No fim, acabou que as suspeitas dos opositores não foram comprovadas, o núcleo duro era realmente bastante autoritário, mas os dissidentes em compensação quase não participaram das atividades do DCE enquanto membros deste. Veio a assembléia dos estudantes, na pauta a destituição da gestão. Os opositores querendo a qualquer custo tirar os remanescentes da gestão, e os remanescentes, mesmo já sem legitimidade, querendo a qualquer custo permanecer com a máquina. O clima foi de combate e ganhou a oposição: a gestão foi destituída e foram chamadas eleições para trinta dias. Quando questionei um dos opositores – ainda antes da crise dos dissidentes – porque não se tentava uma conciliação entre os Centros Acadêmicos e o DCE (o que não significava abdicar da auditoria das contas, mas simplesmente não fazer um julgamento antes dela terminar), a resposta dada por ele foi: “Marx já dizia: política é conflito”. Esqueceu-se meu interlocutor, de que para Marx política é conflito ENTRE as classes e não DENTRO dela. Mas é difícil encontrar bom senso e discernimento num lugar onde a satisfação do ego fala em primeiro lugar, como no movimento estudantil. Encerrando a história: na assembléia destituinte, tanto os remanescentes da gestão quanto os seus opositores pensaram unicamente em ganhar a briga (uma solução bem ponderada seria eleições para trinta dias sem destituição da gestão). Deram uma banana pro movimento estudantil na Unicamp, que pelo menos por dois meses não conseguirá se articular na defesa dos seus interesses. Ótimo para o reitor Brito, que já tentava tratorar os estudantes com as suas eleições discentes do dia 28, e agora não encontra sequer resistência, sem contar que caminho livre ele tem também para instalar o Cartão Universitário (vulgo CU), com parceria com um banco privado. Mas numa briga de egos, como é a política, quando é que se vai ter tempo pra pensar no conjunto?

Campinas, 25 de abril de 2004.