domingo, 6 de maio de 2007

Especialistas e experiências

Caminhamos para uma sociedade em que a experiência, para ser aceita, precisa ser quantificável. Qualquer experiência que não possa ser contabilizada em títulos, artigos, carimbos ou renda é descartada não como secundária, mas como desprezível, praticamente inexistente. Ao se desprezar esse tipo de experiência, despreza-se junto toda a experiência, toda vivência quotidiana – até o momento em que ela renda frutos visívei$. A experiência de olhar, do olhar, por exemplo, soa absurda na vida atual. Ainda que vivamos em um mundo cujo olhar seja a percepção dominante, o que temos, no máximo, é o adestramento desse sentido pelo cinema, tv e outros meio – algo muito distinto de viver uma experiência visual.
O absurdo a que nos leva essa questão da experiência pode ser vista nas prateleiras de uma livraria. Foi-se o tempo em que auto-ajuda se restringia ao sucesso e à sua conseqüência natural, a felicidade – algo que, em tese, somente alguns alcançam e por isso nós, reles mortais, precisaríamos conhecer a sua experiência. O que pensar quando nos deparamos com um livro sobre beijo? Que experiência pode haver no ato além da vivida? E como é possível transmitir “experiências” como essa? Ou então um livro sobre a importância das crianças brincarem? Não que a recomendação de deixá-las brincar seja absurda em nossa sociedade do sucesso, mas será preciso um livro – escrito por um PhD, óbvio – para segui-la? Por que não escutar nossas avós, nossos pais? Por que a necessidade de um especialista até para termos segurança quanto ao óbvio?
Isto levanta uma outra questão: na sociedade do sucesso, deve-se evitar a todo custo qualquer erro, qualquer fracasso. E qual não é a chance de errar ao se arriscar? “Quem não arrisca não petisca”, diz o manjado ditado. No fundo, o que a auto-ajuda se pretende é ensinar como “petiscar sem arriscar”, ou “como se arriscar com segurança”. O que resulta em uma legião de covardes, que não querem arriscar, experimentar, criar, e muito menos assumir grandes responsabilidades. Falta tempo aos pais para poderem lidar mais intensivamente com seus filhos? Mas se vivemos em um mundo que despreza esse tipo de experiência quotidiana, de que adiantaria uma maior vivência nesse sentido? As pessoas antes acreditam e aceitam de pronto o que fala o especialista no programa da Ana Maria Braga, e preferem olhar cheios de receios a educação que receberam de seus pais – ainda que a admitam acertada na sua maioria –, porque um especialista estudou a fundo o assunto, e o que fala, fala com propriedade, enquanto nós, reles mortais... que podemos saber além do que vivenciamos? Além do mais, se algo sair errado, a culpa não é dos pais, que se esforçaram para dar o melhor – o mais avançado – para seus filhos em matéria de educação.
Claro que essa questão da experiência tem várias outras perspectivas, que tornam o problema bem mais complexo. Mas há um porém inicial que nenhum livro de auto-ajuda levanta, seja do sucesso-felicidade, seja do beijo, seja do guia para pais: na prática, a teoria é outra. E querer enfiar a prática no quadrado da teoria é caminho quase certeiro para o fracasso.

Campinas, 06 de maio de 2007

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Os especialistas e o maluco-assassino-suicida

Era plenamente previsível. Estava lá, bastava olhar para notar o perigo. Suspeitou-se, encaminhou-se para as instâncias legais, mas um juiz falhou, e por causa dessa falha, 32 mortes. Retroativamente, tudo é previsível. Todos os lances levam ao fim que realmente teve. Um determinismo científico que muitas pessoas – pessoas de poder! – não conseguiram notar a tempo. Problemas mentais, idéias suicidas, compras de armas, introversão... Estão aí as peças do quebra-cabeça do massacre do Instituto Politécnico da Virgínia. É o que nos diz a imprensa, ainda que o manifesto de Cho nos dê outras peças. Em quem acreditar? Nos especialistas com seus pós-doutorados ou em um maluco-assassino-suicida?
No maluco-assassino-suicida, sem dúvida. Primeiro porque ele tem a liberdade de falar tudo (ainda que provavelmente não use de toda essa liberdade). Segundo porque os interesses por trás dos especialistas são enormes. Já imaginou a paranóia coletiva ao se afirmar o óbvio: que acontecimentos como esse podem acontecer em qualquer lugar, a qualquer momento, e não há nada que possa prevenir?
Mas quando se mostra que as peças estavam todas lá, à mostra, e por pouco, muito pouco, não se evitou o massacre, as coisas ficam mais tranqüilas: as autoridades zelam por nós. Zelam mas, curiosamente, sempre falham. Talvez, para mostrar que não falham sempre, em breve teremos uma prisão espetacular, mostrada ao vivo em todos os canais dos EUA, repetidos à exaustão no resto do mundo, de um ex-quase-futuro assassino de colégio.
As peças do quebra-cabeça são sempre as mais estúpidas, mas nós acreditamos, pois é mais cômodo aceitar uma mentira boa do que se angustiar com a verdade dolorosa e que exige mudanças e sacrifícios. Problemas mentais, garoto problema, tentativas de assédio, idéias mórbidas, timidez. Se formos monitorar todas as pessoas que têm esse perfil, quanto da população não deverá ser enquadrada no sistema prisional? 20%? E se juntarmos o perfil dos atiradores de Columbine, pessoas que gostam de Marilyn Manson e se interessam por segunda guerra, 30, 40% da população seria enquadrada preventivamente? Mais do que 1984, acabaríamos revivendo O alienista.
"Casos como esse têm de ser encarados como problema de saúde. A grande questão é o estigma da doença psiquiátrica”, diz uma especialista brasileira. A doença psiquiátrica é que é estigmatizada ou a sociedade é que é tabu? A especialista ainda conclui: “é preciso intervir”. Sem dúvida, é preciso intervir, mas onde? No maluco-assassino-suicida que reclama de ser humilhado - óbvio -, e não na sociedade que o humilha. Cho diz no seu manifesto que “vocês tiveram tudo o que quiseram”, Mercedez, colares, propriedades, bebidas, boemia, mas que isso não preenchia as necessidades hedonísticas. A historinha do rei nu é velha, mas atual, e sempre esquecida por quem nós esperamos que lembrasse.
Está claro quem produziu mais esse massacre. Não reclamavam que era um garoto tímido, não popular, que não gostava de aparecer? Um “loser” (perdedor), na classificação corrente nos EUA e nos seus macaquitos amestrados pelo mundo? Pois eis Cho provando o contrário: um vídeo, 43 fotos, 1800 palavras, correndo o mundo todo. Quem é o perdedor?

Campinas, 19 de abril de 2007