sábado, 1 de setembro de 2007

A esquerda na sua própria arapuca

Aviso logo de cara: trata-se de uma interpretação a partir do capítulo “A social-democracia como um fenômeno histórico”, do livro Capitalismo e social-democracia, em que Adam Przeworski descreve a entrada e a acomodação dos partidos operários (sociais-democratas, trabalhistas e afins) no jogo político liberal-burguês, e que não pude discutir em sala de aula.
Atendendo a uma estratégia de agir dentro e fora do sistema é que a esquerda revolucionária resolveu lançar seu partido na arena política. A entrada desses partidos serviu para desvelar o caráter de classe – não neutro, portanto – do Estado e da política, ao mesmo tempo que unia e fortalecia a identificação da classe operária. O raciocínio era que, com o capitalismo crescendo e a classe operária acompanhando esse crescimento, em breve os partidos operários seriam capazes de conseguir a maioria absoluta necessária para implementar a revolução de dentro do sistema. Já afirmar o caráter classista da política, além do fortalecimento da classe operária, serviu para desmanchar o discurso da pretensa busca pelo bem comum: o que cada partido buscava era o bem para sua classe, seus simpatizantes. Porém, junto com essa máscara, a esquerda jogou fora também o ideal burguês do bem-comum.
E o tempo foi passando, mudanças aconteceram no sistema capitalista, e com tais mudanças o ritmo de crescimento do operariado diminuiu, ascendendo de maneira expressiva as classes médias. A previsão de que o partido operário conseguiria maioria absoluta não se realizou, e a estrutura dos sistemas políticos impediam que nos países esses partidos, por mais que se tratassem da maior força política individualmente, fossem capazes de governar sozinhos, sem um governo de coalizão com outros partidos – o que ia contra a estratégia de revolução por meio das eleições, uma vez que tais coligações significavam necessariamente o abandono de certas propostas mais radicais. Como (para certa ala do movimento operário) tampouco convinha um partido que somente disputasse as eleições, sem trazer ganhos para seus eleitores, os partidos operários foram obrigados a ampliar sua base. Fizeram-no não mais declarando-se partidos operários, mas partidos de todos os trabalhadores. Com isso, sua base potencial crescia de cerca de 40% da população para próximo de 95%. Segundo Przeworski, com essa ampliação da base potencial de eleitores, os partidos operários perderam a capacidade de organizar o operariado como antes, e o aumento da base tampouco bastou para prescindir de coalizões.
Talvez um dos motivos da dificuldade dos partidos de esquerda de conseguirem a maioria absoluta, mesmo tendo ampliado sua base potencial de eleitores, tenha se dado por conta da tática utilizada inicialmente. Ao passar a se identificar como partido dos trabalhadores, e não somente de uma classe de, os partidos de esquerda tentavam retomar o ideal por eles destruído inicialmente, a idéia de que a política era feita para a busca do bem comum. Ocorre que a direita, nessa época, já havia incorporado a idéia de política como busca dos interesses particulares, reforçando clivagens eleitorais e abandonando, ela também, o ideal liberal. A teoria política do economista neoliberal James Buchanan, por exemplo, afirma claramente que a política é lugar de disputas de interesses pessoais (ou de grupos, mas nunca de classes, óbvio), e que o tal bem comum era o resultado imprevisto desses diversos conflitos de interesses. Temos hoje, portanto, quase que uma inversão de papel: a direita a afirmar o caráter interesseiro da política, a esquerda a tentar reconstruir um ideal de bem comum. Não por acaso, como comentou uma amiga, a revista Veja reforça em matérias quase mensais clivagens no Brasil: ricos x pobres, sul x norte, etc, ao mesmo tempo que o governo atual anuncia “Brasil, um país de todos”, ou diversos movimentos bradam com seu plebiscito “a Vale é nossa”. É a esquerda tentando desarmar a arapuca que ela tão bem armou.

Campinas, 01 de setembro de 2007

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Preparar para o trabalho

Pode dar a impressão de que quero ser chistoso no que vou falar agora, mas digo-o sério: o curso de filosofia não me preparou para o mercado de trabalho. Tampouco falo aqui o óbvio, ainda que não se trate de nenhuma novidade. Uma faculdade de engenharia não prepara para o mercado de trabalho somente ensinando cálculo e aspectos técnicos da profissão, há algo mais profundo, que adentra a “alma” de quem encerra a graduação. Uma faculdade filosofia, óbvio, não vai me dar o instrumental para ser engenheiro, mas quando digo que não me preparou para o mercado de trabalho é justamente por conta desse outro aprendizado, sutil, mas poderoso, que me faltou.
Dizia Foucault, em Vigiar e Punir, que a escola não é nada mais do que um aprendizado do bom-comportamento (estou vulgarizando bastante Foucault), um adestramento para o ritmo fabril, uma versão diluída do controle encontrado na prisão. É justamente esse treinamento que a faculdade de filosofia não me deu: não fui bem adestrado para ficar oito horas por dia me comportando como um macaco adestrado, em trabalhos sem criatividade, repetindo esquemas prontos, ainda que tais esquemas exijam criatividade.
Não tenho vergonha alguma, pelo contrário, em admitir que das 37 disciplinas que cursei para me bacharelar, estudei mesmo para 16, segundo meus cálculos aproximados, das quais quatro eram disciplinas de orientação de estudo e, portanto, não havia aula. O resto foi para “queimar crédito”, como se diz na Unicamp. Felizmente, o tempo que teria perdido em sala de aula, graças a uma frouxidão difundida no departamento de filosofia quanto à presença, pude estudar e me dedicar a essas 16 disciplinas, assim como estudar muita coisa por fora. Creio que foi graças a isso que considero minha formação como ótima. Apenas lamento que essa “vagabundagem” não seja oficial.
Mas eis que começo minha segunda graduação, em ciências sociais, um curso teoricamente muito mais crítico do status quo do que o de filosofia. Como já sabia, pelas matérias de ciências sociais que havia feito durante a graduação em filosofia, aqui o controle é mais rígido: professores que reprovam por falta, fichamentos valendo nota, provas, trabalhos, nota por participação em sala de aula. Um aprendizado difícil e doloroso para quem passou cinco anos relativamente livre para descobrir e praticar a forma pela qual aprendia melhor. Outra coisa que também tenho apanhado para aprender: encher lingüiça. Em filosofia, um professor avisa que um trabalho com menos de cinco páginas não conseguirá responder à questão formulada, e que mais do que vinte ele não conseguirá corrigir em tempo. Em geral, em ciências sociais, o trabalho precisa ter um mínimo páginas não porque a questão exige, mas porque o professor exige. Você escreveu sete páginas e acha que falou tudo o que sabia e precisava sobre o assunto, mas o professor exige vinte páginas. Você, para não arriscar, já que o professor é a autoridade, com poderes de te reprovar, cumpre o exigido: escreve outras treze páginas dizendo nada, coisa alguma e repetindo o que já foi dito, duas vezes.
Esse foi o primeiro choque. O segundo foi quando comecei o estágio na prefeitura. Foi aí que vi a diferença entre o curso de sociais e de filosofia: precisei aprender a levar oito horas para fazer o trabalho que precisaria de duas. Algo difícil para qualquer um, mas mais ainda para quem não precisou se habituar a ficar quatro horas trancado em uma sala de aula, como uma criança no primário, olhando para frente com cara de interessado, enquanto pensa o que vai fazer quando terminar aquele suplício. Ou, para passar um pouco o tempo, começa a anotar as besteiras, erros e gafes cometidos pelo professor. Quando não passa a se comportar como uma criança do primário. Mas, ao que tudo indica, por mais que você não goste, ao fim de quatro anos terá aprendido a matar tempo docilmente, como se isso fosse necessário ao bom andamento do universo.
Aqui entra uma observação curiosa: enquanto o curso de ciências sociais é mais crítica do que a filosofia quanto a essas coisas mundanas, como trabalho, exploração de classe, etc (conheci estudantes de filosofia que só souberam das torturas no Iraque três meses depois da famosa foto de Abu Grahib), ela é, ao menos tempo, muito melhor adaptada às relações que diz criticar. Inclusive por professores que julgam imprescindível a um bom revolucionário unir teoria e prática. E se consideram bons revolucionários. Impõem hierarquias, adestram para o ritmo fabril, para a docilidade frente as regras, ao mesmo tempo que ensinam uma retórica crítica, explosiva, embasadas em análises cortantes. Para eles a prática se faz na luta revolucionária, não nas ações quotidianas. E depois não entendem o que houve com a experiência do comunismo real.

Campinas, 24 de agosto de 2007