quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Será a Universidade pública tudo o que ela se vê?

É do conhecimento dos meus amigos mais próximos uma certa amargura com a universidade, iniciada com minha participação em grupos de educação popular, despontada com a greve das estaduais paulista no ano passado e aprofundada com meu estágio na prefeitura de Campinas. Alguns me acusam de ressentido. Não creio ser esse o caso. Penso ser antes do parte do meu repertório de “humanista ingênuo” – como não raro me classificam – insistir em não olhar o mundo com olhos cínicos (ou mesmo fatalistas, desses que aceitam que é assim e pronto) e tentar dar sempre oportunidade ao mundo (parte dele, vá lá) de me decepcionar. Um olhar normativo, como já (muito bem) me apontaram, mas cuja normatividade está na exigência de coerência entre teoria e prática, entre o dito e o feito (há, claro, certas restrições: espero um mínimo de razão e humanismo na palavra, antes desta se transformar em ação, um skinhead espancar nordestinos ou gays, por exemplo, não me é defensável sob nenhum aspecto).

É essa ausência de coerência entre teoria e prática que me incomoda na universidade. Pior, é a cegueira do grupo político que defende abertamente a universidade inserida no seu contexto social quanto a essa discrepância que me deixa perturbado. Não é raro ver acadêmicos (professores e alunos) acusarem com palavras veementes a direção política tecnocrática (conservadora e anti-democrática) que é dada à universidade, ao mesmo tempo que se esforçam para seguir os parâmetros tecnocráticos exigidos – cujo desrespeito traz conseqüências prejudiciais, como perda de bolsas, mas cujo respeito também traz conseqüências prejudiciais, como pesquisas cada vez mais precárias.

E se a universidade não possui uma reflexão consistente sobre si própria, o que dizer sobre a relação dela com a sociedade. Não é raro escutar pelos corredores da universidade um auto-elogio narcísico de que ela seria o espaço de pesquisa e produção de conhecimento. Até aí, nenhum problema. O qüiproquó, penso eu, se dá porque julgam-na o espaço exclusivo de produção de conhecimento, quando, na verdade, se trata do espaço privilegiado. Fora da universidade também é possível pensar, ainda que não haja estímulo para que se centre nisso. Fora da universidade também há trocas entre “pensadores”, pois professores, para ficar apenas em um exemplo, também são formados, não raro possuem pós-graduação, e têm, mesmo perante a academia, respaldo para proferirem opiniões “qualificadas”.

Se as conseqüências disso ficassem restritas somente à universidade, a sua auto-imagem e a uma certa precariedade na produção de conhecimento, tudo bem, as conseqüências não seriam tão graves. Contudo, a universidade se pretende detentora de um discurso sobre toda a sociedade (ou realidade): seu conhecimento não é um conhecimento sobre a universidade, mas prioritariamente sobre o que se passa fora dela. Aqui a ausência de auto-crítica começa a se mostrar nefasta para a sociedade. A academia é apenas uma realidade, mas se pretende falar sobre as outras, sem, contudo, ter a experiência dessas outras realidades. Pior: sem se dar conta de que ainda que seu discurso seja sobre a realidade externa, ele é produzido a partir de dentro e com olhos de dentro, não raro por professores-pesquisadores que desde os dezoito anos de idade só conhecem o ambiente universitário ou as observações distanciadas, seguindo padrões ditos científicos, de ambientes alienígenas.

A defesa da universidade como centro exclusivo de produção de saber ignora - justamente por seus defensores nunca terem saído da universidade - a precariedade de tal conhecimento produzido – ao menos frente a prática que se pretendia inspirar com ele. Não raro conhecimentos que se pretendiam discutir a condição social se tornam discussões beletristas auto-referenciadas, distantes anos-luz da realidade que dizem apreender. E tais conhecimentos, na hora em que se transformam em prática... não se transformam em prática, dando razão ao (falso) ditado de que na prática a teoria é outra. O problema, ao meu ver, é que na teoria a prática é simples. Simplificada exatamente porque os teóricos desconhecem em absoluto a prática, ou julgam equivalente a prática de escrever um livro, participar de uma greve em uma universidade ou seguir parâmetros de produção científica e trabalhar oito horas repetindo roteiros para clientes, enfrentar a polícia em confronto no campo ou ter a exigência de vender determinado volume de produtos, sob o risco de não ter um salário necessário para a subsistência, ou mesmo da perda do emprego.

Estou falando, claro, preferencialmente das ditas ciências humanas. Mas acredito que essa alienação na torre de marfim que são as universidade públicas brasileiras - ainda mais quando reforçada pelo discurso tecnocrática-especialista - pode se aplicar também às ciências físicas e biológicas (e não só no Brasil): ou será muita coincidência que grandes cientistas do século XX eram também fortemente politizados? Se fosse verdadeira a crença de que o cientista deve se fechar no laboratório e trabalhar só na sua pesquisa, esquecer do resto para não perder o foco, a física da primeira metade do século passado deveria ter sido um retumbante fracasso. Não sou físico, mas não é o que ouço falar.

Por fim, enquanto se mantiver o discurso da universidade como centro exclusivo de produção de saber, mesmo entre aqueles que se dizem críticos do nosso modelo social excessivamente exclusivo, se tratará de uma profecia auto-realizável de uma crença injustificável, a qual só reforça o modelo (pretensamente) criticado: por que professores de escola não poderiam, eles também, produzir conhecimento, mesmo já fora da universidade, dadas condições mínimas para isso? Claro que com trinta horas de aula semanais, em um emprego desprestigiado (dentro da própria universidade, por aqueles que formam esses professores), com salários baixos (principalmente se levada em conta a importância da profissão) e o estigma de que “professor é professor porque não tem capacidade para ser pesquisador”, como disse um eminente sociólogo de esquerda e ex-presidente de uma república bananeira, a universidade continuará sendo o local exclusivo e não privilegiado de pesquisa e produção de conhecimento.

E o pior é que, ao que tudo indica, a mudança desse quadro depende não só da pressão externa à universidade, mas principalmente de um movimento interno de auto-reflexão, auto-crítica e perda desse narcisismo coletivo. E sendo assim, não me parece que será tão em breve que teremos a universidade como produtora de grandes pensadores e pensadoras. Continuará uma produtora de técnicos e técnicas de nível superior, aptos a atender demandas prementes, ao invés de questões necessárias.


Campinas, 03 de setembro de 2008


terça-feira, 19 de agosto de 2008

Fantasmas ao celular

No teatro, duas mulheres sentadas na minha frente conversavam antes de iniciar a apresentação. Uma delas tinha um celular, desses todos modernosos, com teclado padrão qwer e tela sensível. Utilizava-o para mostrar gráficos enquanto conversavam. Não ouvi do que tratavam, mas pelos gráficos, desconfio que não deviam falar dos filhos (na verdade, torço para que não estivessem falando dos filhos!). Muito provavelmente, aproveitavam cada minuto, inclusive os de domingo, no teatro, para conversar sobre negócios. Time is money, já dizia Benjamin Franklin. Até aí, nenhuma novidade no uso de celular. No filme Missão Impossível 2, Tom Cruise tem uma fala em que comenta que se tivesse celular, não teria férias. Saiu, inclusive, reportagem no caderno Mais, da Folha de São Paulo, discussão sobre a intromissão do celular na vida quotidiana (faz tempo essa reportagem), e essa “facilidade” de poder levar o trabalho para onde você estiver, não precisando mais ficar necessariamente confinado no escritório (estamos tratando de uma fatia da população, que fique claro).

No ônibus, sexta-feira, o cobrador tira do bolso o celular e começa a escrever alguma mensagem sms. A imagem me faz de lembrar de outra, não muito diferente, mas com um policial como protagonista: está parado ao lado da viatura, escrevendo alguma mensagem pelo celular. Aí um outro lado do celular (das novas tecnologias), não tão comentado, mas que não também se trata de nenhuma novidade: assim como você leva trabalho para casa, leva a casa para o trabalho. Isso talvez torne um pouco menos pesada a rotina. Afinal, se algum amigo quer marcar algo para depois do serviço, não precisa passar por qualquer PABX, basta ligar no seu celular. Se você quer saber se está tudo bem em casa, ou mesmo contar qualquer novidade a alguém, um sms permite que isso seja feito durante o expediente, e sem grande indiscrição. Ou seja, as novas tecnologias acabam sendo uma via de mão dupla: não é somente o trabalho que invade a vida particular, mas a vida particular que invade o trabalho.

Há, todavia, um porém: a via pode ser de mão dupla, mas as pistas não são equivalentes. A intromissão do trabalho na vida particular tende a ser muito mais forte do que a recíproca. Primeiro porque uma notícia que vem da casa para o trabalho dificilmente surge como um imperativo como pode acontecer com o trabalho que chega à casa: faça ou terá sanções. Segundo porque, mesmo que seja algo preocupante a notícia que vem de fora do serviço, a pessoa é obrigada a esquecê-la enquanto trabalha, para não prejudicar seu rendimento, e deixar para resolver depois. Tente fazer o mesmo com o trabalho: chefe, não vou me preocupar com todos esses pepinos que apareceram porque estou em casa e combinei de jogar bola com meu filho.

Existe ainda um outro ponto interessante: um certo desprendimento entre “corpo e alma”, mais radical do que já acostumava acontecer. Explico esse “corpo e alma” com um exemplo próprio e que deve ser conhecido pela grande maioria: na escola (mesmo na faculdade), aquela aula chata, chatíssima, que se é obrigado a assistir. Enquanto a professora fala sobre a revolução e porque quem não tem a leitura que ela tem de Marx é idiota, você pensa em algo mais agradável, como o futebol de domingo, a jogatina de quarta, a crônica para escrever (tem uma tirinha da Mafalda muito boa, como sempre, que trata desse drama: o Filipe está na aula e começa a repetir para si mesmo “preciso me concentrar e prestar atenção, preciso me concentrar e prestar atenção, preciso me concentrar e prestar atenção”, ao que é interrompido pela professora: “entenderam crianças?”). Com o celular, essa árdua tarefa de achar o que fazer (ou o que pensar) enquanto espera o tempo passar se torna mais leve, até mesmo “produtiva” (não para a empresa, claro): converso, troco novidades com amigos, mesmo que eles estejam no outro lado da cidade, ou em outra cidade. A atenção totalmente fora do espaço onde o corpo está preso.

Fosse isso só para as atividades chatas, talvez fosse até positivo. Mas não me parece ser esse o caso, ainda mais no Brasil, onde a falta de educação no uso do celular é avassaladora (falo no Brasil por desconhecer a realidade nos demais países). Não é cena incomum pessoas abrirem seus celulares no cinema para ler a mensagem que chegou. Falo do celular, mas não se trata só dele. Há uma crescente dificuldade em se concentrar em apenas uma tarefa. Escutar música, por exemplo. São poucas as pessoas que conheço que fazem isso. Geralmente o que acontece é pôr a música para acompanhar alguma outra tarefa: cozinhar, estudar, usar a internet, ler, escrever (como acontece comigo agora). Isso quando não para acompanhar três ou quatro tarefas concomitantes. Há quem acredite que se trate de um melhor aproveitamento do tempo, mesmo uma evolução, ao se aproveitar das potencialidades humanas que a tecnologia permite fazer uso. Eu, por meu lado, questiono a qualidade dessas atividades, desse aproveitamento do tempo: se o objetivo é apresentar o maior número de coisas feitas no menor espaço de tempo, ótimo; já se se trata de desfrutar do fazer, ainda que haja certa ansiedade em conhecer o final do processo, o resultado é catastrófico, e o aprendizado dele resultante, precário, se comparado àquele de um processo plenamente concentrado. E não falo mais de atividades pesadas, coisas que se é obrigado a participar: falo de momentos lúdicos, prazerosos. Também não defendo aqui que seja feita uma coisa de cada vez, sempre. Há momentos e momentos (como agora, que precisei desligar o som para concentrar em uma conclusão, já que me perdi da idéia original da crônica e não sei bem onde estou, ainda que não tenha sido por culpa da música). A questão está que não há essa distinção entre momentos e momentos começa a esmorecer: tende-se sempre a fazer mais do que uma coisa por vez, pouco importa o momento.

Para concluir (porque já estou me enrolando muito): talvez um outro problema seja aquele já apontado por George Orwell em 1984, e que geralmente as pessoas ignoram: o Grande Irmão não é somente a teletela que vigia as pessoas 24 horas por dia. Ela é também a teletela que não permite que as pessoas fiquem um minuto sequer em silêncio. E se concentrar em uma atividade lúdica, em silêncio, significa, muitas vezes, se concentrar em si mesmo. E talvez seja de nós mesmos, do nosso corpo e da nossa alma, que buscamos fugir ao nos concentrar em várias coisas ao mesmo tempo (ou em nenhuma, segundo minha visão).


Campinas, 19 de agosto de 2008