Tinha boas referências do livro. O tema parecia interessante. E não posso dizer que seja um livro ruim, pelo contrário. O autor, Loïc Wacquant, professor de Berkeley e com passagem em várias universidades do mundo no currículo, não depende disso para justificar a obra: tem-se a clara impressão de que domina o assunto. Isso porém não evitou minha irritação ao ler As prisões da miséria. O livro, muito resumidamente, trata da questão da mudança do Estado social para o que o autor chama de Estado policial e penal, cujas expressões melhor desenvolvidas são a política de tolerância zero – que tem em Nova York sua grande vitrine, a partir de onde foi vendida ao mundo todo – e o desenvolvimento da indústria privada carcerária.
O que o autor expõe é que as tais políticas de tolerância zero, além de não terem eficácia comprovada no combate à criminalidade – a criminalidade em Nova York e em San Diego caíram de maneira muito similares, ainda que utilizando de métodos distintos de lidar com o problema –, são antes uma máscara para encobrir uma política de segregação e perseguição às classes desfavorecidas, quase sempre marcadas pela questão racial. Trata-se de uma política de perseguição aos pobres, aos negros, aos latinos, aos imigrantes, aos moradores das periferias pobres, dos guetos, sob a justificativa de que a criminalidade é um traço individual de personalidade, fruto de problemas de formação moral ou deficiência no quociente de inteligência; e que são essas pessoas as responsáveis pela degradação da cidade, dos bairros, das condições sociais, e não as condições sociais responsáveis pela criação e manutenção desse exército de pequeno delinquentes que a polícia do tolerância zero visa com especial vontade.
Até aí, tudo bem. Concordo com boa parte da análise do autor. Seu livro, com bastante referências empíricas, traz mais subsídios ao debate. Me questiono, porém, qual era a intenção de Wacquant quando lançou a obra: se era fomentar um pouco mais o debate, levando a uma reflexão por parte de Jospin (o livro é de 1999) ou dos homens públicos, seu livro é um fracasso. Se era para pregar aos convertidos, reforçar as convicções daqueles que já pensavam como ele, aí ele mostra tanta propriedade quanto ao descrever a criminalização da pobreza. E como ando numa fase bastante cética, foi esse ar de “é tudo evidente, só não vê quem não quer” que me deixou p da vida.
O livro se divide em duas partes. A segunda, que é boa e, na minha opinião, deveria vir primeiro, trata em detalhes como foram construídos os estereótipos e os discursos que subsidiam a política de tolerância zero e de ênfase no encarceramento. É esta parte que salva o autor de uma visão assaz simplificada do problema da criminalidade, visto que na primeira parte parece que o autor crê que todo crime é fruto da falta ou da precariedade do emprego – e é sabido que não é só pobre quem comete crime. Nesta primeira parte, intitulada “Como o 'bom senso' penal chega aos europeus”, o autor mostra como essa política foi exportada dos Estados Unidos para o mundo, junto com a ideologia neoliberal.
Aqui que começo a torcer o nariz. Me parece bem embasada a idéia de que o Estado penal surge como complemento ao Estado mínimo neoliberal: diante do desemprego estrutural e da precarização de boa parte do trabalho assalariado, o crime surge como uma das poucas oportunidades promissoras para quem já nasce em desvantagem na guerra de todos contra todos que se tenta implementar hoje. Além do mais, na esteira da perda de direitos, ganha força a idéia da cidadania não como um direito, mas como uma recompensa. Primeiro problema: o autor precisa achar um inimigo para combater. E precisa ser um inimigo visível. Como acusar o “capitalismo”, além de um tanto fora de moda, é atirar no próprio pé – visto que a virgem, imaculada e idílica Europa defendida pelo autor é capitalista – ataquemos os Estados Unidos. Logo, o autor dá a entender que a culpa pelo neoliberalismo no mundo é pura e exclusivamente dos Estados Unidos. Esquece que os primeiros teóricos neoliberais eram europeus de boa estirpe (von Mises e Hayek), que a reestruturação produtiva que marca estes tempos neoliberais teve origem no Japão (com o toyotismo) e que o primeiro país central a adotar o receituário foi a Inglaterra, com Thatcher, em 1979. Que os EUA assumiram o papel de ponta de lança do neoliberalismo, isso não há a menor sombra de dúvidas – fiquemos apenas no termo “consenso de Washington” para ilustrar. Que a política de tolerância zero (tal qual a conhecemos hoje) foi desenvolvida nos EUA, isso também não parece ter muitas dúvidas. Todavia, acreditar que isso se deu por mera maquinação malvada dos Estados Unidos parece um tanto precário – ou, se for verdade, deveríamos estudar essa indústria do sucesso estadunidense. Se no prefácio à edição brasileira ele lembra da matriz autoritária do pensamento tupiniquim, é curioso como ele esquece a matriz liberal do conceito de cidadania que permeia desde longa data o pensamento anglo-saxão, onde cidadão e contribuinte se confundem. Diante disso, é compreensível, ainda que seja criticável (tanto por mim quanto por Wacquant), que à assistência social seja cobrada contrapartida em trabalhos precários. Para Wacquant, contudo, têm-se a clara impressão de que se o trabalho não for precário, não é de todo repreensível se cobrar contrapartida pelo direito à cidadania (página 67).
Outro ponto que me irritou nessa primeira parte: Wacquant parece dividir o mundo em quatro categorias de pessoas, ontologicamente determinadas: os estadunidenses malvados; os homens públicos vendidos; a massa ignara e a meia dúzia de iluminados. A divisão mais ou menos arquetípica do mundo encontrada ainda hoje em certa esquerda saudosista. A velha necessidade da velha geração (que se perpetua na nova) de se achar um inimigo. Necessidade presente também na direita, é bom ressaltar, a qual, contudo, tem mais propriedade para fazê-lo, seja guerra às drogas, ao terrorismo ou ao que for. Voltando ao Wacquant. Em um mundo assim tão bem dividido e distribuído, fica muito simples resolver os seus problemas: basta atacar quem os promove (os Estados Unidos, no caso). Durante o livro, o autor faz questão de frisar que há um contexto por trás de uma parte da criminalidade, contexto sempre esquecido por aqueles que defendem uma visão individualizada dos criminosos. Contudo, na hora de aprofundar um pouco a análise desses analistas, esquece que eles também possuem um contexto, onde o discurso tem se encaixado bem e angariado seguidores. Não se trata de mera retórica bem feita ou pura manipulação de meia dúzia de indivíduos ou de um país malvado. Há um contexto que autoriza esse tipo de discurso e que não se resume somente ao que é dito pelos tais formadores de opinião.
Em suma. Não entendo nada do assunto, e o livro, como disse acima, possui boas referências (um professor meu da sociologia e um de direito do meu irmão). Ainda assim insisto em recomendar que se comece pela parte final, e depois veja se compensa ou não se aventurar pela primeira. Há quem goste de pregação. Há quem não se incomode e saiba aproveitar bem o que há por trás. E há os que se irritam.
Pato Branco, 12 de janeiro de 2009