segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

As prisões da miséria (breve comentário)

Tinha boas referências do livro. O tema parecia interessante. E não posso dizer que seja um livro ruim, pelo contrário. O autor, Loïc Wacquant, professor de Berkeley e com passagem em várias universidades do mundo no currículo, não depende disso para justificar a obra: tem-se a clara impressão de que domina o assunto. Isso porém não evitou minha irritação ao ler As prisões da miséria. O livro, muito resumidamente, trata da questão da mudança do Estado social para o que o autor chama de Estado policial e penal, cujas expressões melhor desenvolvidas são a política de tolerância zero – que tem em Nova York sua grande vitrine, a partir de onde foi vendida ao mundo todo – e o desenvolvimento da indústria privada carcerária.

O que o autor expõe é que as tais políticas de tolerância zero, além de não terem eficácia comprovada no combate à criminalidade – a criminalidade em Nova York e em San Diego caíram de maneira muito similares, ainda que utilizando de métodos distintos de lidar com o problema –, são antes uma máscara para encobrir uma política de segregação e perseguição às classes desfavorecidas, quase sempre marcadas pela questão racial. Trata-se de uma política de perseguição aos pobres, aos negros, aos latinos, aos imigrantes, aos moradores das periferias pobres, dos guetos, sob a justificativa de que a criminalidade é um traço individual de personalidade, fruto de problemas de formação moral ou deficiência no quociente de inteligência; e que são essas pessoas as responsáveis pela degradação da cidade, dos bairros, das condições sociais, e não as condições sociais responsáveis pela criação e manutenção desse exército de pequeno delinquentes que a polícia do tolerância zero visa com especial vontade.

Até aí, tudo bem. Concordo com boa parte da análise do autor. Seu livro, com bastante referências empíricas, traz mais subsídios ao debate. Me questiono, porém, qual era a intenção de Wacquant quando lançou a obra: se era fomentar um pouco mais o debate, levando a uma reflexão por parte de Jospin (o livro é de 1999) ou dos homens públicos, seu livro é um fracasso. Se era para pregar aos convertidos, reforçar as convicções daqueles que já pensavam como ele, aí ele mostra tanta propriedade quanto ao descrever a criminalização da pobreza. E como ando numa fase bastante cética, foi esse ar de “é tudo evidente, só não vê quem não quer” que me deixou p da vida.

O livro se divide em duas partes. A segunda, que é boa e, na minha opinião, deveria vir primeiro, trata em detalhes como foram construídos os estereótipos e os discursos que subsidiam a política de tolerância zero e de ênfase no encarceramento. É esta parte que salva o autor de uma visão assaz simplificada do problema da criminalidade, visto que na primeira parte parece que o autor crê que todo crime é fruto da falta ou da precariedade do emprego – e é sabido que não é só pobre quem comete crime. Nesta primeira parte, intitulada “Como o 'bom senso' penal chega aos europeus”, o autor mostra como essa política foi exportada dos Estados Unidos para o mundo, junto com a ideologia neoliberal.

Aqui que começo a torcer o nariz. Me parece bem embasada a idéia de que o Estado penal surge como complemento ao Estado mínimo neoliberal: diante do desemprego estrutural e da precarização de boa parte do trabalho assalariado, o crime surge como uma das poucas oportunidades promissoras para quem já nasce em desvantagem na guerra de todos contra todos que se tenta implementar hoje. Além do mais, na esteira da perda de direitos, ganha força a idéia da cidadania não como um direito, mas como uma recompensa. Primeiro problema: o autor precisa achar um inimigo para combater. E precisa ser um inimigo visível. Como acusar o “capitalismo”, além de um tanto fora de moda, é atirar no próprio pé – visto que a virgem, imaculada e idílica Europa defendida pelo autor é capitalista – ataquemos os Estados Unidos. Logo, o autor dá a entender que a culpa pelo neoliberalismo no mundo é pura e exclusivamente dos Estados Unidos. Esquece que os primeiros teóricos neoliberais eram europeus de boa estirpe (von Mises e Hayek), que a reestruturação produtiva que marca estes tempos neoliberais teve origem no Japão (com o toyotismo) e que o primeiro país central a adotar o receituário foi a Inglaterra, com Thatcher, em 1979. Que os EUA assumiram o papel de ponta de lança do neoliberalismo, isso não há a menor sombra de dúvidas – fiquemos apenas no termo “consenso de Washington” para ilustrar. Que a política de tolerância zero (tal qual a conhecemos hoje) foi desenvolvida nos EUA, isso também não parece ter muitas dúvidas. Todavia, acreditar que isso se deu por mera maquinação malvada dos Estados Unidos parece um tanto precário – ou, se for verdade, deveríamos estudar essa indústria do sucesso estadunidense. Se no prefácio à edição brasileira ele lembra da matriz autoritária do pensamento tupiniquim, é curioso como ele esquece a matriz liberal do conceito de cidadania que permeia desde longa data o pensamento anglo-saxão, onde cidadão e contribuinte se confundem. Diante disso, é compreensível, ainda que seja criticável (tanto por mim quanto por Wacquant), que à assistência social seja cobrada contrapartida em trabalhos precários. Para Wacquant, contudo, têm-se a clara impressão de que se o trabalho não for precário, não é de todo repreensível se cobrar contrapartida pelo direito à cidadania (página 67).

Outro ponto que me irritou nessa primeira parte: Wacquant parece dividir o mundo em quatro categorias de pessoas, ontologicamente determinadas: os estadunidenses malvados; os homens públicos vendidos; a massa ignara e a meia dúzia de iluminados. A divisão mais ou menos arquetípica do mundo encontrada ainda hoje em certa esquerda saudosista. A velha necessidade da velha geração (que se perpetua na nova) de se achar um inimigo. Necessidade presente também na direita, é bom ressaltar, a qual, contudo, tem mais propriedade para fazê-lo, seja guerra às drogas, ao terrorismo ou ao que for. Voltando ao Wacquant. Em um mundo assim tão bem dividido e distribuído, fica muito simples resolver os seus problemas: basta atacar quem os promove (os Estados Unidos, no caso). Durante o livro, o autor faz questão de frisar que há um contexto por trás de uma parte da criminalidade, contexto sempre esquecido por aqueles que defendem uma visão individualizada dos criminosos. Contudo, na hora de aprofundar um pouco a análise desses analistas, esquece que eles também possuem um contexto, onde o discurso tem se encaixado bem e angariado seguidores. Não se trata de mera retórica bem feita ou pura manipulação de meia dúzia de indivíduos ou de um país malvado. Há um contexto que autoriza esse tipo de discurso e que não se resume somente ao que é dito pelos tais formadores de opinião.

Em suma. Não entendo nada do assunto, e o livro, como disse acima, possui boas referências (um professor meu da sociologia e um de direito do meu irmão). Ainda assim insisto em recomendar que se comece pela parte final, e depois veja se compensa ou não se aventurar pela primeira. Há quem goste de pregação. Há quem não se incomode e saiba aproveitar bem o que há por trás. E há os que se irritam.


Pato Branco, 12 de janeiro de 2009



sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Discussão britânica

Não sou “O cara pontual”, mas primo pela pontualidade. Eu iria dizer que sempre fui assim, porém não sei por que cargas d'água com minha primeira namorada eu era o primor do atraso. Não teve um encontro ao qual cheguei na hora. Freud deve explicar. Ou mesmo ela, que é formada em psicologia. Nos últimos tempos ando deliberadamente um pouco menos rígido – dizem que até na Alemanha se tolera dez minutos de atraso –, porém sigo com a opinião de que pontualidade é uma questão de educação e respeito para com o outro.

Faço esse preâmbulo todo porque o Brasil não costumava ser um país famoso por sua pontualidade, como a Inglaterra ou a Alemanha. Tanto é que o ser menos rígido que comentei acima foi justamente para ser um pouco menos folclórico num país onde não há dez minutos de tolerância, mas meia hora de atraso regulamentar, pelo menos. Salvo cinema e um que outro evento, chegar na hora é pedir para ficar esperando com cara de tacho. E mesmo no cinema, que aparentemente começa na hora: é um festival de propagandas e trailers antes do filme, que se pode dizer que há os tais dos dez minutos, um pouco mais.

Cheguei a pensar que as coisas começavam a mudar, e o Brasil caminhava para ser uma nova Inglaterra no quesito pontualidade. Ao menos bem que poderia ser assim. Aconteceu esta semana, quando eu fazia o (longo) trajeto casa de Campinas – casa de Pato Branco. No meio do caminho tem Ponta Grossa, tem Ponta Grossa no meio do caminho. Chego à cidade de Vila Velha às cinco da manhã, pego minha passagem para as seis. Não convém dormir, então puxo um livro para ajudar a passar o tempo. Tenho um do Rubem Braga e um do Anthony Giddens à mão. Opto pelo segundo. Está interessante, fala de sexo. Cuido da hora e presto atenção para ver se o meu ônibus não chega. Dez para as seis, avisam que está saindo o ônibus para São Paulo. Não se trata do meu, que vem de Sampa. Termino o capítulo, são seis horas, nada do ônibus chegar. Vejo que o sol está nascendo e resolvo ir até a plataforma ver o espetáculo. Ao chegar à plataforma qual não é minha surpresa em ver o espetáculo do meu ônibus saindo!

Pergunto ao funcionário da empresa – que se auto-denomina princesa, mas seria mais sincera se se chamasse Tristeza dos Campos – se o ônibus está indo para a garagem (como sempre faz) e vai voltar depois. Confirma que está indo para a garagem, só que de lá ele segue viagem. Reclamo que não avisaram que o ônibus partia, e ele responde que eu devia ter prestado atenção à hora. Aqui acontece um diálogo que eu nunca imaginava que aconteceria em português, a não ser que fosse dublagem. Reclamo que no meu relógio são seis horas. Ele argumenta que já passou das seis. Digo que na passagem está que o horário do ônibus é seis e dois, ao que ele contra-argumenta que no relógio do computador já são seis e quatro. Faltou o arremate: ele dizer que o ônibus havia esperado um minuto além do seu horário, e que se eu me atrasara a culpa era minha, que não reclamasse dele (que me vendera a passagem uma hora antes) ou da empresa, que apenas cumpria britanicamente seu horário.

Não houve tal arremate e eu também não quis prolongar a discussão sobre a pontualidade da empresa, questionar porque tal pontualidade não era seguida sempre, já que quando faço o caminho de volta o ônibus é previsto para chegar às 23h10min em Ponta Grossa, mas chega sempre com mais de dez minutos de atraso, sendo que o ônibus que parte para Campinas sai às 23h15, no máximo cinco minutos além do previsto. Eram seis e cinco já, eu chegara um minuto atrasado e não tinha razão de reclamar. Ou mesmo que tivesse, eu queria chegar logo em casa. Melhor era pegar um taxi e correr atrás do ônibus. Já devidamente instalado neste para a última parte do trajeto, me perguntei se o Brasil não estaria começando a seguir o padrão britânico de pontualidade, e eu que não me dera conta. Se assim fosse, eu deveria ser o último a reclamar da mudança. Ao fim da viagem, faltou compreender como entra nesse padrão os quarenta e três minutos de atraso que com que cheguei ao meu destino.


Pato Branco, 26 de dezembro de 2008