sexta-feira, 17 de julho de 2009

Sede de sangue

Há dificuldade por parte de muitos em aceitar minha posição: não acredito em nada do caso Nardoni, salvo que uma menina caiu do prédio. Não é nem para polemizar. Inclusive, quando alguém vem tentar me convencer da versão sacramentada pela mídia, dando os mais ínfimos detalhes do suposto assassinato que ninguém viu, trato de cortar logo a conversa: para mim, a verdade do caso está perdida, como perdidos estão a original da taça Jules Rimet ou o tigre-dente-de-sabre.

Se por certo tempo o caso Nardoni motivou homéricas e intermináveis discussões sobre todas as convergências possíveis em opiniões exatamente iguais, hoje muitos vão precisar espremer o cérebro para tentar lembrar do que se trata: a memória é curta sob o espetáculo, dura o tempo que dura o assunto na tevê.

Nardoni, portanto, já é passado, pode ser esquecida. Mas a sede de sangue, essa segue latente. Não falo da sede de pais ensandecidos assassinos de seres angelicais, mas dos espectadores ansiosos por uma fogueira, para terem a aparência de vida na sua moribunda e deprimente existência. E a temporada de caça a novos monstros está aberta.

No Rio de Janeiro houve um ensaio por estes dias. O roteiro não podia ser mais original: uma criança cai do prédio. Por sorte, ou melhor, por menos azar, houve como comprovar que não foram os pais quem a defenestraram. Não serão condenados à fogueira como o casal do ano passado. Mas o linchamento moral começou assim mesmo, com a prisão deles e sua exposição ao grande público, nesse momento de grande dor para qualquer pai ou mãe. A acusação: abandono de incapaz. Como se fosse obrigação dos pais estarem 24 horas por dia, sete dias por semana amarrados aos filhos; como se houvesse lei proibindo qualquer fatalidade, criminalizando os atingidos pelos infortúnios do destino.

E parece que essa será mesmo a tônica até que surja o próximo caso a saciar a sede de sangue da imprensa e dessas pessoas carentes de circo e de assunto para o almoço de domingo.

Os pais que se cuidem.


Campinas, 17 de julho de 2009

Publicado em www.institutohypnos.org.br

sexta-feira, 10 de julho de 2009

A burocratização da esfera política

Descobri esta semana que sou professor universitário. Fiquei curioso em saber se de universidade pública ou particular: isso, porém, não estava explicitado. Explico. Achei um texto meu, escrito pouco antes do início da greve deste ano, publicado em um blogue de alguém que desconheço. O dono do blogue resolveu esquecer de pôr o título, “Mediocridade e conservadorismo na universidade brasileira”, deixando apenas o subtítulo “O movimento estudantil”. Compreensível, visto o teor conservador de direita/reacionário do seu autor (que, ao que tudo indica, não entendeu o que eu quis dizer). Pelo menos citou o autor (por ser copyleft, deveria ter citado também que tirara da página do CMI).

O divertido foi que, vendo que o texto era escrito por alguém de dentro da universidade e com alguma experiência nesse ambiente, resolveu me taxar de professor universitário. Logo eu, que para Unicamp ainda sou aluninho de graduação. E não adiantou eu avisá-lo dos “equívocos”: meu texto segue sem o título, e eu sigo com mais títulos do que tenho – aqueles pressupostos aos professores universitários.

O ponto que chama a atenção nessa história é a necessidade de aval burocrático para que o que eu disse seja digno de consideração. Oito anos de graduação, participação no sindicalismo estudantil, em projetos de educação popular e outros não me autorizam a dizer nada, se eu não apresentar antes as credenciais. Que tais exigências burocráticas existam no âmbito do Estado é até justificável, visto que se trata de selecionar uma burocracia bem capacitada e adepta do burocratismo para garantir sua perpetuação. Preocupante é quando tal burocratização atinge toda a esfera política. Para ter direito à voz é preciso antes mostrar os papéis timbrados que dizem que você tem tal direito. Carteira de identidade não vale. Só com isso, quem ousa ter voz não passa de um defensor da ignorância. E a própria direita, sempre tão crítica da burocracia estatal, é a primeira a legitimar e estimular o papel do Estado na divisão social de saberes.

Os “especialistas” que toda reportagem na tv mostra que o digam.

Campinas, 10 de julho de 2009
Publicado em www.institutohypnos.org.br