sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Álcool e direção: responsabilidade social?

Ao fim das corridas, comemora-se com champanhe. Nas pistas e nos carros desfilam marcas de vermute e uísque. Na transmissão da tv Globo, o anúncio de uma marca de cerveja. O circo da Fórmula 1 é custoso e é preciso bancá-lo. Pagando bem, que mal tem, se pergunta hoje em dia. Non olet, dizia há muito tempo Vespasiano. Enquanto isso, as estatísticas de acidentes de trânsito também non olet, ao menos enquanto não for alguém próximo o atingido por um motorista bêbado querendo mostrar que poderia ter sido mais rápido do que o Barrichello.

É de conhecimento geral que quanto mais rápido, pior a pancada. Como é de conhecimento geral que os reflexos ficam prejudicados sob os efeitos do álcool. Felizmente quase todo motorista é tão bom que mesmo a 200 km/h não há risco algum de acidente – quem bate são aqueles barbeiros da F-1. Assim como quase todo motorista, por um efeito rebote ainda não explicado – sequer diagnosticado – pela ciência, dirige melhor levemente alcoolizado. O resultado dessas felicidades é que o excesso de velocidade e o efeito do álcool são as duas principais causas de acidentes automobilísticos no país.

A F-1 é um esporte, corre em locais específicos, sob regras específicas que devem ser respeitadas pelos participantes, ficando claro que se trata de algo diferente de ruas e estradas, onde as regras são também diferentes – daí porque um F-1 chega a 300 km/h e um carro não deveria passar dos 100 km/h. Mas de qualquer forma são carros em alta velocidade correndo em meio a propagandas de bebidas. Alguma coisa errada há. E o duro é que estamos tão acostumados que sequer nos damos conta desse absurdo que é pinga patrocinar esporte a motor – até porque o vilão da vez é o cigarro.

Pior é ver jornalista rodado, professor acadêmico – sem entrar no mérito das universidades em que leciona -, dizer que marca de uísque pôr nome de bebum em capacete de piloto é programa de responsabilidade social. Está no blog do Erich Beting. Ele compara essa ação à da equipe Honda, que havia vendido espaços em seus carros para foto de torcedores, destinando o dinheiro arrecadado a uma causa social. Se a indústria de bebidas quisesse ter um programa de responsabilidade social verdadeiro, bastaria parar de fazer propaganda. Temos aí o exemplo da maconha. Não há qualquer propaganda – salvo quando a polícia resolve prender banda de rap, acusando-a de apologia, mas isso faz tempo que não acontece mais – e o consumo segue crescendo. E olha que fumar maconha dá problemas com a justiça, enquanto tomar um pileque só dá ressaca no dia seguinte.

Beting termina seu texto dizendo que tal ação “é uma boa forma de mostrar como o esporte pode ser aliado a questões de responsabilidade social”. Da minha parte, parece ser antes uma boa forma de mostrar que os jornalistas necessitam de um pouco de crítica antes de reproduzir os comunicados de imprensa que recebem das empresas.


Pato Branco, 02 de outubro de 2009.

Publicado em www.institutohypnos.org.br

terça-feira, 29 de setembro de 2009

O perigo de viver

Viver é perigoso, dizia Guimarães Rosa. E quem sou eu para duvidar da sabedoria do senhor João. Confesso, contudo, que nunca consegui entender bem os perigos do viver. Talvez porque ainda não tenha me sentido apto para mergulhar em Grande Sertão: Veredas (por mais que o livro já me tenha sido fortemente receitado pelo Hugo), aliado a minha pouca idade, parca experiência, limitada vivência. A vida para mim ainda é muito complicada para conseguir apreendê-la em toda a simplicidade apresentada por Guimarães Rosa.

Tem horas que pergunto se esse perigo não estaria no desconhecer a linha que nos sustenta em vida. Entre a frágil teia de aranha, que num sopro se rompe, e a corrente que prende firme, às vezes mais do que se deseja, em que ponto se sustenta nossa vida? De qualquer forma, imagino que esse perigo é o de menos: mesmo sustentado por um tênue fio, ele nos permite dançar a vida com a alegria e leveza necessárias. Talvez seja maior o nosso medo de voar e nos perdermos do solo em meio a essa dança.

Quem sabe o perigo maior esteja nos fios que vamos tecendo com os outros – próximos e distantes -, como os fios de sol que os galos do poema de João Cabral de Melo Neto se lançam a cada aurora para tecer a manhã. Apanhamos o sentimento de alguém, lançamos nossos a outra pessoa, sem saber por quem passará nesse interlúdio e como chegará – se chegará – ao destino desejado. E de fio apanhado aqui, arremessado acolá, vamos tecendo uma teia de sentimentos em nossa volta, que nos garante mais segurança em nossa vida, mas muitas vezes nos atrapalha nosso ballet pelo mundo. Uma hora nos vemos como a cidade de Ercília, descrita por Ítalo Calvino. Porém não podemos simplesmente levantar nossa casa, deixando ali a teia de nossas relações – que é, no fundo, a teia de nossa vida, do nosso ser.

Contudo, mesmo acostumados aos movimentos limitados por esse emaranhado, um dia algo nos faz despertar aos fios que não nos sustentam, apenas nos amarram. E descobrimos, como os galos a cada manhã, que não é preciso abandonar a Ercília: basta tecer um toldo livre de armação – livre de mágoas de culpas de responsáveis -, tomando cuidado, ao apanhar e lançar os raios que tecemos com os outros, de buscar apenas os sentimentos que nos permitam apreciar a vida em sua poesia.

Talvez o perigo do viver esteja em deixar a vida se esvair em um claustrofóbico novelo por medo do fio que a sustenta romper com a leveza do nosso bailado.

Pato Branco, 29 de setembro de 2009


Publicado em www.institutohypnos.org.br