terça-feira, 26 de abril de 2011

O absurdo e o escárnio

Estamos tão anestesiados pelo absurdo que vivemos em nosso quotidiano que o escárnio pode ser atirado em nossa cara e ainda agradecemos. Entregues a uma liberalidade capaz de fazer corar um liberal de boa cepa – desses que não se encontra por estes tristes trópicos –, as cidades brasileiras caminham para se tornar aglomerados de multidões solitárias, concreto e asfalto – por onde se deslocam cidadãos virtuais em bolhas metálicas individuais. Claro, há uma resistência orgânica da urbe: o território concreto contra o espaço tratado indiferentemente às suas características naturais. Mas a cidade insiste e vai atropelando o que tiver pela frente para dar passagem aos carros – que com seus motores com cem cavalos de potência, por suas vias se movem mais lentamente que galinhas.

Pela manhã, ligo o rádio, Band News FM ou CBN, e lá estão as duas emissoras com seus helicópteros e notícias sobre o trânsito. Congestionado para cá, tudo parado ali, flui muito lentamente não sei onde, tantos quilômetros de lentidão acolá, engarrafado entre tal e qual ponte sentido pra lá, aviso pra quem vem que é melhor não chegar, porque não entra, e pra quem sai, surpreendentemente o trânsito flui quase normalmente. Ao volante, reclamamos, bufamos, lamentamos, xingamos e aceitamos: é assim, que fazer? Encontrar meios de aproveitar esse tempo – audiobook parece ser a tendência da moda. Eis o absurdo que não mais nos perturba realmente.

O escárnio fica por conta das emissoras. Logo após o anúncio de tudo parado, a propaganda de mais um veículo – para você contribuir com todo esse caos. E achamos normal anunciar carro depois de noticiar os males do transporte individual que estamos sofrendo ao vivo. Tão normal que compramos a caranga anunciada.

E pela manhã, parados no trânsito, criticamos as ruas insuficientes da cidade, xingamos o motorista que demorou cinco segundos para dar o arranque, bufamos, lamentamos, reclamamos e aceitamos. Fazemos bem: se contribuímos para escarnecerem de nossa cara, por que não aceitar o absurdo de nosso dia a dia?


Campinas, 26 de abril de 2011.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Onde os mágicos não têm vez

Sempre que há a discussão se o copo está meio cheio ou meio vazio me põem na equipe do meio vazio – o que acho uma injustiça, tamanho preconceito. Mas hoje poderão se regozijar em júbilo que estão corretos. O Mágico (L'illusionniste), filme de Syvain Chomet, a partir da adaptação do roteiro de Jacques Tatit, não cabe a discussão do meio cheio vazio ou meio vazio, mas do três quartos vazio ou do um quarto cheio (aviso: ao fim desta crônica entrego fim o do filme).

Conta a história de um ilusionista na década de 1960 que tenta sobreviver se apresentando em casas de espetáculo – ou onde lhe oferecerem oportunidade. No meio do caminho, depois de passar por um vilarejo escocês onde faz algum sucesso, uma jovem aldeã acaba acompanhando-o à sua revelia e passa a morar com ele em um hotel em Edimburgo.

O filme é mais do que decadente: é o fim da linha. Muito bem pensado, não há nada que salte os olhos nessa direção: os traços são leves, o filme é feito de diálogos (silenciosos) leves, e apenas o palhaço destoa no seu comportamento.

No correr do filme, o que se vê é o mágico penando para poder seguir na profissão escolhida – ao mesmo tempo que tenta satisfazer aos anseios ingênuos de consumo da garota –, assim como toda a trupe de uma época superada que está hospedada no mesmo hotel da capital escocesa. E dando apenas pequenas deixas, é sobre isso que o filme trata: o fim de uma época, massacrada pelos meios de comunicação visual de massa. Não há razão de ser para artistas desconhecidos e sem o encantamento da indústrial cultural: diante de uma banda impulsionada pela televisão que leva milhares de fãs à loucura, ou da magia do cinema, o que é um mágico, um ventríloco, trapezistas, um palhaço? A opção que resta é a de se submeter: fazer seus truques em vitrines de lojas para divulgar mercadorias. Deixar de ser um artista para ser um produto qualquer, descartável e substituível ao primeiro atraso.

Creio que quanto à metade vazia do copo não haja muita discussão.

Sobre a outra metade. O um quarto cheio do copo poderia ser a mocinha deixar de ser uma empregada em um fim de mundo para se embelezar e viver um sonho de princesa na cidade grande. O quarto vazio, que o filme termina antes de dar as doze badaladas e a carruagem virar abóbora. Vestido, sapato, acessórios, o que surgiu como mágica custou muito suor ao mágico, e ela dava claros sinais de não estar nem um pouco atinada à realidade quando tentou comprar um relógio com uma moeda. Se deixava levar pelo engodo das aparências – justo na sociedade do espetáculo. Havia, sim, um príncipe, bonitão e erudito, pelo que aparentava. Seriam felizes até quando, se é que seriam felizes?

Mágicos não existem, diz o recado de despedida do ilusionista, junto a um maço de dinheiro. Existiam até um momento atrás. E a mocinha em breve descobrirá que o maravilhoso mundo que tem diante de seus olhos, esse onde mágicos não têm vez, é pura ilusão.


Campinas, 11 de março de 2011.