quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os novos vizinhos

Ao voltar das férias, descubro que tenho vizinhos novos, um casal e seu pimpolho. Ainda não vi o garoto, mas já percebi que é um piá bastante ativo, que gosta de gritar, cantar, correr pelo corredor, batucar no hidrante, tamborilar nos vidros. Se os pais ajudarem, sorte dele ter o Centro Cultural São Paulo e aquele simpático gramado no teto logo em frente de casa - pode não ter parquinho, mas dá para pular bastante. O que estranhei mesmo foi a forma de educar o filho, baseado na conversa, é certo, porém um pouco rude, me pareceu. Eu estava em casa, lendo, o moleque havia entrado há pouco nos trinta e cinco metros quadrados que lhe servem de lar. Algum tempo depois escuto o pai esbravejando: "é pra fazer aqui! Aqui! Ouviu? É pra fazer aqui, e não lá! Precisa que eu repita?", e repetia indignado que era pra fazer aqui e não lá, uma, duas, três vezes, aqui, não lá, ouviu? Pela indignação, imaginei o que o garoto não devia ter feito: algum desenho com ácido úrico na parede da sala, como eu na minha infância fazia no muro de casa - lembro que me divertia bastante com isso, era mais divertido que procurar formas em nuvens, e às vezes saía uns desenhos tão bons, tão parecidos com sombra de pessoas, por exemplo, que eu lamentava que logo viria o sol para apagá-los (na época não havia máquina digital para registrar minha arte efêmera, e meu pai não me emprestaria sua semi-profissional para isso. Quem sabe hoje eu não fosse um Vik Muniz, enfim). O garoto não voltou a correr pelo corredor pelo resto da tarde - imaginei que estivesse de castigo. Hoje encontrei o vizinho no elevador (o pai). Não animado em conversar sobre o tempo (diga-se de passagem, depois de Jaraguá do Sul e Pomerode, o calor de São Paulo é até tranqüilo) e querendo se mostrar um vizinho preocupado em não perturbar os outros, me perguntou se eu passava o dia em casa, se não estava incomodado com eventuais barulhos, e explicou: "a cachorra é novinha, e não sei se ela não fica latindo quando não tem ninguém em casa". Respondi que nunca havia ouvido qualquer barulho que indicasse um quadrúpede no apatamento ao lado. Ele se disse aliviado, e ressaltou que se ela viesse a incomodar, eu podia falar. Um cachorro? Fiquei mais aliviado em saber (desconfiar, na verdade) que aquele método de educação não era pro filho. Mas fiquei sem graça em dizer que o dono, sim, estava incomodando um pouco com seus urros irados de que era pra fazer aqui, aqui, e não lá - e repetir isso trocentas vezes.   

São Paulo, 22 de janeiro de 2014

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Sensibilidades extras

É algo que me admira, e tento entender o que faz com que uma pessoa tenha uma sensibilidade extra, seja capaz de captar como que intuitivamente certas coisas que as demais levam tempo e/ou estudos para formular. Tempos atrás uma amiga fez com que eu recordasse que eu tinha um pouco dessa percepção, quando pré-adolescente (Mafalda já se questionava o porquê dos adultos insistirem em reconhecimento tardio). Meus amigos sempre falavam de carro, de qual iriam ganhar quando fizessem dezoito anos ou entrassem na faculdade. Lembro de um deles, com dez anos, me contando (estávamos sentados no meio-fio, num fim de tarde alaranjado) que ganharia um Kadett quando passasse em medicina. De minha parte, preferia uma moto. Não que preferisse moto a carro, pelo contrário, porém meu raciocínio era: com o dinheiro para comprar um carro popular dá para comprar uma moto mais simples da BMW, ainda assim uma BMW. Muitos anos depois fui entender o que eu dizia ali: carro não era para transporte (eu morava em Pato Branco, quase todo lugar que eu precisava ir, poderia ir "de a pé"), e sim para valorização da minha imagem: assim sendo, uma moto BMW me tornaria alguém melhor do que um Gol, um Uno, um Kadett. Enfim, minha amiga. Tempos atrás me contou que iria comprar um celular de mais de mil reais, porque assim ganharia respeito das demais pessoas. Um raciocínio tosco, sem dúvida, mas não por achar que seu valor como pessoa estaria num celular caro, e sim por dizê-lo abertamente, sem nenhuma desculpa cretina que inventamos para justificar uma compra que só se justifica pelo fato de não nos darmos valor e aceitarmos o discurso publicitário (aquele que diz que não valemos nada se não tivermos e ostentarmos). Não se troca de carro, celular, roupas, computador todo ano por causa de controle do rádio no volante, meio mega pixel a mais de resolução, um giga de memória ram, a gola em v. Troca-se porque aceitamos o discurso de que só existimos e somos alguém na medida em que consumimos, e tanto mais alguém seremos quanto maior o valor do penduricalho inútil que compramos, justificado por justificativas hipócritas e socialmente aceitas. Este caso me fez lembrar de minha primeira namorada, uma das pessoas mais sagazes com quem já tive contato. Sagaz e inteligente, sempre invejei sua percepção - desperdiçada no que eu entendia como um auto-boicote cruel. Certa feita seus pais a puseram para ler três revistas semanais, para ela "se informar" (não falariam em ficar "menos alienada", porque isso é discurso de esquerdista). Ela tinha dezoito anos na época, e quando começou a falar das impressões das reportagens e do que elas tratavam, fiquei embasbacado: sabia que nunca tinha lido Adorno ou qualquer outro teórico da indústria cultural, mas foi capaz de sintetizar muito do que esses figurões diziam com três revistas! Ah se eu tivesse metade da sua capacidade... Parece que esse tipo não se anima com a universidade e a pesquisa, e se cursa um curso superior é só à medida que necessitam para conseguir determinado emprego. E por falar em capacidades e ex-namoradas (faço aqui justiça às demais "RAS" que, apesar do gosto duvidoso, tinham todas inteligências e beleza acima da média, muitas que se auto-boicotavam também), não sei se é só comigo, mas me impressiona como percebo logo no primeiro encontro se o rolo é sério ou não - sempre com acerto (o que pode significar relacionamentos breves, ainda assim profundos). Deve ser algo da tal "postura corporal racional-pré-racional" que digo querer estudar num eventual doutorado. Para concluir este texto, que foi me abrindo recordações e reflexões inesperadas, volto à minha amiga e seu celular de respeito: menos de um mês depois foi assaltada e levaram justo seu celular; foi obrigada a voltar ao velho aparelho e tentar ganhar respeito um pouco por o que é.   

São Paulo, 21 de janeiro de 2014.