quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Hoje acordei leve [memórias feitas de saudades]

Chego em casa onze e cinqüenta e oito da noite, silêncio me habita. Nem leve, nem pesado: silêncio. Faz um ano. Seguimos nossas vidas, carregamos sua ausência. Sua mãe comentou: "geralmente levo bem, mas tem dias que bate uma tristeza, uma saudade". Imagino. Ou melhor: sei como é - porque a dor da sua família é a mesma que a dos seus amigos. Após as badaladas para o início da missa - na mesma igreja na qual você e seus irmãos foram batizados -, uma garoa fina começou a cair, acompanhando os olhos cheios d'água de Djalma e meus, relembrando aquele fatídico vinte e oito de agosto de dois mil e treze. Não faz sentido - é tudo o que consigo concluir do abismo que se abriu sobre meus pés depois daquele telefone no meio da madrugada. Sei que a sensação de Djalma, depois do telefonema no meio da manhã em Brusque, foi a mesma. Relembro agora de quando nos encontramos, no velório, no dia seguinte: foi o abraço dele - como de tantos outros amigos - que evitou que eu desabasse de vez. Mas a falta de sentido continua - e eu busco você nas coincidências surgidas depois da sua morte: o copo, os e-mails, Luis Gotardo. Na sua casa, a pizza não foi paga com seu VR (que eu não conseguia decorar a senha). Cigarro, café, Coca: cadê você? O QGinho povoado por recordações. As lágrimas me sobem. Seus livros não estão mais nele - sua mãe comprou uma estante nova para a sala. Vejo no mural uma nota de jornal que eu nunca reparara: Se Da Vinci fosse pop. É você na foto da matéria, dois mil e quatro. No elenco, seus amigos. Do curso de teatro surgiram, mas a impressão é que amigos eram desde antes, desde sempre: ali apenas se encontraram. Vocês encenaram Beckett. O absurdo, a falta de sentido (e me pergunto se algum dia te mostrei minha peça "O silêncio", um continuando Godot). Apago a luz, uma tênue claridade branca entra pela janela, o alumínio da escada se destaca: silêncio. Silêncio, apesar da conversa animada na cozinha. Há tristeza, tristeza de saudade - muita. Mas não é uma tristeza pesada. Eu havia notado ao despertar, ciente de que dia estávamos, que eu acordara leve - estranhamente leve. À noite, entendi o porquê, no "Porra, Marcos", do Marcos, no texto das intersecções da cidade e dos afetos do Yane, na conversa com Lauro, no abraço de Djalma, no acolhimento da sua família, no café na sua casa, no sorriso dos seus pais e seus irmãos, na foto sua com Matheus e Victória, sorrindo com língua de fora para a câmera: você nos povoa - você nunca partiu.

São Paulo, 28 de agosto de 2014.

Para Patrícia Misson, que me povoa, como a tantos outros.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Aécio Neves pode dar novo rumo à política brasileira [Eleições 2014]

Com a entrada de Marina Silva no lugar de Eduardo Campos para a disputa da presidência da República pelo PSB, Aécio Neves e o comitê de campanha tucano provavelmente mudarão o foco de suas preocupações de forçar um segundo turno para chegar ao segundo turno (Marina estará muito próximo dele nas pesquisas, se não superá-lo logo de cara). Como o projeto do senador mineiro é para 2018 (claro que ele não vai se incomodar em ser eleito agora, mas todos sabem que suas chances são, desde o início, reduzidas), ele tem a oportunidade mudar a trajetória do seu partido e, conseqüentemente, da política brasileira.
É fala recorrente entre os bons analistas políticos que com a polaridade PT-PSDB no plano nacional o primeiro passou a empurrar o segundo cada vez mais para a direita. De partido de centro/centro-direita com ideais progressistas, o PSDB foi se convertendo em partido de centro-direita/direita conservador/reacionário. Serra, no segundo turno de 2010, foi a coroação desse movimento, transformando o partido outrora alinhado com a tal "terceira via" de Clinton em uma versão light do Tea Party republicano. Para lembrar: na expectativa de atrair o eleitorado mais conservador, que no primeiro turno tinha em Marina sua representante natural, Serra mandou pelos ares o acordo entre PT e PSDB para não entrar em temas polêmicos em que ambos os partidos defendiam bandeiras progressistas, como aborto, maioridade penal, legalização das drogas, casamento homoafetivo. Como faz parte do grande jogo político, que visa a obtenção do poder estatal, o PT teve que se adaptar ao movimento de Serra e caminhar, ele também, mais para a direita, escamoteando bandeiras típicas da esquerda. A atitude de Dilma é criticável, mas o PT ficou ali numa aporia: ou ocultava sua pauta de liberalidade nos direitos individuais ou perdia o poder para um candidato que se pôs claramente contra essa pauta. Garantir o poder era a melhor forma de evitar um retrocesso maior - o discreto Marcelo Crivella é quase inofensivo no ministério da pesca e o tosco Marco Feliciano é peixe pequeno, bem menos perigoso que o pastor-coronel Silas Malafaia.
Como Marina entra como candidata natural dos votos dos mais conservadores, junto com o pastor Everaldo, Aécio tem a possibilidade de escolher se disputa com ela esses votos, reafirmando o conservadorismo da sociedade brasileira, ou dá uma guinada à esquerda, em direção às bandeiras que nortearam a fundação do PSDB e hoje (infelizmente) têm no PT seu único defensor (dentre os grandes partidos). Penso que qualquer que seja seu movimento, ele deve ter dificuldades para ir ao segundo turno - essa escolha é principalmente para os próximos quatro anos.
Se optar por assumir um discurso mais à esquerda, é capaz de capturar alguns descontentes com o PT, mas que votam nele pela questão dos direitos humanos. Com isso, forçaria o Partido dos Trabalhadores a caminhar mais para a esquerda, para manter esse eleitorado - ou para a direita, assumindo o papel agora do PSDB, e perdendo grande parte da sua base histórica. Se pondo à esquerda, a bancada evangélica pode ver seu poder de barganha diminuído, pois na tribuna do senado estará Aécio defendendo bandeiras progressistas, de olho em 2018. No âmbito interno do PSDB, esse movimento poria em xeque o poder dos caciques paulistas, o que pode enfraquecê-lo ou confirmá-lo como grande liderança tucana. O PSDB de São Paulo se transformou em herdeiro do malufismo para o eleitorado abastado mais reacionário e ferrenho crítico dos direitos humanos (ou defensor dos "direitos humanos para os humanos direitos"). Exemplos: rampa anti-pobre e defesa da criminalização do aborto por Serra, projeto de diminuição da maioridade penal por Aloysio Nunes Ferreira (quando o estado de São Paulo não consegue sequer atender suas próprias diretrizes nas fundações de ressocialização de menores infratores, e só consegue ter paz nos presídios porque estes são controlados de fato pelo PCC), exaltação e legitimação de assassinatos extra-judiciais por parte dos seus subordinados por Geraldo Alckmin ("quem não reagiu está vivo" é a versão Opus Dei para "bandido bom é bandido morto").
Há, contudo, uma série de questões que surgem ao se levantar essa hipótese de guinada à esquerda (pouco provável, admito). Primeiro: defender tais bandeiras significa se aproximar de FHC (lembre-se que este perdeu a prefeitura paulistana justo por conta desse eleitorado ultra-conservador e da Grande Imprensa partidária) e se afastar do resto do alto tucanato paulista - estado até hoje hegemônico na legenda. Teria eles força suficiente para tal movimento? Segundo: significa priorizar cálculo político e não publicitário, e é de se questionar se ele teria poder para contradizer seu marqueteiro. Terceiro: Aécio Neves e o PSDB acham mesmo relevante a defesa efetiva dos direitos humanos e ampliação dos direitos individuais?