sábado, 22 de novembro de 2014

Entre lembranças e coisas caras



São Paulo amanhece sob garoa, um convite para ficar em casa, bebendo chimarrão e lendo, quem sabe conversando. No ônibus Tatuapé-Guarulhos, o motorista desfia alguns preconceitos moralistas paulistanos. Chego ao aeroporto junto com a delegação do Paraná Clube - não vejo o Ricardinho. No avião, seguro o sono para poder ver a decolagem: ver a cidade viva diminuindo logo abaixo sempre me emociona - identifico o Museu do Ipiranga em meio a selva de pedra.
Mi Buenos Aires querida! Lembro de ter ouvido isso de um passageiro quando nos aproximamos, no vôo da TransBrasil, em 1999. Eu olhava pela janela, apreensivo e meio arrependido: vai saber o que poderia acontecer comigo na cidade grande? A capital portenha, ao menos no trecho que o avião percorre - claramente de classe alta - tem árvores, nas casas e nas ruas, além de piscina em cada quintal. Desço no Aeroparque, o responsável pela sua administração é o Aeropuertos Argentina 2000 - dá a sensação de modernidade ultrapassada, quando 2000 era o futuro. Vou caminhando até o albergue, pouco depois do obelisco. Logo na saída, vejo barcos, veleiros (meus conhecimentos náuticos não me permitem discriminar com propriedade) no rio da Prata e várias pessoas pescando - na beira do rio há banquetas de cimento com suporte para a vara. Eis aí registros que eu não possuía das minhas vindas anteriores. Há também pessoas ocupando a orla, assim como adiante haverá muitas ocupando as praças, e demoro para visualizar o primeiro conjunto de mate rodando os amigos que desfrutam a tarde de sábado na cidade.
Pelo que se noticia no Brasil, imaginava uma cidade decadente, ao contrário, sou obrigado a desviar de obras de melhoria urbana. Em certa altura, tenho a impressão de reconhecer o lugar. Viro à direita e passo defronte um parque, pouco depois... Sim! Foi ali que um pastor alemão e um doberman vieram correndo na minha direção (e da amiga que se escondeu atrás de mim). Não mordem, avisou o dono pouco depois, passando de bicicleta. Veio tarde o aviso, já tínhamos pulado a grade de proteção e eu estava com o cóccix doendo - ou, como costumo simplificar, o dia em que quase quebrei o cu. De diferente, o parque com grades e moradores de rua sob a ponte do trem - Buenos Aires a cada visita ganha mais ares de América Latina. Decadência eu senti ao entrar no shopping, ali perto - shopping onde eu e meu irmão compramos bananas e saímos chocando a comunidade da Recoleta por comê-las em público e sem pudor. Porta de entrada quebrada, escadas rolantes não sei se sujas de graxa ou de ferrugem, piso antigo que, fosse no Brasil, teria sido trocado. Por um instante achei que o que sobrara do shopping fora apenas o mercado, mas não: segue firme e forte. Ali minha segunda grande decepção do dia: empolgado com o peso fraco, planejava torrar um grana, principalmente em livros, ao dividir tudo por três (e não por cinco, como quando fui a Bernardo de Irigoyen, durante a copa). Descobri que após essa divisão eu me deparia com preços de São Paulo, ou mais caros! Entre seis e oito reais um café, por exemplo. Passo por Recoleta e Palermo, apesar dos pesares, a cidade insiste no seu ar europeu. Após mais de duas horas de caminhada, chego ao albergue. Busco na internet dança contemporânea e descubro que perdi o horário.

Buenos Aires, 22 de novembro de 2014

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Buenos Aires Paradiso



Faz muito tempo que assisti ao filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Tanto tempo faz que não sei se as imagens que recordo do filme são realmente dele, ou são de minhas vivências desde então, confundidas nos confusos cafundós da minha memória. Se não me equivoco, a viagem do protagonista à cidade natal, para o enterro do antigo funcionário responsável pelas projeções do cinema local, é mais do que uma viagem no espaço: se dá antes no tempo. E na cidade, ele ainda pode assistir à demolição do seu passado, o cinema Paradiso.
É com a impressão de que farei uma viagem no tempo mais que no espaço que arrumei a mala para a semana que passarei em Buenos Aires.
Fui a primeira vez à cidade em mil novecentos e noventa e nove, no ápice da crise pós fim do plano Real, dólar a dois e pouco para um, peso a um para um. A Argentina ainda era modelo de sucesso para Mirians Leitões da vida. Eu era um adolescente com a cara cheia de espinhas, aparelho nos dentes e vasta cabeleira a me preencher a cabeça. Era minha primeira viagem para o exterior e Buenos Aires não era exatamente meu desejo: planejara de início a Escócia (e olha que na época eu não conhecia Mogwai e Belle and Sebastian), mudara a rota para Brisbane, Austrália, e acabara não saindo do cone sul da América do Sul. Havia um pouco de decepção, é certo, que foi superada pelo encanto portenho: eu, um caipira de Pato Branco, que havia ido três ou quatro vezes a São Paulo e morria de medo da cidade grande (e da pequena também), pude descobrir o prazer de flanar anônimo e a esmo. Por três semanas bati perna pelo centro expandido e alguns locais mais distantes (como a San Isidro da guia do curso de espanhol, Mariana), tirando fotos feito um turista japonês. Ao voltar ao Brasil, Buenos Aires se tornara minha Pasárgada - ainda que eu não fosse amigo do rei.
Voltei à cidade em dois mil e seis, quando meu irmão ganhou de aniversário uma viagem de mochilão até a Patagônia e eu fui junto como guia e intérprete - era também a primeira viagem dele ao exterior (Ciudad del Este, Puerto Iguazu e Bernardo de Irigoyen não contam). Abatida pela crise, a cidade ganhava ar de América do Sul, naquilo que, infelizmente, há de negativo no subcontinente: pedintes nas ruas, crianças cheirando cola, prostitutas se oferecendo a turistas. Apesar dos pesares (que, sete anos antes, não eram inexistentes, mas permaneciam longe das vistas dos turistas, do lado de lá da ponte da Boca), Buenos Aires seguia como minha Pasárgada: já visitara cidades no velho mundo, como Barcelona e Lisboa, que me encantaram também, porém não tanto.
E agora, me pergunto enquanto soco cinco camisetas, uma toalha e um chinelo na mochila, que será dessa viagem? Que 'eu' encontrarei lá, perdido na avenida General Las Heras, a andar e andar pela cidade? Há quase três anos Buenos Aires perdeu o posto de Pasárgada: desde que me mudei para São Paulo passei a amar esta cidade insana, de violência simbólica intensa, e não tenho vontade de morar em outro lugar - ao menos dentre as cidades que já passei: guardo em algum canto vontade de morar em uma Nova Iorque ou Tóquio imaginada de minhas leituras. Há um receio nesse reecontro, reconheço, um medo de descobrir algo que perdi e não notara. Assim mesmo deixo tudo preparado para não perder o vôo.

São Paulo, 21 de novembro de 2014