domingo, 15 de março de 2015

O Quarto Poder para além do Estado Democrático de Direito no Brasil

Do século XV ao século XVIII a burguesia, ao mesmo tempo que financiou, se utilizou do Estado pré-burguês – as monarquias absolutistas de união nacional – para deitar as bases para seu crescimento e para a consolidação da sua influência e do seu poder. Uma vez certa do seu poderio, a burguesia pôde, finalmente, tomar o Estado, de forma a não ser mais seu principal financiador, assim como fazê-lo servir aos seus interesses. A grande preocupação na implementação desse novo Estado burguês foi que ele fosse forte o suficiente para controlar a turba (que se mostrava pela primeira vez ferramenta útil e eficiente para convulsionar Estados), mas não o bastante como o era o anterior, capaz de prejudicar o bom andamento "natural" dos negócios. Ou seja, um Estado, sim, forte, mas limitado – garantidor da ordem e respeitador da declaração dos direitos do homem e do cidadão.

Dentro dessa lógica de controle do Leviatã, ganha destaque o modelo mais bem apresentado por Montesquieu, em fins do século XVIII, da divisão dos três poderes – legislativo, executivo, judiciário –, criando assim um sistema de pesos e contrapesos garantidor de um equilíbrio entre os poderes estatais que pode não ser perfeito, mas ao menos evita o perigo de arroubos despóticos do executivo. Tal modelo tripartite, cuja justificativa ainda hoje é essa de equilíbrio entre os poderes, pode ter funcionado realmente conforme proposto enquanto os cidadãos eram apenas uma pequena parcela do povo. Conforme o populacho foi conseguindo adentrar no sistema político, sem que este se adaptasse à nova realidade, dando peso desiguais ao voto dos desiguais – como desesperadamente propunham os liberais, crentes de que o povo ignaro, inculto e incapaz iria utilizar desse poder injustamente ganho para usurpar legalmente a propriedade alheia, tal qual hoje a classe-média burra-porém-diplomada fala do Bolsa Família –, esse equilíbrio entre os poderes foi também se alterando. Quando, finalmente, o Estado foi adquirindo a forma necessária para atender aos desejos da burguesa, com o cidadão sendo identificado primeiramente com o eleitor, o aumento quantitativo destes implicou também na sua mudança qualitativa, surgindo o fenômeno da chamada democracia de massas. Nesta, o legislativo deixou de ser um contrapeso ao executivo, sendo antes um freio a ele. O governo da maioria é o governo da fração que possui o controle de toda a máquina representativa do Estado, executivo e legislativo, sendo a cisão dessa representatividade, a divisão real dos poderes, vista como a paralisia da administração. Esse freio é feito via oposição parlamentar, em especial pela necessidade de maioria qualificada em matérias fundamentais. É assim no Brasil com seu executivo hipertrofiado. Mas é assim também nos parlamentarismos europeus, em que executivo e legislativo estão umbilicalmente ligados. É assim nos EUA, em que o aparente sistema de contrapesos implica antes no imperativo de maioria do partido que controla o executivo tê-la no legislativo.

É de se questionar se apenas essa oposição parlamentar é capaz de frear a maioria. Institucionalmente, é claro que sim. Porém me parece haver um outro elemento capaz de influenciar a disputa entre os poderes de situação e oposição: o da comunicação de massa – que mesmo estando no século XXI, ainda se apresenta como "opinião pública".

A comunicação de massa surgiu pouco depois da democracia, mas é fruto da mesma sociedade de massas. Como a democracia, trouxe profundas mudanças nos hábitos e parece ter tido uma influência muito mais profunda. “Me parece” porque não sou entendido nos assuntos, e é claro que, bombardeado pela indústria cultural, é difícil não aceitar sua versão de que ela foi muito penetrante. Tendo a aceitá-la, mas não me comprometo tão cegamente.

Não falo aqui da opinião pública do século XIX, temida por Stuart Mill, por ser capaz de dar poder à massa para que esta pressione politicamente – já não bastasse a turba poder votar de igual para igual! Opinião pública, tal como é usada pela indústria cultural nos séculos XX e XXI, é uma sutil corruptela daquilo que foi teorizado no início do Estado Moderno e Contemporâneo, muito útil aos propósitos dos donos do poder – não só do Brasil, que fique claro.

Desde o início opinião pública tem ligação com a idéia de sociedade civil e, assim como esta, tem sido empobrecida em favor de uma noção de mercado - um empobrecimento paralelo não poderia deixar de acontecer com o conceito de opinião pública. Ora, no mercado não há opinião pública simplesmente porque não há a noção de Público. Ademais, mercado não tem opinião, tem apenas o pensamento utilitário de maximização de utilidades.

Partidos políticos, originalmente espaços de discussão e formação de opinião, há muito – uns cento de cinqüenta anos – são prioritariamente espaços de formação de quadros burocráticos – atualmente apenas isso. No espaço privado, a discussão é cortada pelo calaboca! da tv e agora da internet. Calaboca! necessário para evitar questionamentos não somente ao conteúdo como ao próprio meio, o que poderia perturbar o trabalho de adestramento e amansamento público.

Já a imprensa, dada sua estrutura industrial, unidirecional, não-dialogal, hierárquica, burocratizada – tanto quanto o Estado –, ao se arrolar o papel de formadora e divulgadora da opinião pública tem razão em assim afirmá-lo apenas na medida em que opinião pública passa a significar a opinião da mídia, a opinião de um segmento muito pequeno da sociedade, com interesses muito específicos, precisos, e nada interessados em dar voz à sociedade civil, a vozes destoantes. Em suma, em nada interessados em tornar o que eles chamam de opinião pública próximo daquilo que de fato significa opinião pública – e que é o conceito com o qual eles dizem trabalhar e que nos forçam a engolir.

Bem, nada de novo até aqui. E provavelmente nada de novo a partir daqui. Tudo tão gasto quanto as novidades da indústria cultural.

Indústria que desde a década de 1920 tem um poder fortíssimo – Hitler seria o melhor exemplo dessa época, porém não o único –, mas que só a partir da década de 1960 não conseguiu mais disfarçar sua hegemonia – o marco é a eleição de John Kennedy nos EUA.

Apesar de ser uma indústria, a indústria cultural guarda importante diferença para as demais – ao menos no que aqui nos interessa. A indústria automobilística em boa parte do século XX, e a indústria financeira desde o último quartel do século passado, são as indústrias motrizes do sistema capitalista. Isso não as impede, claro, de correr o risco de quebrarem – por culpa delas, como a crise de 2008, ou de terceiros, como as crises do petróleo na década de 1970. Quebras que não ocorrem de fato, porque o Estado é avalista dessas indústrias, por uma singela questão de auto-sobrevivência. E no caso da mídia, o que ocorreria no caso da quebra da indústria cultural? Eis uma pergunta que não faz sentido: apesar de ser uma indústria, não parece haver possibilidade de quebra, nos moldes das demais indústrias, porque o papel da mídia no jogo de forças de sociedade é outro. Nestes tristes trópicos, por inabilidade, ela acabou escancarando que outro papel é esse nos últimos anos, e o fez de maneira grosseira nas últimas eleições: é o que tentarei tratar a partir de agora, me atendo ao caso brasileiro. Antes, um parênteses: outra indústria que não quebra é a bélica, por razão similar à da cultural.

Com base nos ensinamentos de Goebbels, a mídia conseguiu construir uma mitologia acerca de si mesma – especialmente para seu braço chamado jornalismo –, de que é porta-voz da opinião pública (o conceito do século XIX), e que com base nos interesses da sociedade civil (que ela sabe melhor do que ninguém) fiscaliza o governo e o Estado. O Quarto Poder, como ela mesma se nomeia. E está correta. Mais correta do que admite quando pressionada. 

As últimas demonstrações da Grande Imprensa deixam à mostra que se trata realmente de um poder institucionalizado de fato – como o Executivo, o Legislativo, o Judiciário –, ainda que não de direito. E a briga desse Quarto Poder é justamente poder permanecer à margem da lei – o que significa, na prática, acima dela. Há, claro, uma série de leis e regulamentos que recaem sobre a imprensa, a mídia, o jornalismo, pondo-os sob o Estado Democrático de Direito. Ocorre, porém, que ao ignorar o real poderio desses veículos, a real função na sociedade, o estatuto de fato no jogo de forças e no equilíbrio entre os poderes, o Quarto Poder acaba por se tornar um poder independente, paralelo, “auto-regulado”, além do Estado Democrático de Direito, na prática acima da Constituição Federal.

Os exemplos do poder da imprensa tupiniquim e de como se imiscui nos outros poderes são fartos. Proconsult e Collor são exemplos de como se interfere (ou tenta-se) nas eleições, logo, no legislativo e no executivo diretamente – para não falar indiretamente, como nos arrastões de 1992, ou em reportagens de capa da Veja. Escola Base, caso Nardoni e caso goleiro Bruno, são exemplos do quarto poder assumindo o poder legislativo e judiciário: queda do princípio da presunção de inocência e julgamento “sumário em capítulos” ou novelesco (todo mundo sabe o final, mas vai enrolando para ter audiência e garantir a venda de espaço publicitário): nestes casos mais recentes tem-se mostrado impossível ao poder judiciário inocentar, mesmo que não haja provas suficientes para incriminar os suspeitos, porque a imprensa, com base na “opinião pública”, já incriminou os culpados. Ponto, está decidido. No primeiro caso, ainda que a justiça – anos depois – tenha notado o equívoco do julgamento da imprensa, a polícia da imprensa – o povo – já havia destruído a escola, e a vida dos donos havia sido bastante prejudicada pelo fato não-acontecido-mas-a-imprensa-disse-logo-aconteceu. Pode-se entrar na justiça pedindo direito de resposta. Uma palavra contra mil imagens, de que vale? Se apareceu na Globo.

Toda tentativa de dar à imprensa um estatuto legal condizente com seu tamanho, contudo, é encarado por esta como tentativa de censura, um retorno à época da ditadura, o aflorar de idéias stalinistas que perduram na esquerda que domina o subcontinente sul-americano. Curiosamente, dos principais veículos da Grande Imprensa alérgicos a qualquer regulamentação externa, dois deles foram entusiastas apoiadores do golpe militar de 64, Folha e Estadão – se hoje reescrevem sua história, a la 1984, é outra história. O outro, é quase uma BBC brasileira – porém para-estatal e sem a mesma qualidade –, criada já tendo em vista a força estratégica do quarto poder: a rede Globo de televisão. Somente a Veja não esteve nessa festa, mas que com o tempo, por conta própria, se tornou uma revista neofascistóide (com as peculiaridades que haveria num fascismo do século XXI, o qual mereceria um novo nome, deveras). Na América do Sul, Cháves se mostrou um ditador ao fazer uso de prerrogativas constitucionais ordinárias e não renovar a concessão pública de uma emissora de tv. Os Kirchner, na Argentina, há muito mostram seu caráter autoritário ao bater de frente com a imprensa – característica do casal, que fez o mesmo com os militares, por exemplo. No Brasil, todo e qualquer questionamento de uma autoridade pública à imprensa é tentativa de censura. A criação do Conselho Federal de Jornalismo foi uma tentativa de censura sem paralelos na história da humanidade e sem direito a ser discutido – deveu simplesmente ser combatido. A criação de uma tv pública pelo governo federal foi considerada como absurdo sem tamanho – enquanto PSDB deixar a qualidade da TV Cultura definhar por conta de ingerência política na emissora não é problema. A pulverização do orçamento publicitário do governo federal, antes concentrado na Grande Imprensa, foi outro sinal de ingerência em assuntos que não competiam ao executivo. Por fim, vem agora o ataque do legislativo ao quarto poder, por intermédio do Controle Social da Imprensa, tentativa de censura que partiu de deputados “stalinistas do PT”, como já denunciou em editorial o jornal Valor Econômico, e que teve início no Estado do Ceará e vem se alastrando por todo o país – inclusive um deputado stalinista do DEM de São Paulo fez proposta similar. Veja a audácia: executivo e legislativo se unindo para calar a voz do povo! Curiosamente, toda tentativa de discussão que o governo abre, a Grande Imprensa democraticamente se recusa a participar. E toda auto-regulação o governo democraticamente não tem o direito de passar perto.

Tudo isto é muito novo no Brasil: de 1964 a 2002 não houve conflito grave de interesses entre os poderes. A única tentativa, a criatura contra o criador, Collor, não conseguia sequer agir em nome do poder executivo. Assim, as eleições este ano no Brasil, principalmente a presidencial, além de uma disputa entre partidos e entre egos – porque entre projetos de país e mesmo de governo, essa disputa foi bem marginal –, acabou assumindo também – e de maneira consideravelmente visível – a disputa entre poderes. De um lado o poder executivo, do outro, o quarto poder da Grande Imprensa – nada muito diferente dos últimos oito anos, em suma. A imprensa muito criticou Lula por este não ter seguido a liturgia do cargo, e saído pelo Brasil fazer comício junto com sua candidata. Não nego que Lula adora um palanque, coisa que FHC não era tão afeito: preferia uma tribuna, um jantar solene, uma honraria qualquer no primeiro mundo. Mas FHC só seguiu a tal liturgia do cargo em 2002 porque ninguém além de Ruth Cardoso queria ele por perto – e isso porque ela não era candidata. Deixemos de lado o palanquismo do presidente, e nos centremos na presença dele na imprensa, ou como a imprensa lidou com a presença dele na eleição. Me centro no episódio da bolinha de papel.

A reação exagerada do candidato da oposição, não precisava falar, foi patética – quase teve um traumatismo craniano por causa de uma bolinha de papel? Nem FHC mandando o exército fazer exercícios com ovos chegou ao mesmo nível. Covas, com a cabeça sangrando por causa de uma paulada, não fez drama parecido, se recusou a se vitimizar desse tanto. Porém, mais impressionante foi a dimensão dada ao episódio: mais de uma semana de noticiário sobre, com microfones abertos ao ferido acusar livremente o partido adversário de inimigo da diferença, da democracia, da liberdade, da ordem, da paz social – um passo para o fascismo, em suma. Episódio parecido ocorrido com Dilma, o dos balões d'água em Curitiba – cidade que congrega vários grupos neonazistas, diga-se de passagem e sem relação –, mereceu bem menos destaque. Curiosamente, Lula foi um dos personagens que fez questão de que o episódio seguisse em relevância. Havia, por um lado, o cálculo político de expôr Serra ao ridículo por mais tempo, e este não poderia voltar atrás, deveria reiterar sua versão, sua vitimização por conta de uma bolinha de papel. A Grande Imprensa, contudo, fez marcação serrada (com o perdão do trocadilho) no presidente. Não lembro qual foi a comentarista de política (ou era de economia?) da CBN que disparou que o presidente, tendo traquejo no lidar com a mídia, deveria maneirar no tom de agressividade, que não cabia a ele fazer o tipo de crítica que vinha fazendo nem ao candidato Serra nem à cobertura do episódio. A nada imparcial Eliane Cantanhêde, da nada imparcial Folha de domingo, 24 de outubro, fez a mesma crítica: Lula não deveria ter dito nada sobre o episódio – outro fato que só faria com que saísse menor do que entrou na eleição. Para a Grande Imprensa, essa é a versão: um presidente diminuído por ter feito sua candidata vencer. Para a vida para além do quarto poder, a história muda um pouco.

Não que Lula não erre, não possa ou não pudesse cometer erros. Mas ele está escolado demais para erros tão grosseiros a uma semana da eleição, sendo O pilar de sustentação de uma candidata que disputa contra um candidato que tem toda a máquina do quarto poder a seu favor – como Collor tinha em 1989 contra ele. "Nunca o povo foi respeitado como agora, e a gente não pode jogar isso fora por um bando de mentira que está sendo contado (...). É uma vergonha a farsa que tentaram jogar na cabeça do povo”. Lula não acusou diretamente Serra de armar uma farsa, porque se tratava de um recado para Globo, Folha, Veja e companhia: “povo avisado de que foi tentada uma farsa, em eventual nova tentativa, não será preciso convencer ninguém, basta dizer 'eu já havia avisado daquela farsa, e está aí uma nova prova de tentativa de golpe nas eleições, porque eles não querem o povo no poder'”. O quarto poder teve que engolir o andamento normal da eleição, sem um novo Xerife Tuma como diretor de figurino de seqüestradores ou nova antológica edição no Jornal Nacional do último debate para, democraticamente, tentar alterar o resultado.

Porém, fica a pergunta: se Lula é tão sagaz no seu trato com a imprensa (ao menos após a derrota de 1998, ele, que já sabia fazer bom uso do palanque, aprendeu a dominar de maneira impecável o palanque eletrônico), por que não conseguiu segurar a Grande Imprensa durante seu governo? Por que o quarto poder segue como um poder extra-legal? Por que não fez aquilo que falou que era imprescindível fazer com relação à imprensa, em 1993, no documentário Beyond Citizen Kane?

Vejo durante o governo Lula um jogo um tanto ambíguo com relação à imprensa. Parece haver uma estratégia de longo prazo para diminuir a concentração de mídia no país e colocá-la sob o manto legal. É, como disse, uma estratégia ambígua, um tanto medrosa, outro tanto sutil (e esperta) – e conservadora, de qualquer forma. Começa com o privilégio que Lula desde sua primeira entrevista deu à Rede Globo. Segue que dois de seus ministros das telecomunicações – Miro Teixeira e Hélio Costa – tinham fortes ligações com os Marinho. O Conselho Federal de Jornalismo foi uma das poucas, se não a única grande tentativa positiva do governo de limitação não da mídia, mas do seu braço jornalístico. O que houve foram ações de fortalecimento da pequena e média imprensa, da mídia alternativa, da mídia local. Isso implica em certa perda de poder da Grande Imprensa, mas não é democratização da informação ou da mídia, visto que essa mídia, via de regra, pertence a pequenos coronéis locais – salvo a imprensa alternativa da internet, mas este é um caso complexo. Também as concorrentes televisas da Rede Globo ganharam fôlego do governo federal – tudo via pulverização da publicidade oficial. Além de diminuição do poder da rainha do quarto poder sobre a sociedade toda – Band e Rede TV!, por exemplo, não boicotaram a Conferência Nacional de Comunicação, a primeira, inclusive, não se opôs ao Conselho Federal de Jornalismo –, são medidas que permitirão aos poderes executivo e legislativo, quem sabe, enquadrarem o quarto poder ao Estado Democrático de Direito. Nada revolucionário, nada questionador do status quo, nada que prejudique sobremaneira a indústria cultural instalada no país ou a que ainda vai se instalar – ao contrário do que acreditam e ainda apregoam boa parte de militantes ou apenas deslumbrados com o PT. Afinal, trata-se de um partido institucionalizado e bem adaptado ao sistema. Pode ter objetivos reformistas de melhorias sociais e maior democracia – tudo dentro do que está estabelecido. Porque medidas fora dos parâmetros significa dar um tiro no próprio pé, atacar o próprio sistema que o sustenta. E o quarto poder é parte que sustenta o próprio PT.

Quando Veja, Folha, Globo, Estadão e tantos outros estampam em suas capas e manchetes de domingo que as tentativas de regulação e enquadramento da Grande Imprensa vão favorecer o PT, estão corretos. Porém mente quando dizem quem perderá com isso. A liberdade? A democracia? Sejam menos hipócritas! Eles, apenas: os Marinho, os Civita, os Frias, os Mesquita, os Saad, os Abravanel, os Magalhães, etc. E a nós, o povo, o populacho, favorecerá ou prejudicará? Não sei dizer ao certo, fica ao critério do consumidor decidir o que acha. Ao menos teremos mais opções de mentiras para escolher.

publicado originalmente na revista Casuística. artes antiartes heterodoxias. Edição 101 (janeiro de 2011). pp 93-97. www.casuistica.net

sexta-feira, 13 de março de 2015

Stifters Dinge em uma leitura kafkiana [Diálogos com o teatro]

"Uma composição para cinco pianos sem pianistas, uma peça sem atores, uma performance sem performers" - eis a descrição do espetáculo Stifters Dinge, de Heiner Goebbels e do Theatre Vidy-Lausanne, apresentado na segunda edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP). Um espetáculo sem atores - no máximo dois contra-regras - em uma mostra de teatro não poderia deixar de causar algum estranhamento; porém há algo no que é apresentado que nos soa familiar, natural - e não deveria ser.
A obra de Goebbels é inspirada na do escritor austríaco do século XIX, Adalbert Stifter (daí o título, "Coisas de Stifter"), o qual reconheço desconhecer - daí que minha leitura possa ficar seriamente prejudicada. 
Ao fundo, os cinco pianos, com suas entranhas de cordas e martelos à mostra, contracenam com árvores secas e outros elementos dos quais se extraem sons para acompanhá-los na apresentação. No meio, uma grande chaminé. Esse cenário me remete a Metrópolis, filme de 1927 de Fritz Lang - a fábrica engolindo pessoas com suas chaminés soltando fumaça. A diferença está que não há pessoas neste caso - a máquina libertando o homem ou suprimindo-o? (A aridez do cenário me faz acreditar na segunda opção). Entre os pianos e o público, três retângulos no chão. Ao lado desses retângulos, caixas de sons e outros "instrumentos musicais", como dois grandes tubos de pvc. À direita de cada retângulo, uma grande gaiola com um recipiente plástico cheio d'água.
A figura humana não está totalmente ausente: dois contra-regras aparecem para auxiliar a máquina, no início da apresentação - daí me vir a lembrança de Na colônia penal, de Franz Kafka. O homem a serviço da máquina, bem adestrado para o bom funcionamento da engrenagem. Primeiro eles jogam um pó sobre os retângulos pretos, tornando-os brancos. A seguir, abrem a água para cada um dos retângulos. Passado um tempo, recolhem as mangueiras e a cena fica toda ela por conta do cenário-máquina. 
O que presenciamos, a partir de então, é a demonstração daquela estranha engenhoca e sua música, acompanhada de um trabalho de luz complexo e discreto, marcante sem ser espetacular: basicamente focos nos diversos "instrumentos" espalhados pelo palco, projetores sobre nos retângulos, auxiliados por ribaltas rente a cada um, e um projetor para os pianos do fundo. O clima é sombrio, tenso. Sinto como se estivesse assistindo à demonstração da máquina kafkiana de Na colônia penal, porém sem o condenado - ou seríamos nós os condenados, apenas sem perceber que temos nossa pena sendo marcada no fundo de nosso corpo enquanto comemos nossa ração diária?
A ausência humana é interrompida pela projeção da imagem de um quadro que retrata algumas árvores e o céu - que se modifica, perde e ganha contornos e realidade conforme são alteradas as cores, contraste e saturação -, acompanhada de um longo texto em off - o qual, acreditei eu ser de Adalbert Stifter. Uma meia presença, portanto, diante de um movimento estático. Contradições que não nos perturbam. A seguir, uma entrevista com um Levi-Strauss pessimista e desesperançoso. Me questiono o quanto um estruturalista assentir a falta de perspectivas para a humanidade não corrobora Kafka: "há esperanças, mas não para nós". Em dado momento, o antropólogo relembra de uma brincadeira juvenil, de sair caminhando em linha reta até cansar, na esperança de achar algo esquecido pela civilização nas margens de Paris - esperança que, velho, ele recusa até para os rincões do mundo. Fachos de luz passam a percorrer os retângulos, como scanners, como a enfatizar Levi-Strauss: nada passa despercebido pelas máquinas da civilização tecno-industrial. 
A música volta a ser executada - o show não pode parar, a música não pode parar, o trabalho não pode parar. O ritmo é frenético, há coreografia para os martelos dos pianos, fumaça é solta próxima à base da chaminé. Levo um tempo até notar que os pianos e todo o cenário meio Fritz Lang avançam por sobre os retângulos, em direção ao público - seria a máquina kafkiana colapsando? Não era o caso. A máquina percorre os retângulos, pára diante do público, como a encarar sua próxima vítima, e ao retroceder restam as águas borbulhando. Me sugere o inferno de Dante, mais ainda o Hades - seria esse o caminho que a máquina reserva aos homens?
O espetáculo acaba. Aplaudimos o homem por trás da máquina, mas é a máquina que avança para agradecer. Rimos com a piada, não estranhamos a ausência humana, e descemos para ver de perto a engenhoca que parece saído de um conto de Kafka para nosso deslumbramento ingênuo.

São Paulo, 13 de março de 2015