quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Retrato de momento para 2018 (se houver eleições)

Capas da Veja, da Isto É, da Isto É Dinheiro, entrevista na TV Bandeirantes: a direita do atraso dá mostras de agir coordenadamente com vistas a 2018, tanto no plano partidário quanto midiático - ainda chamado de jornalístico, quando na verdade é mera agencia de publicidade oficiosa de interesses razoavelmente bem definidos e pouco falados.
Em tese é um tanto cedo tentar traçar um cenário para 2018, ainda mais quando nem se sabe haverá eleições e em que condições elas acontecerão - se terão relevância maior ou menor para o país -, contudo, mesmo assim, parece importante mapear estratégias - da esquerda e da direita.
Começo pelo campo mais bem organizado, a direita.
Há mostras de medo da possibilidade de Lula vir a concorrer, sem ser impedido pela justiça. Certamente esse medo vem não pela questão da justeza da justiça, que isso ninguém mais tem dúvidas, mas por possível cálculo político desta, e notar que barrar Lula seria jogar o país em um estado de confronto social que exigira a presença do exército - o que implicaria em pôr o judiciário em segundo plano, fazendo com que a casta perdesse muito do poder político que hoje possui. A questão que permeia o judiciário, ao que tudo indica, é se é melhor um presidente do qual não gosta mas está acuado e tentando reagir, ou um "presidente" mais afim aos seus propósitos que, pelo argumento das baionetas, vai enquadrar o judiciário.
Enquanto o judiciário não se decide, resta tentar desqualificar Lula - mais um pouco. Isto É ataca mais genericamente, anuncia que "começa a cedo a campanha da mentira" (certamente quem lê essa revista não vai notar que a campanha da mentira está a galope desde 2014, pelo menos), pondo no seu site Lula, Ciro, Bolsonaro e Marina (ela ainda está viva?). Bola levantada para, na mesma semana, Veja ("A política que assusta") e de Isto É Dinheiro ("Eles assustam o mercado") chutarem. Ambas tentam criar uma polarização não mais entre PT e PSDB, como de 1994 até 2014, mas entre Bolsonaro e Lula, com um sendo o antípoda exato do outro - dois extremistas, um de direita, outro de esquerda. Vamos assim descobrindo que a função atribuída pelos donos do poder a Bolsonaro é a de boi de piranha - função cumprida por Russomano nas últimas duas eleições de São Paulo. A questão é se vão conseguir pôr o monstro de volta na caixa, uma vez Bolsonaro não é um apresentador televisivo com discurso genérico, e as ideias que defende começam a ecoar na sociedade e nos grandes partidos - Doria Júnior que o diga.
Bolsonaro tenta se gabaritar como político sério, o que é muito difícil de conseguir. É político de discurso de extrema-direita belicista, sem qualquer proposta legislativa ou sucesso de vida para mostrar e sem qualquer estofo para discutir questões nacionais. Ganha destaque em certos estratos sociais mais altos, por se pintar como anti-político, por "dizer o que pensa" (como se pensasse), porém, já disse alhures, sua verve belicista não me parece encaixar no ethos da maioria tupiniquim, seu patriotismo se encerra na caça ao inimigo interno, e sua tentativa de formar uma equipe econômica o leva para se tornar uma espécie de Doria Júnior Troglodita e fracassado, um PSDB Jr. Talvez a grande validade da sua candidatura seja cacifar-se para barganhas futuras.
Por falar no João Trabalhador que usa o cargo de prefeito (prefake) para se promover, este claramente recua da estratégia adotada desde a eleição do ano passado. Portas fechadas no DEM e sem ânimo para arriscar no Novo, se adequa ao novo figurino PSDB-Mídia. Ademais, deve ter sido avisado pelo seu pessoal de marketing que sua administração (que ele chama de gestão) catastrófica à frente de São Paulo vai desqualificando-o para qualquer novo vôo político, e que na disputa pelo coração anti-petista como o mais bronco, machão e valentão da boca para fora, o almofadinha que joga flores no chão não é páreo para o ex-militar que faz flexão de pescoço [https://youtu.be/4RSs-6XeIrI]. Para anunciar sua nova fantasia, duas horas de publicidade travestida de entrevista na TV Bandeirantes, onde ele reafirma o mito de PSDB de centro, põe a si como alguém cordato e de centro, e se vangloria de sua humildade em aceitar ser vice de Alckmin.
Nessa briga de raposas, a velha raposa Alckmin parece estar mostrando ao seu pupilo que a coisa é menos simplória do que o "self-made man com dinheiro do papai e do erário público" e seus marqueteiros imaginavam. O bom moço da Opus Dei e da pena de morte extra-judicial autorizada para seus subordinados ("quem não reagiu está vivo"), começa a tentar se situar mais à esquerda do seu partido, como a provar seu centro, de equidade diante dos extremos (Lula e Bolsonaro), e participou recentemente de evento de corrente de esquerda do PSDB (?). Não dá para acreditar que seja algo além de estratégia de marketing, porém o gesto não deixa de ser importante para o momento atual de florescência neofascista. Se esse caminho de moderação fortalece Bolsonaro por um lado, por outro o isola ainda mais e ajuda a romper com a radicalização plantada pela mídia até agora. Em afinidade com essa mídia, a construção do bom moço firme de centro pode garanti-lo como nome da direita, sem espaço para aventureiros (pretendo escrever mais sobre esse movimento de Alckmin em outra análise).
Outro que ameaça despontar, parece estar apenas aguardando o melhor momento, é Luciano Huck, pelo DEM. Esse melhor momento deve ser o mais próximo possível das eleições: quanto menos se expuser enquanto candidato, menos chance de ser "desconstruído". Ventila seu nome vez ou outra, mas não sai em campanha. Ao mesmo tempo que é sua inspiração, Doria Júnior pode ser o seu calcanhar de Aquiles: se se forçar uma similitude entre os dois apresentadores, os resultados do João Trabalhador à frente da prefeitura podem desmerecer o novo não-político na disputa. Por seu lado, diferentemente do discurso de gestor, self-made man de sucesso, tecnocrata, Huck pode vir com discurso mais família: o bom pai de família, carinhoso e atencioso (sic) com a mulher e os filhos, ao mesmo tempo alguém que conhece os problemas do povo mais simples, nos seus anos e anos de quadros com assistencialismo hipócrita em seus programas, ou seja, alguém que sabe ser carinhoso e compreensivo, que gosta de ajudar a todos, e, quando preciso, sabe ser duro e firme para evitar que o filho se perca em seu caminho.
Marina Silva perdeu completamente o tempo político. Queimou pontes com eleitorado progressista ao apoiar Aécio "Um que a gente mata antes da delação" Neves em 2014 e ao se ausentar das grandes questões ambientais desde então. Na verdade, ao se ausentar de praticamente toda questão desde então - e quando apareceu foi discretamente, para ficar em cima do muro, queimando também as pontes com a direita. Agradava a um eleitorado reacionário que gostava de posar de prafrentex porque compartilhava denúncias de desmatamento na floresta amazônica (ao mesmo tempo que aplaudia e apoiava o agronegócio), porém é pouco para uma candidata à presidência. Talvez ainda imagine que possa ser alçada à condição de grande líder do centro, na falta de nome melhor, mas há muitos nomes para a vaga, e uma mulher negra do norte nunca será a opção preferencial das elites brasileiras.
Não me parece que Henrique Meirelles, Rodrigo Maia ou algum nome do PMDB sejam atores relevantes na ribalta - o são, sem dúvida, nos bastidores, e não será surpreendente se embarcarem em um candidatura de direita e, diante de uma vitória evidente de Lula, trocarem de lado no meio do processo eleitoral.
No espectro da direita, da reação, a estratégia está mais ou menos traçada, até para o caso mais terrificante (Lula poder disputar a eleição; na ausência desse, imaginam que vencerão fácil, pelas urnas ou pelos coturnos), no campo progressista e/ou de esquerda, os cenários e estratégias estão ainda sendo rascunhados, aparentemente com desorganização e velhas falhas, com o narcisismo das pequenas diferenças aflorando com vigor.
Lula, Ciro, Manuela D'Ávila (PCdoB), e Psol (por ora com Boulos) são os nomes ventilados neste campo. As discussões internas ao espectro já começaram: traição, favorecimento das direitas, necessidade de candidatura única - conversa muito similar à eleição de São Paulo, quando Erundina decidiu disputar a prefeitura. Vale lembrar que nesse caso, não fosse Erundina e seria bem provável que a vitória de Doria Júnior no primeiro turno seria ainda mais acachapante. Falta à esquerda entender que primeiro turno é momento de todos apresentarem suas ideias. O grande ponto é evitar o que Erundina fez ao menos em um debate de 2016: bater na própria esquerda. Candidatos próprios, com propostas independentes, mas o compromisso de cerrar fileiras contra a direita e os golpistas, denunciando os retrocessos sociais aprovados por Temer, PMDB, PSDB e demais, evitando ao máximo críticas dentro do espectro - por mais que sejam críticas pertinentes e em grande medida necessárias -, deveria ser esse o compromisso dos candidatos deste campo.
Muitos dizem que essa fragmentação das esquerdas, em especial com a possibilidade de candidatura própria do PCdoB como decadência do PT, perda de seu poderio. Não é o que demonstram pesquisas. Apesar de todo o ataque, Lula segue com um terço do eleitorado, e o PT ainda é o partido mais admirado. É de acreditar, contudo, que muitas pessoas fiquem em silêncio diante de toda essa campanha de massacre midiático, mas votem no partido que trouxe grande melhoria na sua qualidade de vida - um voto racional. À pecha de corrupto, haveria a alegação de que todos são, mas o PT faz; ou mesmo o descrédito de todas essas denúncias - uma mentira repetida um milhão de vezes se torna uma verdade, dizia Goebbels, mas é preciso saber mentir com propriedade, ou o efeito pode ser o oposto. Ainda sobre a tal decadência, vale lembrar que o PT nunca foi unanimidade - nem mesmo no próprio partido, havia correntes contrárias aos rumos do partido -, e apesar de talvez ter perdido a hegemonia no campo da esquerda, o PT segue como principal força.
PT como principal força, e Lula como principal candidato. Além do risco da condenação em segunda instância, o judiciário já deu mostras de querer podá-lo por outros caminhos se for necessário - como a acusação no TSE de campanha antecipada, por conta da sua caravana. Se não o condenarem, a campanha mal feita para torná-lo a encarnação do mal irá levá-lo à presidência - salvo algum outro golpe muito baixo, o que não deve ser descartado. O PT diz não trabalhar com plano b, porém é evidente que Haddad figura como alternativa natural - e, contrariamente a Dilma, um quadro politicamente capacitado. Faz caravana com Lula e dá entrevistas - se não for para presidente, é nome forte para o governo de São Paulo, sem nenhum grande nome até agora, visto que Doria Júnior seria um dos nomes, mas resta saber se vai conseguir reverter a deterioração de sua imagem.
Ciro Gomes (PDT) costuma ser posto no campo progressista. Tenho várias reticências quanto a isso, mas diante do quadro atual do Brasil, sim, ele é do campo progressista. Ciro é um candidato que perdeu seu momento. Se conseguir deslanchar, não precisará de nenhuma nova frase infeliz: as que possui já são suficientes para fazer com que naufrague, como em 2002, quando sua frase infeliz sobre o papel de sua esposa nas eleições custou-lhe não apenas a liderança nas pesquisas como a participação no segundo turno. Para 2018, já soltou a frase infeliz sobre o momento testosterona e Marina - convenientemente descontextualizada e manipulada à esquerda e à direita -, e novas devem vir, se deixarem ele falar. Teve sua segunda chance em 2006: se se anunciasse como um voto crítico à esquerda ao governo Lula, poderia ter se gabaritado para 2010. Manteve-se leal ao líder, e agora tenta se descolar de um modo até raivoso. Pelo momento atual, novembro de 2017, não entra em 2018 para vencer. Na verdade, fora do PT ainda não apareceu nome algum cuja vitória na eleição (se houver) seja factível.
A exemplo de todas as outras eleições, o Psol deve lançar candidatura própria. Desde sua criação é  bastante claro a quem quiser ver com alguma imparcialidade que o Psol é uma dissidência intelectual-acadêmica do PT, um PT sem base social. Promete começar a mudar essa escrita - finalmente - em 2018, ao aventar o nome de Guilherme Boulos, do MTST, como candidato. Com remotas chances por enquanto, sua presença seria um grande ganho para o debate, dado seu histórico de militância e sua sólida formação intelectual, ao trazer um líder de um movimento popular em plena efervescência para o centro do debate eleitoral.
O PCdoB, surpreendendo a muitos, pretende lançar a deputada gaúcha Manuela D'Ávila. Outro nome que deve enriquecer o debate - desde que saiba quem atacar, e não tente disputar eleitorado na base de desqualificação de quem está mais próximo. Gilberto Marigoni, do Psol, louvou a pré-candidatura, chamou de "desprendimento grandioso" a troca de uma eleição certa para a câmara dos deputados por uma candidatura com remotíssimas chances - diz o professor acadêmico que essa troca é importante para discutir projetos de país. Ouso discordar de Maringoni. Por mais que a política brasileira seja altamente personalista, é de se questionar se precisamos aceitar esse padrão. Convém lembrar que a eleição de Collor ao senado, em 2006, pode ser creditada na conta do Psol e de Heloísa Helena, mesmo que indiretamente; e se se trata de discutir projetos de país, é de se imaginar que o PCdoB possua um projeto para além de quem seja o candidato. 
Esse desdém para com o legislativo (e, consequentemente, com as eleições para deputado e senador) mostra o quanto a esquerda ainda patina em estratégia para 2018 (caso haja eleições). Vencer a majoritária e acabar refém de um novo Eduardo Cunha e de uma câmara reacionária como a atual será uma vitória de Pirro - a história recente do país deveria ter nos ensinado, porém ignoramos. Enquanto a direita trabalha também candidatos para o legislativo, com MBL, ou o tal do "Fundo Cívico" de Huck, Diniz e Guanaes, a esquerda abdica de nomes capazes de trazer votos - e coerentes com as bandeiras progressistas: alguém do naipe de um André Sanchez (que recentemente propôs a cobrança de mensalidade no ensino público), é um desserviço que se presta ao país (neste caso, o PT, mas Psol, PCdoB, PDT não deixam nada a desejar nesse quesito) -, em nome de campanhas propositivas e com poucas chances de vitória. Diante de todos os retrocessos sociais vividos desde o golpe, a esquerda não pode se dar ao luxo beletrista de promover o debate em detrimento de vitórias efetivas - até porque o debate pode ser conduzida por outra pessoa, sendo o próprio Maringoni um exemplo de ilustre desconhecido que disputou eleição majoritária.
Como disse, trata-se de um panorama do que se projeta a partir de um momento bem específico: novembro de 2017, e uma nova estratégia da direita e da mídia para o PSDB. Até a eleição, cabe antes garantir que ela acontecerá, e acontecerá sem um golpe judiciário - ou seja, que fique apenas suscetível a um golpe midiático branco, a exemplo de 1989, 1998, e do que se tentou em 2002, 2006, 2010, 2014. E além de pensar em disputa institucional, é preciso encontrar modos de ampliar a mobilização popular, na tentativa de evitar maiores retrocessos e engajar as pessoas nas eleições, ou mesmo na sua defesa. Se parte da esquerda permanecer deitada em berço esplêndido esperando a eleição chegar, quando se der conta, mesmo que ganhar a presidência, não vai ter muito mais a fazer que administrar o caos e os cacos de um resto de país.

09 de novembro de 2017

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Festa de criança (versão sete anos do Vinícius)

"Tia, ele que é o pai do Vini?"
Na esperança do menino de conhecer, finalmente, o pai do amigo, me vi alçado a um posto que não me cabe.
"Não, ele é meu namorado", foi a resposta recebida - não chamamos de namoro nosso relacionamento, mas para resolver logo a questão, melhor simplificar.
Era a festa de sete anos do Vinícius. Sete amigos presentes - cinco piás e duas gurias (como eu dizia quando era criança), todos, exceção de um, dois anos mais velho, na mesma faixa etária. Festa de criança me traz à mente a crônica homônima de Luis Fernando Veríssimo, com a angelical baixinha terrorista, o moleque morto de fome, e o aniversariante coberto de brigadeiro, fruto da derrota numa guerra de docinhos. Para a festa do Vini nem era preciso terroristas mirins ou guerra de docinhos: a casa da avó, com mil badulaques pelas paredes e sobre os móveis era naturalmente um convite ao caos, ainda mais quando primeiro presente recebido era de atirar. Eu já antevia as notas para os alvos: um para a estátua grande, cinco para as bonecas russas, dez para para as miniaturas de bumba-meu-boi e talvez dez também para boneca japonesa com cara de que quebraria antes mesmo de chegar ao chão. Para minha surpresa, à ordem de "aqui não é para mexer" ninguém contestou ou se fez de desentendido.
De qualquer modo, não foi de brigadeiro, mas não faltou guerra. 
A primeira menina que chegou não queria ficar sem a mãe, só cedeu quando a segunda garota chegou. Foi esta quem chamou para a guerra: tão logo as mães foram embora ela sacou um batom roxo e anunciou seu plano de beijar os meninos. Estes, diante do perigo iminente, armaram barricadas e organizaram um contra-ataque sistemático e permanente, que fez as duas não só desistirem dos ataques beijoqueiros como bodearem com a festa (por falar em beijoqueiro, lembrei do personagem que aparecia na tevê sempre que invadia campos de futebol, quando eu era criança). Apesar da bandeira branca do lado feminino, a guerra só acabou com a intervenção materna, forçando o armistício. Com o fim dos combates, a festa mais ou menos se estabilizou: meninas no quarto, aborrecidas, dois meninos jogando bola no corredor, os outros três revezando em atividades diversas, e o aniversariante cada vez mais irritado com a bagunça.
Sem ambiente para ler, achei que poderia zapear a tevê, enquanto as crianças gritavam pela casa (desde que pulasse os canais de desenho). Ilusão. Mesmo com o som baixo, em menos de cinco minutos já havia quatro crianças ao meu redor.
"Não adianta pedir que não vou pôr em desenho", aviso de cara, durão.
"Tudo bem, tio, mas deixa no jogo do Corinthians", pede o garoto de cabelo espetado (no meu tempo seria "cabelo punk", hoje é "cabelo Neymar"). Ao ouvir Corinthians, uma das garotas se junta ao grupo. Outro menino reclama que é jogo de futsal, e futsal é chato, não é futebol de verdade. A menina responde que o que importa é o Corinthians, que ela vai com o Corinthians onde o Corinthians estiver, acompanhado de declaração de amor pelo Coringão pelo cabelo punk. Tem início uma discussão sobre futsal, futebol e Corinthians. Alguém pergunta para qual time torço, respondo e vem nova pergunta: "Que time é o Paraná?". Mantenho a calma diante de tamanha ignorância, afinal são crianças, e não fizeram a infame pergunta se Paraná é Atlético Paranaense. "Está na segunda divisão, mas este ano sobe. É um time com as cores do Homem-Aranha", respondo, pouco antes do gol do Corinthians. A discussão volta aos velhos temas: futsal, futebol e Corinthians - o Paranazinho foi esquecido. As imagens de briga de torcida, logo após pedido da mãe do Vini para desligar a tevê, são a gota d'água para eu dar cabo à babá narcótica eletrônica e devolver as crianças à energia - e o aniversariante ao mau humor. Enquanto se dispersavam, um dos meninos pergunta se sou o pai do Vini, e repito a resposta ouvida antes: "Não, sou o namorado da mãe dele".
A exemplo da crônica do Luis Fernando Veríssimo, a mãe do aniversariante não tarda a começar a dar sinais de cansaço, e resolve antecipar em quase uma hora os parabéns, vencida pelos insistentes pedidos de docinhos. Nos parabéns, ela se junta ao filho no mau humor, que não consegue apagar as velinhas, que não conseguem sequer ficar acesas, por obra do amiguinho de fôlego infinito estrategicamente estabelecido diante do bolo, do outro lado da mesa. Findo o parabéns, mesmo sem assoprar as velas, estão liberados os docinhos. Aqui começo a entender a falta de vontade de uma guerra de brigadeiros por parte das crianças: mal começam a comer, elas passam a pedir se podem guardar alguns para levar para a mãe - pelo visto acharam a mesa bastante frugal, a ponto de temerem sequer comerem o que querem, o que dizer atirar uns nos outros. A única criança a querer bolo (de chocolate) é o cabelo punk, mas ele avisa que não gosta de chocolate, e portanto se restringe ao creme do recheio.
Por falar em cabelo punk, sim, há uma pontinha de inveja deste escriba: quando criança, com um corte-neymar-então-chamado-punk, por mais que besuntasse meus cabelos de laquê, eles não ficavam nem meia hora em pé, logo retornando ao seu locus naturalis (como diriam os filósofos medievos); o garoto passou quatro horas na festa e foi embora com eles tão ríspidos e verticais quanto chegaram.
E foi o cabelo punk quem por último me perguntou se eu era o pai do Vini. Comecei a notar que o "pai do Vini" é algo como uma lenda urbana entre seus amigos, uma espécie de "o Mesmo" dos elevadores, cujo aviso está estampado em todas as portas, mas ninguém nunca viu; talvez a "Loira do Banheiro" que a certa hora ouvi eles parolando sobre.
"Não, sou o namorado da mãe dele".
Ele, diferentemente das demais crianças, não se satisfez com a resposta:
"Tá. E do Vini, você é o que?"
Uma boa pergunta... Lembrei da crônica do Antônio Prata sobre sua filha, quando ela tinha um ano, em que dizia que para ela o pai era uma espécie de ajudante VIP da mãe, muito abaixo da Peppa Pig, por exemplo, na sua escala de valor. Pensando por esse lado, sou uma espécie de pai, que fica com o Vini quando sua mãe tem compromissos e ninguém para ficar com ele; duas vezes por semana sou o responsável por tirá-lo da cama às seis da manhã e incitá-lo a comer, trocar de roupa e escovar os dentes, ao invés de ficar rodando no chão cantando (sim, Vinícius tem a pachorra de cantar às seis da madrugada!, e sei lá porque, ele adora brincar de enceradeira); sem contar que fui eu a acompanhar sua mãe nas visitas às escolas e discutir sobre qual seria a melhor opção - o pai deve desconfiar que ele frequenta a escola, uma vez até reclamou da mãe gastar dinheiro (dela) com isso. Enfim, achei que entrar nesse nível de discussão não ornava com o ambiente da festa, além de antever o risco de me meter num cipoal com mil outras perguntas, cada vez mais comprometedoras - sem falar que Vini tem sete anos, e não um, e eu sou efetivamente um assistente da sua mãe, e não seu pai.
"Sou agregado dele".
Não sei se entendeu, mas se deu por satisfeito.
Liguei novamente a tevê, para ver Fórmula 1. Desta feita, as crianças não se sentiram atraídas pela programação, para tristeza da mãe do Vini, que já se via nas cordas, com dificuldades de manter a ordem mínima para o bom andamento da festa - eu mesmo tive que intervir com dureza quando passaram a brincar de lutinha (lutinha era no meu tempo, hoje é MMA) com golpes de verdade e separar dois meninos que já começavam a se estranhar de verdade também.
Tempos modernos, crianças modernas, soluções modernas. Antes de ser nocauteada, a mãe prefere me tirar da frente do televisor e convida as crianças para assistir a uma animação. Fim das brincadeiras, das brigas, da comilança - só o cabelo punk se ressente, tenta (em vão) incomodar o filme, segue comendo e pedindo suco, parece quase uma alma penada numa casa abandonada.
Estão todos em silêncio, concentrados, quando começam a chegar os amigos da mãe - que não são os pais das crianças. Como na crônica de Veríssimo, uma nova festa parece estar começando. Os pais das crianças surgem em uma verdadeira blitzkrieg, e em menos de dez minutos a partir do horário anunciado como fim da festa, a única criança na casa é o aniversariante. Vini poderá - agora em paz - brincar com seus presentes, enquanto os adultos se aglomeram na sala para assistir a desenhos.

30 de outubro de 2017