quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O cão de Pavlov e o atendente de farmácia

Em um de seus experimentos sádico-científicos, Pavlov tocava uma sineta antes de aplicar um choque em um cão, que chorava por conta do sofrimento causado pelo choque. Passado um tempo, o cachorro já começava a chorar só de ouvir a sineta - muitas vezes sequer recebia o choque. Ainda mantendo a associação entre sineta e choque, passado outro tempo, o animal se habituava: ouvia sineta e tomava choque sem reclamar - bovinamente, diríamos hoje.
Não vivemos em laboratório, onde as variáveis estão controlada (ou ao menos assim dizem os cientistas), nem somos cachorros (por mais que no Brasil tenha "pet" que leve vida melhor que boa parte da população humana), mas nosso viver no automático nos leva para um ponto não muito longe dos experimentos pavlovianos - para alegria de publicitários, jornalistas, políticos e engenheiros sociais em geral. Meu exemplo é banal.
Uma amiga pediu para acompanhá-la na Farmácia de Alto Custo, do governo do Estado em parceria com a SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), que fornece gratuitamente remédios caros à população. Tinha medo de ir sozinha na farmácia, situada na região do baixo do Glicério, na várzea do Carmo, próximo à estação Pedro II do Metrô. Deveras, em meio a viadutos, mendigos, moradores de rua, usuários de drogas pobres, catadores de recicláveis, igrejas, migrantes, imigrantes e outros desvalidos da sorte, não é um local que a classe média se sinta em casa para uma caminhada. Meu cacoete de classe média logo fez com que me questionasse (não verbalizei, para não melindrar minha amiga) por que ela não comprava o medicamento, já que não é tãããao caro assim, e ainda que fosse pesar no seu orçamento, não implicaria cortar de nenhum gasto essencial. Meu anti-cacoete-classe-média logo me lembrou da grande besteira ideológica pequeno burguesa tropical essa ideia de que serviço público é para pobre e não para todos - tirando, claro, a universidade pública e o terceiro nível do SUS, porque aí a classe média não conseguimos bancar sem cortar de algum lado, e então fazemos questão de usar o serviço do Estado, disputando com pobres, porque é nosso direito. E é. Se acesso à saúde é um direito universal garantido pela Constituição, bem faz minha amiga de exigir seu direito, ao invés de pagar por uma relativa comodidade.
O serviço da farmácia pareceu bem organizado, e nesta quarta-feira de cinzas, rápido. Enquanto esperava minha amiga ser atendida, reparei no espaço, que desde que entrara, algum estranhamento me causava. O local era limpo, sinalizado com cores, mas havia algo fora da familiaridade classe média a que estou acostumado. Imaginei que talvez fosse a pintura, que não estava tinindo, como em grandes redes de farmácia ou nos McDonalds médicos que vejo no centro da cidade (sem desmerecer o lanche do Mc, que é ruim mas não para tanto). Talvez a falta de cores fortes preenchendo grandes espaços. Ou um televisor gritando rede Globo ou publicidade? A falta de uma logomarca grande chamando a atenção e uma placa bem a vista com a missão do estabelecimento? Reparei nos atendentes. Estavam todos de preto - incomum para um ambiente de saúde, mas não era isso. Notei que uma delas tinha a marca estampada na roupa, outra uma frase brega, o rapaz que entregava as senhas, camisa de jogo de RPG. Passou por mim a moça da faxina, roupa da terceirizada. Entendi, então, meu estranhamento: os serviçais, salvo da faxina, não estavam uniformizados.
Admito um certo choque ao perceber como naturalizei a visão do uniforme em quem me atende. Passa-se a ideia de profissionalismo, dizem. Diria mais: passa-se a ideia de quem está na sua frente não é bem uma pessoa, mas o meio termo entre um homem ou uma mulher e um androide - na impossibilidade, por enquanto, de serem substituídos por robôs de verdade.
Entendo a necessidade de uniforme em muitas situações - escolas ou fábricas, por exemplo. Durante a idade escolar e ainda hoje sou grande defensor do uniforme: me poupa de pensar nessa maçada que é que roupa vou usar, se já não usei ela semana passada ou coisas do tipo. Porém sou homem, branco, classe média alta: socialmente valho por pessoa por meu fenótipo e renda, ainda que muitos de meus colegas de classe sintam necessidade de se afirmar por outros meios também - carro, restaurantes, roupas, viagens. Mesmo o uniforme para minha classe - o terno - é socialmente valorizado como nobre, com "personalidade".
A situação é diferente na "ralé", como chamou Jessé Souza, e noto como o uniforme de trabalho para essas pessoas tem um aspecto perverso: uma das grandes molas propulsoras do capitalismo espetacular está no vestuário, na moda - isso vem do século XIX, como atesta a literatura. Geralmente as pessoas que fazem o atendimento ao público são pessoas que tiveram menos oportunidades de educação e, consequentemente, de um melhor emprego. São vistos como semipessoas, semicidadãos pelos homens e mulheres "de bem" desta terra do "você sabe com quem você está falando?". Usar uma marca é uma tentativa de ganhar a parte da humanidade (ou toda ela) que lhes foi negada: foi uma das coisas que me chamou a atenção nos imigrantes na Missão Paz, ali perto da Farmácia de Alto Custo, no Glicério; ou o que se lê em romances do Ferréz ou nas letras dos Racionais, por exemplo. Não apenas isso: ideologicamente há a ideia - aceita acriticamente até por gente que se acha crítica - que marca, roupa, estilo, é parte da personalidade de alguém, quando não a define na essência. Portanto, ao serviçal, já considerado semigente, é também recusada a expressão da sua personalidade espetacular. Não é alguém por completo, nem tem direito de tentar sê-lo - tal qual o patrão ou os clientes brancos, classe média, cheios de estilo, que exigem serem recebidos com robóticos "bom dia" por pessoas uniformizadas - ironicamente, as gravações do atendimento no telemarketing tem mais vida e personalidade que os atendentes de carne e osso, que soam submissos serviçais zumbis do outro lado da linha.
Comento esse exemplo banal do desnecessário uniforme para atendentes. Vamos no automático, mal enxergamos, quando vemos, ainda achamos que tem pontos positivos, logo vira natural - pode um atendente sem uniforme? O caso poderia ser levado a outros aspectos do nosso quotidiano, mais emblemáticos. A violência que está aí, como o sol da manhã, a polícia que faz abordagem com arma na mão e dedo no gatilho às três da tarde no centro, os assassinatos pelos policiais, os policiais assassinados - tudo normal, pessoas tombam ao nosso lado, mas a vida segue. Ou o golpe de Estado e todo o desmonte do pacto social que vivenciamos: algum incômodo de início, alguma revolta, mas aos poucos vamos aceitando a sineta e o choque, no máximo engolimos a amargura e temos uma gastrite, camuflada com qualquer narcótico, tudo sem mudar de ritmo, sem perturbar a rotina - afinal a vida é assim,  não? E fugimos de enxergar se ela deveria mesmo ser assim.

14 de fevereiro de 2018

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Alguma coisa está fora da ordem no carnaval

Alguma coisa está fora da ordem, fora da velha ordem nacional - e a ascensão do carnaval de São Paulo com seus bloquinhos talvez dê alguma dica do que pode ser essa desordem oculta.
Pouco afeito ao carnaval, já que essa "brazilidade" da alegria esfuziante não me toca, não nutro ódio - como muitos "cidadãos de bem" da minha classe -, apenas tento passar longe, por mais difícil que isso seja, diante do encontro constante nos fins de semana com bandos em trânsito para os blocos, que me lembram uma versão psicodélica dos pequenos grupos de crackeiros no centro paulistano dos dias úteis e inúteis (observação: não há qualquer valoração nessa comparação, apenas uma similitude que enxergo), das centenas de fotos de meus amigos que vejo nas redes sociais e das reportagens que pipocam por todos os lados. Foi amiga minha, Flor di Castro, artista plástica que atualmente reside em Buenos Aires e passa as férias no Brasil, quem me chamou a atenção: antes, carnaval era nos dias de carnaval, quando muito tinha pré-carnaval no fim de semana anterior; hoje, o pré-carnaval já quase emenda com o ano novo. E se questiona: do que as pessoas precisam tanto fugir, que carecem de um mês todo de festa?
Conforme vários antropólogos, rituais de inversão, como o carnaval, são rituais necessários para se manter a ordem: um dia, uma semana por ano, os papéis sociais são invertidos - chefes se vestem comuns, rafuagem se veste de rei, mulher se traja homem, homem vira bicho, adultos se fantasiam crianças -, sem efeitos performativos, mas com profundo efeitos de acomodação - psicológica e social. Isso cabe bem em sociedades tradicionais, com papéis rígidos e bem definidos: a permanência desse tipo de necessidade em uma sociedade moderna não deixa de ter algum estranhamento, uma vez que se sabe que uma saia não faz um homem menos homem, e não há lei que proíba alguém de trajar um unicórnio (desde que acompanhado de roupas que cubram nossas vergonhas, nestas terras altamente moralistas). Como minha companheira questionou: por que as pessoas não saem vestidas o ano inteiro assim, se se sentem bem? Minha questão é o quanto há de se sentir bem nessa ordem pretensamente invertida do carnaval, o quanto há de se sentir bem tão somente na negação do ordinário.
Sim, como disse acima, essa é a função de rituais de inversão, porém quando se faz isso um mês todo, pode-se imaginar muita vontade reprimida; ao fazê-lo num ritual sem maiores conseqüências, é de se questionar por quê não trazemos isso para o quotidiano, em discursos e ações consequentes - função já ocupada prioritariamente por sindicatos, atualmente um tanto capengas, e hoje ocupada por movimentos identitários, que aparentemente não dão conta de cumprir essa função por completo.
A proposta - ratificada pela justiça - de um bloco apologético à tortura (não se trata, como se diz, de apologia à ditadura, na qual pode ser encontrados pontos positivos, o porão do Dops, é sabido, era sala de torturas, de violência covarde e sádica contra pessoas indefesas), em um país em que a tortura e as execuções estatais extra-judiciais aumentaram desde o fim da ditadura, permite questionar que inversão o carnaval representa, e qual a tolerância do atual status quo - que se desenha cada vez mais nazifascista - para pequenos e saudáveis (para o sistema) atos de questionamento. O carnaval seria de fato ainda um ritual de inversão, ou já se tornou outra festa espetacular no calendário de pseudofestas da sociedade do espetáculo, cuja função é gerar lucros e o pior conformismo? É inversão a garantir certa estabilidade social ou pseudoinversão a reforçar uma insuportável ordem dominante?
Outro ponto que chama a atenção é o fato do carnaval de São Paulo já ter mais bloquinhos que o do Rio de Janeiro - e o próprio fato de o carnaval de rua estar em alta, enquanto os desfiles (se não percebo errado) já foram mais valorizados enquanto símbolo-mor da festa. Acredito que parte dessa valorização da rua não se dá pela chegada de uma classe média, média-alta, branca, universitária, criada em shopping centers e que resolveu "viver a cidade", num ato inconsciente de questionamento dos pais. Não teria nada a criticar nisso, se essa cidade em que os hipsters querem viver não fosse uma versão a céu aberto do shopping - limpa, asséptica, homogênea (vide Pinheiros/Vila Madalena ou a Vila Buarque e o Arouche, em processo de higienização social e pasteurização visual/estética. E isso não é exclusividade tupiniquim, como reportado por Benoît Brevilé, no Le Monde Diplomatique de novembro ["grandes cidades, bons sentimentos"]). Os contextos políticos municipais talvez ajudem a explicar o crescimento paulistano: enquanto no Rio prolifera o evangelismo mais reacionário - coroado com a vitória de Crivella para a prefeitura -, São Paulo teve um respiro modernex com Haddad: o ex-prefeito encarna o hipster com louvor: branco, classe média, universitário, descoladão nos costumes e ainda assim família (não por acaso sua derrota se deve à perda da base habitual do PT, as periferias da cidade: sua imagem não era nem a do modelo de sucesso para a maioria, nem a do tipo mais preocupado com as periferias, uma vez que, como canta Criolo, "cientista social, casas Bahia e tragédia, gosta de favelado mais que [de] Nutella"). Doria Júnior bem tentou reverter o movimento, mas não teve força suficiente - ainda que tenha causado algumas baixas importantes, como a do Bloco Soviético, em 2018 - e alguém com tato mínimo deve ter avisado que era melhor não mandar descer o cacete para se fazer respeitar, não nesse caso, uma vez que a festa pode ser popular, mas boa parte dos seus freqüentadores são da classe média.
O declínio dos desfiles em favor dos blocos permite mais duas hipóteses, que não deixa de ser uma: de decadência da Globo e de anseio democrático. Ao invés de público passivo, bem confinado e bem comportado assistindo à vida passar na sua frente - para julgamento de especialistas -, o desejo de ocupar as ruas, os espaços públicos, e ser protagonista anônimo de um movimento sem muito rumo e roteiro - e sem avaliador externo. O discurso de ódio generalizado, esquerdistas, gays, progressistas, mulheres, negros, artistas, rolezeiros, etc (antes, o ódio era mais direcionado, pobres pretos e periféricos), que Globo e mídias satélites impuseram como padrão nos últimos anos talvez possa ser lido como uma tentativa de retomar essa hegemonia quase monolítica de alguns anos atrás: nada melhor que o ódio para unir - e uma ditadura para calar dissonantes e restabelecer cada um no seu lugar.
Não chego a nenhuma conclusão ao fim desta crônica, a não ser, em concordância com Flor, que algo parece estar muito fora da ordem na nossa sociedade - e o carnaval atual, que dura e dura e dura, soa uma tentativa inconsciente (não sei se vã ou efetiva) de lidar com alguma anomia.
07 de fevereiro de 2018