domingo, 18 de março de 2018

O que conseguimos escutar?

Reconheço que foi inesperada toda a reação à minha última crônica, "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?". No Nassif On Line/Jornal GGN, foram mais de cinquenta comentários, a maioria me criticando e querendo ver os funcionários dos Correios se darem mal - Kassab, Meirelles e cia devem rir muito ao ver zé ninguém batendo em zé ninguém enquanto eles se lambuzam. Contudo, para além do ódio aos carteiros - que eu não entendo e me surpreende -, noto que pus a carruagem na frente dos bois, e não devia perguntar se somos capazes de escutar o outro, e antes, mais simples: somos capazes de escutar?
A ignorância não é fruto de falta de educação formal (isso contribui, mas não é condição necessária, muito menos suficiente), nem privilégio destes tempos pós-modernos. Entretanto, me pergunto o quanto a ausência a conversa "real" (em oposição à virtual) não tem deteriorado uma capacidade desde sempre pouco desenvolvida nestes Tristes Trópicos, que é a arte de dialogar. O quanto a ausência da voz numa discussão nos impede de escutar nuances do discurso do outro (um ceticismo receoso pode soar como uma recusa intransigente na internet), assim como a permissão de dizer o que quiser a qualquer momento que a internet nos dá, sem qualquer limite que não seu tempo e sua paciência, nos conduz ao paroxismo de impedir escutar o discurso do outro. 
Lemos um "textão" no Fakebook ou um artigo na internet caçando os 140 caracteres essenciais e logo despejamos o que está na agulha, sem pensar - um tiro não exige reflexão, exige no máximo reflexo. No exemplo que me cabe, só o título de minha crônica anterior já me toma 64 caracteres, as palavras-chave "greve correios defesa trabalhadores apoiaram o golpe", já me gastam outros 52, "pato ódio desfazer" levam os 24 restantes - telegramas talvez exijam maior capacidade de raciocínio que um twitter. Caçado um "twitter elementar" do texto, é hora de repetir o que se acha - na ilusão (ensinada pela escola) de que repetição seja pensar. E não é por repetir a si próprio que isso se torna reflexão: o fato de ter refletido uma primeira vez para se chegar a uma conclusão não implica que esteja pensando as outras 999 vezes que se repete, até porque, é de se imaginar, que interlocutores e contextos mudem, exigindo repensar a própria estratégia argumentativa, quando não o próprio núcleo do argumento, diante de novas réplicas.
Por uma questão de saúde mental e emocional, e para manter um mínimo de fé na humanidade, evito ao máximo ler comentários de internet, seja onde for. Exceção feita aos dos textos que publico, onde busco interlocutores, com retificações ou ratificações pertinentes; ou mesmo para tentar entender possíveis falhas de comunicação da minha parte. Boa parte dos comentários ao meu texto sobre a atitude para com os funcionários dos correios foi de críticas - o que em si não seria um problema -, porém feitas de uma forma tão crua que deixou evidente que as pessoas não eram capazes de "escutar", de compreender o que elas próprias escreviam - e não creio ser ingenuidade minha acreditar nisso e ao invés de crer que, na verdade, são pessoas da pior índole se fazendo passar de progressistas e/ou esquerdistas. Aquilo que eu havia alertado em meu texto foi exemplificado nos comentários: o ódio fascista, o desejo punitivista de sangue do inimigo a qualquer custo, o "se esteve contra mim sempre será meu inimigo". Curto, grosso, direto, bruto, tosco, ignorante. Mas de uma ignorância que não mobiliza para ampliar os horizontes, uma ignorância orgulhosa de sua própria limitação, que busca afugentar (quem sabe matar?) todo aquele que incomode seus seguros e estreitos limites (e antes que me acusem de neoplatonismo tosco, impressão que esta frase fora de contexto pode passar, sugiro ler meu texto anterior). Me vem a imagem de Bush, ainda que para os dias atuais ele seja um intelectual. Reconheço: quando escrevo um texto como "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?" meu desejo é que me provem o quanto estou equivocado, o quanto meu umbigo não permitiu perceber nada claramente; entretanto, os comentários foram iradas confirmações da minha análise: a forma fascista de (não) pensar está vencendo. E desconfio que as pessoas não estejam se dando conta disso. Logo, se são incapazes de escutar a si próprias, é demais pedir para que ouçam o outro. Resta a força bruta - o "cala-te ou te arrebento".
Três aspectos me chamam a atenção nas respostas recebidas: a ausência de nuances, a petrificação de posições (para a eternidade?) e um mal digerido cristianismo - talvez tendo como raiz uma profunda descrença no ser humano e na humanidade. Meu chamado para um "ouça, entenda, converse, acolha" trabalhadores explorados por um governo ilegítimo, que implica em um chamar aberto mas condicionado para a luta conjunta contra os golpistas, ao que tudo indica foi entendido como um perdoe e aceite tudo - o "dê a outra face" de Jesus. Mais: se uma parte dos funcionários dos correios foram favoráveis aos golpistas, todos os funcionários foram favoráveis, e uma vez que foram favoráveis, sempre serão favoráveis. É seu "locus naturalis", diriam os filósofos medievais: assim como um ex-presidiário sempre será presidiário, não importa que tenha cometido um crime num determinado contexto e pagado sua dívida junto à sociedade, não merece mais confiança, nunca. (Aqui abro um parênteses, não todo desprovido de propósito, para agradecer a educação dada por minha mãe e meu falecido pai: uma educação grandemente desprovida de pré-conceitos, sociais, étnicos, de gênero, ou o que for; nunca aprendi que um negro pobre da periferia seja "do bem", assim como nunca aprendi que um branco rico seja "do mal", nem que uma pessoa não possa mudar, para melhor ou para pior, com os anos, que o diga muitos ex-comunistas). 
Ouso a hipótese de que, para além da forma fascista de enxergar o mundo, a visão estanque de si e do outro possa ser consequência da nova tendência da esquerda, as pautas identitárias. Longe de desqualificar esse tipo de pauta, muito pelo contrário: é de extrema importância que os oprimidos ganhem voz para falar em alto e bom som que além dos aspectos econômicos salientados pelo marxismo, há, sim, questões fenotípicas, identitárias, que geram doses extras de opressão sobre determinadas populações. Contudo, ao se pôr tais pautas como figura de proa, desprovida de visão mais ampla dos jogos de forças que criam e oprimem tais identidades, não é preciso dois passos para incorrer em generalizações e em essencializá-las como estratégia para cerrar fileiras - como afirmar a sororidade acima de qualquer contexto social, como se a opressão à mulher fosse igual em qualquer caso, Carmen Lúcia, Marcela Temer, Marielle Franco e a faxineira negra do mercado que quer votar no Lula e achar um marido que a proteja -, até cair num narcisismo identitário, carente de sempre ter um inimigo bem identificável e da necessidade de reforçar sempre seu predomínio sobre todas as outras pautas.
A escuta passa a ser treinada, então, para encontrar o inimigo, o infiltrado. Assim como não se escuta quem se põe como crítico, cético ou antagonista (atenção! estou falando de gente comum, não de fascistas convictos, como os do blog de mesmo nome), perde-se a capacidade de escutar quem não repete exatamente sua cantilena, espantando possíveis aliados - e mesmo quem diz representar. 
Pior, essa escuta estritamente policial do outro (ou religiosa, do padre ou pastor em busca dos pecados alheios) se volta para si mesmo, porque se escutar pode implicar em dar espaço para discordâncias, fissuras com as generalizações identitárias, o que - dizem algumas correntes - seria o fim de toda a luta identitária e o retorno da opressão mais brutal. A isso se alia a repetição de ideias prontas, tornando assim desnecessário que se escute, uma vez que se sabe o que vai falar. Consequência até natural, uma vez que quem não sabe ouvir não será capaz de falar.
Realmente não era o ponto aonde eu esperava chegar ao iniciar esta crônica, mas temos, ao fim e ao cabo, aquele discurso ideológico da velha esquerda, sintetizado por Harold Rosenberg: "O comunista pertence a uma elite dos conscientes. É, portanto, um intelectual. Mas uma vez que toda a verdade foi-lhe conferida automaticamente mediante a sua adesão ao Partido, trata-se de um intelectual que não precisa pensar (...). Desde que somente ele possui a resposta certa, em toda parte o comunista tenta controlar a atividade dos outros". Por isso, repito o que falei em minha última crônica, com a mesma citação de Bernard Shaw: a necessidade da educação para a democracia: "Toda nossa teoria da liberdade de palavra e de opinião para todos os cidadãos repousa não na asserção de que todo o mundo tem razão, mas na certeza de que todo o mundo está errado nalgum ponto em que um outro tem razão". Porém me resta a dúvida: quantos estão dispostos a porem em risco sua identidade garantida pelo grupo, seus frágeis egos entrincheirados em generalidade heterônomas, e se pôr a escutar a si próprios, seus desejos e seus medos, e se abrir ao diálogo franco com o outro?

18 de março de 2018

quinta-feira, 15 de março de 2018

Conseguimos ouvir o que fala quem diz "bem feito aos carteiros"?

Vejo algumas postagens no Fakebook sobre a greve dos funcionários dos Correios. O tom geral era de "bem feito, quem mandou apoiarem o golpe?". Alguns tentaram chamar para a realidade: são trabalhadores se dando mal como todos. Outros rebateram, tentaram ilustrar o merecimento da categoria, dizendo que tiveram perdas durante os anos FHC, receberam dos governos petistas substantivas melhoras, mas foram mal agradecidos, e agora merecem pagar o pato. São pessoas que se consideram de esquerda ou progressistas ou críticas - talvez tudo isso. Vejo nesse discurso, contudo, o outro lado da mesma moeda dos que destilam ódio contra petistas e esquerdistas: trocam os alvos, não a forma de "pensar": com o fígado, com base no ódio, na intolerância. Provavelmente se amanhã uma falácia qualquer convencê-los de que o Mal veste vermelho, trocarão de lado nessa "guerra", e ainda terão sua decrepitude elogiada pelos novos pares - vide Lobão.
Se a grande mídia, o sistema escolar, os aparatos ideológicos paraestatais, e as nossas elites do atraso têm sua boa dose de responsabilidade por esse rebaixamento intelectual, a esquerda não pode ser eximida de responsabilidade. Da extrema-esquerda, que sempre tratou a política em termos bélicos - de inimigos e aliados -, à esquerda moderada, que se arrola um poder salvacionista mágico, passando, é claro, pela vanguarda do atraso, a esquerda acadêmica, produtora de discursos críticos importantes na análise e estéreis na prática; e em praticamente todas as vertentes, esse dom da esquerda tupiniquim de criticar o outro, fugir da autocrítica e sempre dividir, nunca unir. 
O "bem feito" para os carteiros é fruto desse caldo: uma educação para o sucesso individual, uma ideologia que pega do cristianismo um deus revanchista e a ideia de culpa (pecado soaria muito religioso), com a necessidade de purgar-se antes de voltar a ser aceito na comunidade das "pessoas de bem", na esquerda chamadas de "pessoas do lado certo da história"; a heteronomia do olhar para a realidade, que não permite perceber nesse outro um próximo - apenas com equívocos diferentes -, e nessa luta uma oportunidade de aproximação. Não há nuances: sempre o lado certo, inteiramente certo, é o meu.
Do argumento de melhora nos anos petitas, não fui atrás dos dados, e tomo como sendo verdade - é factível, dada a trajetória dos governos tucanos e petistas. Tinha um amigo que trabalhava nos Correios nos anos Lula. Lembro claramente do seu desgaste com mobilizações e greves: se houve melhoras, não foi fruto de benevolência petista, e sim de luta dos trabalhadores por seus direitos - aliado à uma maior abertura do PT, é certo. O fato de carteiros terem caído no canto do pato talvez não seja mal agradecimento contra um governo que só os favoreceu por causa de sua luta, e sim o conto do vigário de que com o golpe todos sairiam ganhando sem precisar de tanto desgaste. A deseducação para refletir estava dada, foi questão de ajustar o discurso goebbelsiano.
Assim, temos parte da plateia comemorando as dificuldades dos carteiros, ao mesmo tempo que a outra xinga professores por estarem reivindicando condições dignas de trabalho - como faziam os carteiros década passada. São bodes expiatórios do ressentimento de vidas pobres de vida - são também bodes na sala para distração das massas. Enquanto isso, Kassab, Meirelles e cia (como mostra reportagem da Carta Capital [http://bit.ly/2peYCNn]) são os que lucram com a empresa - até a hora que esse lucro for repassado para a iniciativa privada, para o lucro dos de sempre, e prejuízo também dos de sempre: trabalhadores e usuários dos serviços.
Um dos grandes pontos que nos cabe: como desfazer esse caldo de ódio, como desarticular essa rede de pequenos narcisismos que preferem romper com o próximo por ninharias a cerrar fileiras contra os graúdos, contra os deflagradores dos problemas? Ouso dizer que parte da resposta está em aguçar nossa escuta para o que estão falando, para o que estamos falando e para aquilo que falam a partir do que falamos. Recusar o diferente é entregar uma pessoa talvez com boa vontade, desejo de mudar, para o pato, agora sapo. Quão oprimido, quão odiado se sente alguém que precisa achar alguém para oprimir e odiar também como forma de sentir que existe? (Sim, Paulo Freire sempre vivo, apesar de esquecido pela esquerda). A partir dessa escuta, é preciso investir maciçamente na educação (formal e, principalmente, não-formal) para a democracia - democracia entendida muito além de eleições formais. Como diz Bernard Shaw: "Toda nossa teoria da liberdade de palavra e de opinião para todos os cidadãos repousa não na asserção de todo o mundo tem razão, mas na certeza de que todo o mundo está errado nalgum ponto em que um outro tem razão". E mesmo quando não tem razão, tem suas razões.

15 de março de 2018