domingo, 23 de setembro de 2018

Blasé tropical [DIálogos com a dança]

O olhar estrangeiro sobre nós nos permite desenxergar muitas coisas que nos soavam tão naturais que sequer necessitavam ser vistas. Esse olhar pode ser ao ir para o exterior, se pôr em contato com uma outra realidade (dentro do próprio país), ou quando o estrangeiro (ou migrante) vem até nós e se surpreende com aquilo que nos é óbvio. A questão é o quanto estamos abertos (ou seria aptos?) para ir além do familiar, sem preconceitos e sem temores paralisantes. Frantz Fanon só é Frantz Fanon porque soube se desenxergar e se enxergar de outros modos - ou então seria apenas outro zé ninguém na Martinica, arrotando prepotência para outros zé ninguéns tão negros quanto ele, mas mais zé ninguéns porque não moraram na França nem falavam o francês "correto". Soube - de modo fenológico, arrisco dizer - aceitar a forma como era visto na França como a verdade, não a verdade absoluta, mas a verdade dessa visão - parcial, preconceituosa, rebaixadora, formadora das verdade das elites da Martinica e da França. E se deu conta que ser capitão do mato poderia lhe dar alguns privilégios, sem o salvar, porém, de ser um dos condenados da Terra - o colonialismo europeu, sempre presente, é como a hospedagem de Polifemo com Odisseu: daria a Fanon o privilégio de ser comido por último. E como Odisseu, Fanon soube que se assumir um ninguém, um zé ninguém, era a chance de salvação de todos os que estavam na mesma condição.
Escrevo isso pensando em amigos, conhecidos e desconhecidos que foram para o exterior e voltaram tal qual foram - ou sequer voltaram, mas seguiram os mesmos. Visitar os pontos turísticos consagrados pelo roteiro da circulação de pessoas é bonito, interessante - eu mesmo gosto -, porém nada, muito pouco acrescenta - uma professora (suíça) do mestrado dizia que se era para viajar só para ver os locais consagrados, melhor, fotografar ponto turístico melhor ir numa livraria de São Paulo, mesmo, e comprar um postal, sai mais barato e dá na mesma. Amiga que mora no Canadá comenta que recebe seguidamente da comunidade brasileira abaixo-assinados contra o aborto, o casamento homoafetivo e outros avanços legais canadenses. Não se trata de defender um adesismo cego, porém, se ser chauvinista já não é bom, quando se mantém essa mentalidade morando no exterior, só mostra a incapacidade de qualquer reflexão, para além da dos espelhos bem polidos (e vale para os que aderem ao chauvinismo local, como um (ex) amigo que foi morar nos EUA e não cansa de louvar a terra da liberdade, onde só há pontos positivos - tirando os mexicanos e os árabes). Como cantam os Racionais Mc's em "Negro Dama": não dá para tirar a favela de dentro de quem nasceu nela: saber assumir sua origem, trazer suas referências consigo, entretanto aberto ao que surge de novo. Não é destino, mas é parte da história. 
Na verdade, ao começar a escrever, pensava mesmo em exemplos menos drásticos, criticar meus colegas de fração de classe, homens e mulheres na faixa dos trinta, quarenta anos, universitários, mestres, doutores, brancos, de esquerda, descolados, cosmopolitas com toques nacionalistas (anos-luz do patriotismo chulo de um Galvão Bueno), que geralmente passaram uma temporada no exterior - de alguns meses, ao menos. Como parte do discurso de valorização do Brasil, não raro gostam de samba, sabem até a letra de alguns famosos, como "Trem das onze" (ultimamente alguns até ousam um funk ou afim, depois que parte dessa cultura foi valorizada por teses universitárias), mas também não dispensam um rock alternativo internacional - se hoje odeiam hypster é porque não podem se assumir, pois pegaria mal a eles, antigamente emos ou indies, dançar de moda em moda, deixando evidente sua preocupação em estar up to date, na ausência de algo mais sólido com o que conseguiriam se apresentar. Em meio a estes meus amigos, é comum os que mantém uma pose blasé: aquele que quer fazer o estilinho intelectual ou artista parisiense desolado do pós guerra, o entediado com cara de bunda, o "descolado descolado" - a pessoa especial que não tem lugar nestes Tristes Trópicos. Admito que blasés são dos que mais me cansam - acho só perdem pros indies ressentidos que odeiam hypsters.
Todo essa conversinha de cerca lourenço acima por conta de dois espetáculos de dança a que assisti recentemente. Um deles foi este fim de semana, "O que ainda guardo", da Quasar Cia. de Dança, de Goiânia. Uma hora de dança embalada por bossa nova. O espetáculo é bom, bonito, divertido de um humor sutil (como no rapaz guache (para usar um termo franco-drummondiano) que ensaia se aproximar da mulher que se insinua ao som de "Só danço samba"), com uma leveza gostosa (como em "O Pato"); porém me fez lembrar que, ainda que eu goste de bossa nova, não aguento muito: dá sono. Sambas do sono. Sambas brancos, classe média, jazzísticos: a retomada antropofágica de Oswald de Andrade ao ethos (ou seria ao pathos?) das elites nos anos sessenta. E qual seria esse ethos ou pathos?
Quem me deu a deixa foi a companhia francesa Cie. DCA Philippe Decouflé, que apresentou em São Paulo, no final de agosto, a ótima e divertidíssima "Nouvelles Pièces Courtes". Não sei se é o original, ou foi adaptado para o Brasil, porém no ato anterior aos bailarinos embarcarem para o Japão oitentista, com seu consumismo bizarro e sua programação televisiva bizonha, a cena do aeroporto tocando bossa nova, num clima sessentista e blasé, me fez entender que é isso - esse som que orna com certa cara de bunda e tédio enquanto se toma água de coco e fuma um cigarro em Ipanema - que tanto me cansa: seu "blasésismo", mesmo que abrasileirado. Se acaso foi adaptado para a apresentação aqui, a junção entre bossa nova e o estilo blasé foi de uma harmonia perfeita: aquele samba contido, de bons modos, voz e violão, para não incomodar os vizinhos do andar de baixo em algum edifício da Avenida Vieira Souto, o chique cosmopolita tentando fugir do tédio com uma versão para gringo ouvir do samba que se faz no morro. Som brasileiro-cosmopolita de altíssima qualidade adaptado para harmonizar com não-lugares - no caso de "Nouvelles Pièces Courtes", o aeroporto. Um blasé tropical, mais leve, mais solto, e com uma pitada de melancolia para quem a vida não tem prestações a pagar nem faz sentido.
Fecho este texto retomando o que havia falado antes, o complexo de vira latas tupiniquim: meus amigos da minha fração de classe, ilustrados e de esquerda, vividos em Paris, Berlim, Londres, Barcelona e alhures, cosmopolitas - como bons cidadãos globais -, porém admiradores do samba - como bons brasileiros -, apreciadores das artes e dos pensadores mais refinados, na sua pretensão de artistas ou intelectuais, mesmo que apenas entre seus pares (já que fazer sucesso é difícil), seguem tendo Europa e EUA como único norte: que não seja para ser um blasé, mas para se referir a esse estilo, nossa referência é sempre a França de Truffaut, Godard, Sartre, Camus e Piaf, os cafés, os cachecóis, os óculos de aro grosso (e isso não é uma dedução minha, era explícito em nossas conversas). Talvez porque para nós o Brasil, esta terra quente e tropical, de gente extrovertida e espontânea, do samba-caipirinha-futebol (que negamos e acusamos de simplista sempre que ouvimos tal definição que, no fundo, seguimos), não orna com os altos esforços intelectuais, com a reflexão profunda sobre o ser, com o tédio, com a melancolia. Neste ponto, parece que com o dueto ditadura militar e pacto democrático de 88, o Brasil dos grandes centros, da "alta cultura" e da "alta intelectualidade" andou para trás, e sequer consegue ser antropofágico, preferindo o mimetismo simples e acrítico (ou com apenas um verniz de crítica superficial). 


23 de setembro de 2018

PS: sim, vejo uma base muito próxima no estar no mundo entre a intelectualidade universitária de esquerda e o fascismo que hoje ocupa boa parte da nossa discussão política.



sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Eleições 2018: Haddad no segundo turno e Ciro (ou Alckmin) por um bola para desbancar Bolsonaro

Pesquisas eleitorais não são apenas retrato de momento, são retratos muito falhos, com erros grosseiros mesmo a um dia do pleito. Ainda assim, é o que se tem para fazer alguma análise sobre o cenário eleitoral.
Quando comentei o primeiro debate, na Bandeirantes do golpe, falei que parecia que os candidatos estavam cientes de que disputavam a segunda vaga para o segundo turno - a primeira era do PT. O crescimento de Haddad era esperado e óbvio - só algum acontecimento muito fora do comum impediria seu crescimento: o PT nacionalmente conta com cerca de 30% do eleitorado, teve uma queda nesse índice com os ataques promovidos pelo consórcio golpista, mas diante do exagero na dose da mídia e da condenação sem provas de Lula por crime que sequer foi especificado, houve um efeito rebote e o PT está no mínimo no mesmo patamar, com a militância mais aguerrida que em tempos não muito distantes. Por mais que fosse dificultada a transferência de votos de Lula a Haddad, sua identificação com o PT já tenderia a garantir votos suficientes para uma das vagas. Sua escolha também se mostra acertada por quebrar a resistência de antipetistas menos radicais, daí a insistência da mídia e dos adversários de marcá-lo como sendo do PT.
Alckmin parte para o tudo ou nada. Sobe o tom dos ataques contra Bolsonaro, marca posição como antipetista da gema, e ameaça o Brasil de se tornar uma nova Venezuela da mídia, se elegerem um dos "extremistas", tentando fazer valer a clivagem que há mais de um ano a mídia tenta produzir, sem sucesso, de que o PT seria um extremista de esquerda, um Bolsonaro de sinal invertido. O problema é que por não empolgar corre risco de definhar ainda mais para Ciro Gomes, que se mantém firme perto dos 15% das intenções de voto, faz discurso de alguém muito bem preparado e não exatamente antipetista, mas pós petista, que acaba palatável não apenas aos não petistas que nada tem contra o partido de Lula, como entre antipetistas lights, com alguma capacidade de discernimento entre um candidato do campo democrático e um maluco com fortes pendores ditatoriais e sádicos. Ciro, se se mantiver onde está, crescendo um pouco, pode chegar ao segundo turno. Alckmin primeiro precisa derrubar Bolsonaro e então partir para uma operação abafa tentando superar Ciro. Ainda não conseguiu a primeira tarefa, pode ser que consiga, porém acredito que dificilmente conseguirá também a segunda, a tendência é definhar ainda mais, caso Bolsonaro caia também.
Bolsonaro é, desde o início, o outro nome forte para o segundo turno, mas não está garantido. Não porque o sistema político tenderia para a polarização de sempre, PT-PSDB, como certos analistas e cientistas políticos desejavam, e sim porque é um candidato fraco, mesmo. Tem uma base de fanáticos e alguns tolos que se deixaram levar pela onda. Por um lado a facada foi uma sorte: quanto mais ficar quieto, melhor. Por outro lado, não: além de dúvidas sobre seu real estado de saúde, sua equipe dá mostras de ser mais estúpida que o próprio - quase um representante da Sorbonne entre seus partidários. Uma frase infeliz dele, de seu vice ou de seu guru econômico, se bem explorada pelos adversários (Ciro, Alckmin e a mídia), pode desidratá-lo a metade do que tem hoje, creio. Segurança pública (pouco explorada, na minha opinião), CPMF e aumento de impostos para a maioria da população, e agora Mourão atacando não apenas as mulheres, mas as mães - essa entidade semisanta - e seus filhos. Bolsonaro se defende com o discurso de que tudo o que se fala dele é invenção de esquerdista, fake news. Se em algum momento se conseguir furar essa defesa, ele cai. Duro é que falta pouco tempo, ao menos para o primeiro turno.
A disputa contra Bolsonaro pela sua vaga no segundo turno me lembra meu Paraná Clube, na série A, em especial quando ainda comandado pelo Micale (meu outro time, que torço por influência de meu avô, o Operário Ferroviário, se tudo der certo, se consagra campeão da série C amanhã): o time é muito limitado, ainda assim não chega a jogar mal, porém joga tudo por uma bola; duro que na grande maioria das vezes não apenas toma o gol primeiro, como dificilmente aproveita a bola do jogo que tem para fazer o gol. A comparação com o Paraná não foi sem propósito: o time não é apenas lanterna, mas caminha para a pior campanha dos pontos corridos, e isso serve de analogia para a dificuldade em se desbancar o candidato fascista de onde está - mesmo com alguma ajuda da mídia.
Há quem o veja como um novo Collor, com mídia e empresariado dispostos a apoiá-lo, para vencer o sapo barbudo, repaginado em dupla de galãs de novela. Não me parece ser o caso. A mídia hesita: se não bate, tampouco apoia. Creio que há dois pontos para esse comportamento: o primeiro, por saber que é candidato com grandes chances de derrota, então tentar, quem sabe, barganhar neutralidade com Haddad (com Ciro não vai ser preciso, por ora), em troca do partido não comprar briga quando assumir. O segundo, que Bolsonaro não tem um "vice-caução", como tinha Collor: o aventureiro alagoano podia ser posto no Planalto porque, qualquer coisa, tirava-se (como de fato se tirou) e no lugar havia um político sério, de carreira: Itamar Franco (o tal vice-caução é minha tese também sobre a aceitação das vitórias petistas nos últimos anos). Se eleito, eventual impedimento de Bolsonaro poria alguém ainda pior: não haveria escapatória fácil, com verniz legal, para os próximos quatro anos, e não há uma burocracia consolidada para freá-lo - pelo contrário, parte das altas esferas estatais já mostrou estar disposta a apoiar a instalação aqui de um estado neofascista aos moldes das Filipinas.
Luis Nassif fala em um início de pacto pela democracia [http://bit.ly/2QPGOEP], com supremo, com tudo - o que não deixa de ser bom, em alguma medida, mesmo que com efeitos colaterais. Pode ser não apenas a percepção de algumas frações golpistas (minoritárias, me parece) do quanto se perde com um governo Bolsonaro, como uma tentativa de manter a democracia brasileira em baixa intensidade, obrigada a ceder aos interesses dos de sempre, e ainda assim democracia - o que cai bem no exterior. Bolsonaro fora do segundo turno permitira um rearranjo mais tranquilo, com maior aparência de normalidade democrática - inclusive a própria derrota do candidato petista, com uso de todo aparato de terrorismo midiático para (mais) um golpe branco do tipo.


21 de setembro de 2018.