quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O fascista comum: um pobre coitado.

Tempos atrás, escrevi sobre o fascista comum, um zé ninguém como eu, como você, mas que diferentemente de mim (e, espero, de você que me lê agora), aderiu esfuziante ao cio da cadela fascista, desumanizando quem vê como diferente e achando que o mundo será bom o dia em que a harmonia será perfeita, graças à aniquilação de qualquer diferença - de posição política, opinião, cor de pele, gosto ou corte de cabelo [http://bit.ly/2xY2e9Y]. De início, cri que meus amigos e conhecidos que aderiram ao fascismo eram pessoas dotadas de má-fé e de burrice - não cabe falar em ignorância, porque são pessoas com ensino formal, acesso a livros e internet, não podem alegar desconhecimento, é má-fé na interpretação dos fatos ou falta de capacidade de cognitiva para tanto, certamente um misto dos dois. Ainda que o movimento dos patos batedores de panela tivesse fortes tintas fascistas, evitei taxar seus adeptos como tal, uma vez que a campanha da mídia goebbelsiana havia sido feroz contra o PT. Notei, no início do ano, que muitos dos meus amigos do Fakebook que bateram panela silenciavam sobre política, ou se diziam em decepção geral - haviam se tocado que foram feitos de pato, enganados feito crianças de quatro anos.
Com a campanha presidencial, discursos de ódio voltaram a ganhar legitimidade, e a postagem de um "amigo" do Fakebook me fez notar um outro aspecto do fascista comum que eu não atentara há seis meses: além de má-fé e burrice, o fascista comum é, no fundo, um pobre coitado, alguém com baixa auto-estima e sérias dificuldades em aceitar quem é, incapaz de se enxergar de fato no espelho, e que na ânsia de seguir acreditando na mentira que criou para si próprio, adere facilmente ao líder fascista, se autoenganando que essa identificação ao líder vai alterar quem ele é.
Tomo um exemplo muito específico, mas que creio significativo: um ex-professor que tive na SP Escola de Teatro. Em 2014 aderiu contente e caninamente a Aécio, questionou a legitimidade das eleições e chamou Dilma de estelionatária (por cumprir o programa que ele defendia); em 2015 bateu panela e não teve peias em chamar Dilma de vaca; em 2016 festejou que o Brasil havia sido devolvido para ele e torcia pela prisão de Luladrão, pouco importa que apenas por convicção; no início de 2018 estava silente, nada de política, sequer da prisão de Lula: só fotos em família. E continuava morando no Brasil, sinal que não soube aproveitar a oportunidade dada pelo golpe - ou não tinha dinheiro para tanto, de modo que precisa seguir camelando pelo pão de cada dia em terras tropicais.
Pelo visto, a campanha presidencial deste ano fez esquecer a vergonha que passou ao aderir sem pensar a líderes e pautas suspeitas, e permitiu a ele se libertar para assumir seus preconceitos - sem expressá-los claramente, como bom homem cordial. Em postagem precária de raciocínio, reduziu a política brasileira a PT e Bolsonaro para declarar voto no nazista. Como em texto que corre pela internet, há 11 opções entre PSL e PT, os debates apresentam boa parte desses candidatos, muitos deles possuem boa parte dos mesmos ideais do capitão, o que impede alegar ignorância: o voto fascista não é apenas por questão de antipetismo, mas de simpatia com suas bandeiras mesmo. 
Esse ex-professor é sintomático pela sua figura. Votar em Bolsonaro serve para negar a realidade mais bruta acerca de si próprio, até que um dia essa realidade seja brutalmente atirada contra seu rosto - e então ele, tardiamente, talvez perceba qual seu lugar na hierarquia fascista. Seu perfil na rede social é um desenho em que ele se apresenta como uma pessoa branca. Aqui no Brasil da cordialidade e do preconceito (mal) disfarçado, como temos um Pantone de cores para as pessoas, mil formas de alegar que alguém não é branco, ele pode ser identificado como "moreno"; nos EUA ou Europa, certamente seria "negro", sem necessidade de qualquer discussão. De volta ao Brasil, numa batida da polícia, certamente ele seria visado enquanto eu passaria tranquilamente - a depender da situação (como já me aconteceu), eu até poderia peitar o policial enquanto ele teria que ficar com as mãos na cabeça, humilhando perante os demais. Também seria algo pela cor de pele para uma milícia fascista paraestatal. Não apenas isso. Para meu primo, membro de gangues neonazistas de Curitiba há vinte anos (apesar de ele ser negro, ou melhor, moreno), esse professor tem cara de nordestino, e seria um dos alvos preferenciais dos seus ataques (me vem à lembrança nós assistindo ao jornal televisivo e ele xingando os "baianos", bando de "preto", "feio", "vagabundo", "fedido" que "não gosta de trabalhar" e "se deixar, fica na praia e faz carnaval o ano todo", tínhamos uns 17 anos na época; hoje ele vive basicamente de mesada dos pais, enquanto patina como professor de yoga bolsonarista). Outro "porém": ele é casado com mulher, tem filho, mas é um homem de gestos delicados, jeitosos, muito distante de um macho alfa, e pode facilmente ser confundido com um homossexual - creio que fascistas e homofóbicos de plantão pouco se importarão em questionar se ele de fato é gay antes de começar a golpeá-la. Seu porte físico tampouco permite acreditar possibilidade de defesa - apanharia até para uma gangue mirim que tentasse abusar de sua esposa, que é negra, e que ele não deve achá-la bonita, pois não teme que ela tenha "o direito" a ser estuprada - o elogio mais eloquente que uma mulher pode ganhar de um homem fascista, ser penetrada à força -, sem falar que deve ser bem submissa, para ser do seu agrado - se acreditarmos no que ele próprio fala.
Fico a imaginar o quanto ele não sofria quando trabalhava com teatro (pelo seu Fakebook, tenho a impressão que largou a área). No meu curso, cerca de metade dos alunos era composto por mulheres; 40% eram negros, e uns 70% homossexuais. Fora do curso, nos palcos e coxias, o número de pessoas negras, de homossexuais e de mulheres também é bem elevado. Como devia controlar o nojo de ter lidar com esse tipo de gente todos os dias? E ainda parecer simpático, atencioso e muitas vezes servil (porque ele era um zé ninguém da área, assim como um professor mediano, facilmente substituível, que nunca pode, portanto, dar pitis de estrela)? Quantos anos não teve que segurar esse ódio, em nome de ter uma aparência de pessoa legal. O que nele motiva esse ódio todo? 
O antipetismo é claramente um subterfúgio para não ter que encarar o desejo (interdito) que o consome por dentro, feito um câncer. Certamente o que ele odeia não é o outro, é a si próprio: o outro é um espantalho que o distrai daquilo que o perturba - e ele, como fascista comum, é um perturbado: muito mais fácil dizer que a culpa é do outro, inteiramente do outro, e ele, um inocente. E em alguma medida ele deve ser mesmo um inocente: conscientemente virgem daquilo que o oprime desde dentro e não o permite gozar a vida de modo leve e prazeroso. Não conheço nada da sua vida, o que me impede maiores conjecturas sobre seu caso particular, a não ser generalidades a partir daquilo que ele alardeia em suas postagens cheias de ódio: um pobre coitado que se gostaria de ser da elite, se nega a enxergar que não é elite, nem nunca será em um governo fascista: por ser negro, por parecer nordestino, por parecer homossexual, e por ser um classe média remediado, sem dinheiro suficiente para, quem sabe, tentar comprar seu atestado de legítimo homem branco do sul - espécie de carta alforria (falsa) destes tempos - ou uma quinta em terras lusitanas. Talvez, como é tão comum nestes Tristes Trópicos, tenha uma história de privação, de humilhações ao longo de toda a vida por causa da sua aparência e do seu jeito: mas nesse ponto, em que caberia entender que a culpa é, sim, do outro - ainda que um outro abstrato e imiscuído com o contexto e a história -, ele aceitaria que se trata de uma falha sua, e que a adesão aos valores que sempre o oprimiram, encarnado nestas eleições em Bolsonaro (com em 2014 foi em Aécio e em 2015 em Cunha) o limparia de seu pecado original: não ser branco, de ascendência europeia, classe média alta.

27 de setembro de 2018

domingo, 23 de setembro de 2018

Blasé tropical [DIálogos com a dança]

O olhar estrangeiro sobre nós nos permite desenxergar muitas coisas que nos soavam tão naturais que sequer necessitavam ser vistas. Esse olhar pode ser ao ir para o exterior, se pôr em contato com uma outra realidade (dentro do próprio país), ou quando o estrangeiro (ou migrante) vem até nós e se surpreende com aquilo que nos é óbvio. A questão é o quanto estamos abertos (ou seria aptos?) para ir além do familiar, sem preconceitos e sem temores paralisantes. Frantz Fanon só é Frantz Fanon porque soube se desenxergar e se enxergar de outros modos - ou então seria apenas outro zé ninguém na Martinica, arrotando prepotência para outros zé ninguéns tão negros quanto ele, mas mais zé ninguéns porque não moraram na França nem falavam o francês "correto". Soube - de modo fenológico, arrisco dizer - aceitar a forma como era visto na França como a verdade, não a verdade absoluta, mas a verdade dessa visão - parcial, preconceituosa, rebaixadora, formadora das verdade das elites da Martinica e da França. E se deu conta que ser capitão do mato poderia lhe dar alguns privilégios, sem o salvar, porém, de ser um dos condenados da Terra - o colonialismo europeu, sempre presente, é como a hospedagem de Polifemo com Odisseu: daria a Fanon o privilégio de ser comido por último. E como Odisseu, Fanon soube que se assumir um ninguém, um zé ninguém, era a chance de salvação de todos os que estavam na mesma condição.
Escrevo isso pensando em amigos, conhecidos e desconhecidos que foram para o exterior e voltaram tal qual foram - ou sequer voltaram, mas seguiram os mesmos. Visitar os pontos turísticos consagrados pelo roteiro da circulação de pessoas é bonito, interessante - eu mesmo gosto -, porém nada, muito pouco acrescenta - uma professora (suíça) do mestrado dizia que se era para viajar só para ver os locais consagrados, melhor, fotografar ponto turístico melhor ir numa livraria de São Paulo, mesmo, e comprar um postal, sai mais barato e dá na mesma. Amiga que mora no Canadá comenta que recebe seguidamente da comunidade brasileira abaixo-assinados contra o aborto, o casamento homoafetivo e outros avanços legais canadenses. Não se trata de defender um adesismo cego, porém, se ser chauvinista já não é bom, quando se mantém essa mentalidade morando no exterior, só mostra a incapacidade de qualquer reflexão, para além da dos espelhos bem polidos (e vale para os que aderem ao chauvinismo local, como um (ex) amigo que foi morar nos EUA e não cansa de louvar a terra da liberdade, onde só há pontos positivos - tirando os mexicanos e os árabes). Como cantam os Racionais Mc's em "Negro Dama": não dá para tirar a favela de dentro de quem nasceu nela: saber assumir sua origem, trazer suas referências consigo, entretanto aberto ao que surge de novo. Não é destino, mas é parte da história. 
Na verdade, ao começar a escrever, pensava mesmo em exemplos menos drásticos, criticar meus colegas de fração de classe, homens e mulheres na faixa dos trinta, quarenta anos, universitários, mestres, doutores, brancos, de esquerda, descolados, cosmopolitas com toques nacionalistas (anos-luz do patriotismo chulo de um Galvão Bueno), que geralmente passaram uma temporada no exterior - de alguns meses, ao menos. Como parte do discurso de valorização do Brasil, não raro gostam de samba, sabem até a letra de alguns famosos, como "Trem das onze" (ultimamente alguns até ousam um funk ou afim, depois que parte dessa cultura foi valorizada por teses universitárias), mas também não dispensam um rock alternativo internacional - se hoje odeiam hypster é porque não podem se assumir, pois pegaria mal a eles, antigamente emos ou indies, dançar de moda em moda, deixando evidente sua preocupação em estar up to date, na ausência de algo mais sólido com o que conseguiriam se apresentar. Em meio a estes meus amigos, é comum os que mantém uma pose blasé: aquele que quer fazer o estilinho intelectual ou artista parisiense desolado do pós guerra, o entediado com cara de bunda, o "descolado descolado" - a pessoa especial que não tem lugar nestes Tristes Trópicos. Admito que blasés são dos que mais me cansam - acho só perdem pros indies ressentidos que odeiam hypsters.
Todo essa conversinha de cerca lourenço acima por conta de dois espetáculos de dança a que assisti recentemente. Um deles foi este fim de semana, "O que ainda guardo", da Quasar Cia. de Dança, de Goiânia. Uma hora de dança embalada por bossa nova. O espetáculo é bom, bonito, divertido de um humor sutil (como no rapaz guache (para usar um termo franco-drummondiano) que ensaia se aproximar da mulher que se insinua ao som de "Só danço samba"), com uma leveza gostosa (como em "O Pato"); porém me fez lembrar que, ainda que eu goste de bossa nova, não aguento muito: dá sono. Sambas do sono. Sambas brancos, classe média, jazzísticos: a retomada antropofágica de Oswald de Andrade ao ethos (ou seria ao pathos?) das elites nos anos sessenta. E qual seria esse ethos ou pathos?
Quem me deu a deixa foi a companhia francesa Cie. DCA Philippe Decouflé, que apresentou em São Paulo, no final de agosto, a ótima e divertidíssima "Nouvelles Pièces Courtes". Não sei se é o original, ou foi adaptado para o Brasil, porém no ato anterior aos bailarinos embarcarem para o Japão oitentista, com seu consumismo bizarro e sua programação televisiva bizonha, a cena do aeroporto tocando bossa nova, num clima sessentista e blasé, me fez entender que é isso - esse som que orna com certa cara de bunda e tédio enquanto se toma água de coco e fuma um cigarro em Ipanema - que tanto me cansa: seu "blasésismo", mesmo que abrasileirado. Se acaso foi adaptado para a apresentação aqui, a junção entre bossa nova e o estilo blasé foi de uma harmonia perfeita: aquele samba contido, de bons modos, voz e violão, para não incomodar os vizinhos do andar de baixo em algum edifício da Avenida Vieira Souto, o chique cosmopolita tentando fugir do tédio com uma versão para gringo ouvir do samba que se faz no morro. Som brasileiro-cosmopolita de altíssima qualidade adaptado para harmonizar com não-lugares - no caso de "Nouvelles Pièces Courtes", o aeroporto. Um blasé tropical, mais leve, mais solto, e com uma pitada de melancolia para quem a vida não tem prestações a pagar nem faz sentido.
Fecho este texto retomando o que havia falado antes, o complexo de vira latas tupiniquim: meus amigos da minha fração de classe, ilustrados e de esquerda, vividos em Paris, Berlim, Londres, Barcelona e alhures, cosmopolitas - como bons cidadãos globais -, porém admiradores do samba - como bons brasileiros -, apreciadores das artes e dos pensadores mais refinados, na sua pretensão de artistas ou intelectuais, mesmo que apenas entre seus pares (já que fazer sucesso é difícil), seguem tendo Europa e EUA como único norte: que não seja para ser um blasé, mas para se referir a esse estilo, nossa referência é sempre a França de Truffaut, Godard, Sartre, Camus e Piaf, os cafés, os cachecóis, os óculos de aro grosso (e isso não é uma dedução minha, era explícito em nossas conversas). Talvez porque para nós o Brasil, esta terra quente e tropical, de gente extrovertida e espontânea, do samba-caipirinha-futebol (que negamos e acusamos de simplista sempre que ouvimos tal definição que, no fundo, seguimos), não orna com os altos esforços intelectuais, com a reflexão profunda sobre o ser, com o tédio, com a melancolia. Neste ponto, parece que com o dueto ditadura militar e pacto democrático de 88, o Brasil dos grandes centros, da "alta cultura" e da "alta intelectualidade" andou para trás, e sequer consegue ser antropofágico, preferindo o mimetismo simples e acrítico (ou com apenas um verniz de crítica superficial). 


23 de setembro de 2018

PS: sim, vejo uma base muito próxima no estar no mundo entre a intelectualidade universitária de esquerda e o fascismo que hoje ocupa boa parte da nossa discussão política.