terça-feira, 9 de outubro de 2018

Um nove de outubro sob nuvens fascistas

Sigur Rós me deixa um pouco à flor da pele. Um pouco mais, na verdade, porque à flor da pele já ando com a situação do país - eu e tantos amigos meus. O ódio, a burrice, a cegueira e a desumanização  do outro encarnado num candidato militar mal treinado e de raciocínio precário. Sua derrota dia 28 será apenas barrar o desastre total, dar força para uma possível resistência. A mobilização permanente deverá ser a tônica dos próximos tempos, sob o risco de cairmos no totalitarismo neofascista-neoliberal. Uma das nossas missões para tão logo encerre as eleições: fazer as pessoas serem capazes de enxergar. Enxergar o outro como um próximo, um igual, o outro como um ser humano - talvez, antes, ser capaz de fazer a pessoa enxergar a si própria como um ser humano, e não qualquer fantasia rota de super-homem (no sentido nietzschiano) que usa para encobrir sua mediocridade, seu ressentimento, sua frustração em não ser o que o espetáculo diz que deveria ser e ela finge encarnar.
São duas da tarde, já conversei pelo facebook, já mandei um calaboca pelo facebook, já expliquei que política é algo mais complexo que voto na urna, já li muita coisa, compartilhei, escrevi. Agora me dedico a preparar o boletim mensal do Serviço Pastoral dos Migrantes, parte de meu trabalho voluntário de quase quatro anos. São notícias de coisas pequenas, de banalidades das quais a vida é feita: uma reunião aqui, uma missa acolá, um encontro, uma mística com alguns migrantes e imigrantes, um apoio, uma acolhida, um protesto. No meu tempo de faculdade, diria que esse tipo de ação não era para mim, que isso beirava a insignificância, na minha fantasia de que eu deveria me dedicar a uma grande ação - pensamento infantil quebrado pela ação do tempo bem aproveitado, transformado em experiência e maturidade. Muitos dos meus amigos de antanho me olham estranho quando falo do meu trabalho na igreja, e eu sei porquê, e logo explico: sigo ateu, tanto quanto sempre fui, talvez até mais, mas se for buscar uma ação social que eu concorde 100%, me restaria agir sozinho ou em algum grupelho minúsculo, em ações estéreis - mas que poderiam me fazer convencer as paredes do quarto e dormir tranquilo. Prefiro conviver com a diferença, abrir mão de crenças secundárias da minha parte em nome de uma ação um pouco mais efetiva. Uma ação que vise um mundo mais justo e humano - sigo um "humanista ingênuo", como me acusavam na faculdade, definitivamente eu não soube me tornar um adulto responsável e por isso sigo em lutas "idealistas".
Uma dessas notícias que subo para o boletim é do recebimento, por parte de imigrantes que fazem curso de português em Manaus, de um kit com apostila, caderno, lápis, borracha, caneta. Há duas fotos que acompanham a brevíssima descrição. Nelas, 25 pessoas, a maioria negra, mostram suas pastas coloridas - pastas simples, dessas compradas em qualquer papelaria, sem qualquer personalização -, muitas sorriem para a foto, fazem sinal de positivo, algumas se escondem atrás dessas mesmas pastas. Estão ali, orgulhosas de uma caneta, um lápis, uma borracha, um caderno e uma apostila de português. Uma caneta simples, um lápis simples, uma borracha simples, um caderno simples e uma apostila de comunicação e expressão em português e cultura brasileira. Não é um diploma universitário, não é o carro do ano, não é um jantar em algum restaurante de chef que eles ostentam para a câmera. É um kit de cinco reais e aulas que não dão certificado. É quase nada. E mesmo sendo quase nada, para essas 25 pessoas vale muito, vale um fio de esperança com a qual pretendem tecer uma nova vida, por isso mostram suas pastas e seus sorrisos. E por um instante tentam esquecer das agruras que passaram para chegar nesse quase nada que é tanto, é motivo de orgulho, e das dificuldades homéricas que certamente ainda terão pela frente, até terem uma vida digna, uma vida humana - uma vida que não seja sobrevivência.
Olho para a rua chuvosa, nesta terra que pariu o neofascista Dallagnol, falso profeta de deus. Meus vizinhos babam ódio, fazem promessas falsas para um deus que abominam, idolatram a morte, invejam o amor e a vida, mesmo a miserável - que ainda assim é pulsante. Trocaram sua humanidade pelo carro do ano (e agora nutrem a ilusão de que uma arma poderá substituir seu genital murcho ou seco), e precisam aniquilar os "inferiores" porque estes jogam na sua cara, com sua simples existência, que o pacto com Mefistófeles era facultativo - e o que ganharam nem de perto equivale ao que pagaram. Por isso acham muito cem reais no Bolsa Família, acham absurdo dar comida a quem tem fome, livros para quem quer aprender, oportunidade para quem quer se dedicar. Meus vizinhos são infelizes, são pobres coitados com as prestações em dia, uma vida que nunca foi de verdade e dificilmente chegará a ser, perdida em obrigações que a máscara de um "cidadão de bem" coage. Votam no Bolsonaro e fingem não perceber que estão na fila para o campo de extermínio tanto quanto os que odeiam.

09 de outubro de 2018


segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Eleições 2018: primeiras impressões pós resultados

Não há muito o que discutir quando se pensa quem foi o grande perdedor neste sete de outubro: o Brasil, nossa democracia capenga, nosso estado de direito pela metade, nossa Constituição violada. Como já alertavam Vladimir Safatle, Luis Nassif e outros, o pacto social que sustentava nossa aparente cordialidade foi esgarçadoa e cada vez mais dá lugar à brutalidade pura e crua - o Brasil tornado um grande Capão Redondo (que ao menos surjam mais Racionais MCs) -, e o pacto institucional firmado pelas elites no fim da ditadura chegou ao fim. Os resultados apontam um reassentamento das frações de elites - sem que sejam todas contempladas. Os vídeos (criminosos, segundo a lei eleitoral) de eleitores usando armas para digitar seu voto no candidato fascista é só uma mostra do efeito de seu discurso: tornar legítimo e socialmente valorizado a expressão da força brutal mais covarde. Institucionalmente, vai ser extremamente difícil governar com a dispersão de forças - vale para Haddad e Bolsonaro -, onde a maior bancada possui pouco mais de 10% dos assentos. Não é ironia, mas é significativo que a maior bancada seja a do PT, seguida da fascista - ainda que haja fascistas dispersos em outros partidos, como DEM, PSC, PSDB, PTB, Podemos, PP... O que assusta na composição legislativa vindoura é que, a despeito do que até os mais pessimistas alertavam - Alceu Castilho, do De Olho nos Ruralistas, foi um dos que mais chamou a atenção para isso -, o próximo congresso não é apenas mais conservador que o atual: o conservadorismo deu espaço para o fascismo aberto. Para aumentar o desalento, nomes de peso como Requião, Suplicy, Lindeberg, Dilma Rousseff foram rejeitados por políticos menores. E eiseste o ponto mais marcante de sete de outubro: a democracia está em risco (Bolsonaro, não duvide, não hesitará em um "autogolpe" quando se virver engessado pelo congresso) e ainda que ela se salve, não há mais possibilidade de jogo político com as regras atuais - uma ampla reforma política é imprescindível. Olhando para o micro, os dois partidos que lideraram o golpe de 2016 e as reformas antipopulares de Temer foram os derrotados nas urnas. MDB e PSDB, de segunda e terceira forças em 2014 (total de 120 deputados, quase 1/4 do congresso), ficaram em quarto e nono, respectivamente, com 63 deputados juntos. O definhamento do PSDB, a princípio, não tem o que ser comemorado, já que no seu lugar entrou o fascista PSL - por mais que os tucanos desde 2010 flertamflertem com o fascismo. Alckmin teve um desempenho sofrível, em parte por conta da migração do voto útil ao fascista já no primeiro turno, em parte pelo que o PSDB se tornou. Assim, os menos de 5% foram vergonhosos. Regionalmente, o partido foi para o segundo turno em cinco estados (SP, MG, RS, RO, RR), três dos quais de grande importância, porém sem ser franco favorito em nenhum dos cinco. É sua chance de sobrevivência enquanto partido, e possibilidade de voltar a ser uma força nacional, talvez. O ponto, porém, é por onde o PSDB correrá a partir de agora, se tentará voltar ao campo democrático, como sinalizou Tarso Jereissati, ou abraçará de vez o fascismo de cashmere de Doria Jr (vejo agora que FHC aponta esta segunda opção). Quem tende a perder também é a Rede Globo e a igreja católica. Paulo Ghiraldelli Jr. comentava que um dos pilares da campanha de Bolsonaro eram as igrejas evangélicas. O apoio explícito do bispo Edir Macedo, pondo a serviço do candidato a Rede Record (outro crime eleitoral), certamente virá com cobrança depois - ao custo da igreja católica e da Rede Globo, que perderá a vez de porta voz oficial do governo. É a movimentação dessas três forças: PSDB com sua intelectualidade (ou que se pretende) neoliberal e seus contatos na elite pretensamente esclarecida, a igreja católica entre a cruz e a espada - ajudar a vencer o "comunismo" e perder a primazia das almas, ou aceitar o PT e seguir na disputa aberta com evangélicos -, e a Rede Globo, que perdeu seu quintal para o bispo e agora pode perder o país todo para o rival. Menção rápida à outra perdedora do pleito, Marina Silva, que demonstrou que a política baseada no ressentimento não vai longe - Marta Suplicy foi mais esperta e saiu de campo antes de passar vergonha como sua ex-correligionária. Boulos, (apesar de ter sido o candidato do PSOL com menos votos na presidencial),; Ciro Gomes, Cabo Daciolo (recebendo votos de protesto), e João Amoêdo, não podem ser considerados perdedores. Ciro encarnou um trabalhismo esclarecido, o pós-petismo, música para os ouvidos para porção da classe média progressista. Precisaria ganhar base social, talvez apoio petista no futuro. Boulos trouxe os movimentos sociais para a ribalta, ajudou, ainda que discretamente, a minorar a resistência ao MTST e outros movimentos de luta, ao menos deu voz a eles em horário nobre, fora da crônica policial. Espero que siga como cabeça nas eleições futuras, com a ênfase do partido nas legislativas - em que conseguiu superar a cláusula de barreira. Amoêdo prometeu ser o neoliberal intelectual e de sucesso, mas foi apenas outra versão do neofascismo tupiniquim - como Álvaro Dias e, em menor medida, Geraldo Alckmin -, ainda assim teve mais da metade dos votos do tucano - o que pode indicar por outros meios o esgotamento do PSDB. Se souber moderar o discurso raivoso e adotar bandeiras menos conservadoras, a depender da movimentação do PSDB, pode substitui-lo no campo que se diz de direita-liberal (que nunca foi liberal). Agora é ver como serão os acordos para o segundo turno, e se o Brasil vai tentar se equilibrar numa crise ou pula direto no precipício. 08 de outubro de 2018