segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Eleições 2018: Balanço prévio de perdedores e vencedores.

Reitero o que disse ao fim do primeiro turno: esta eleição é uma grande perda para todo o Brasil - e seria mesmo com vitória de Haddad. Porém, vou dar uma analisada em mais detalhes diante do resultado das urnas (não fraudadas, apesar do processo eleitoral fraudulento). 
Há quem veja alarmismo naqueles que dizem que a eleição de Bolsonaro é o fim do nosso breve interregno democrático (de baixa intensidade, mas ainda assim, algum respiro democrático). As instituições estão funcionando, dizem, e sou obrigado a concordar com essa constatação e por isso digo com mais segurança ainda: a democracia caminha célere para a tumba. Porém, como padeço de otimismo inveterado, creio que não é uma marcha inexorável. Se as forças democráticas (progressistas em especial, mas não só) souberem se organizar e agir com inteligência, a dominação neofascista-neoliberal, em alta atualmente, pode não conseguir se firmar: a experiência histórica, aliada às novas tecnologias, os novos meios de comunicação, permitem novas formas de articulação e resistência, em que comunidades solidárias micro podem caminhar juntas com articulações macro - a onda espontânea de escuta e diálogo que tomou os últimos dez dias de campanha me parece ser um ponto de partida importantíssimo: deixar uma parte da população sob aviso de que há pessoas dispostas a ouvir e acolher, para quando a decepção com Bolsonaro começar (e ela começará em breve, a não ser que haja uma guinada fascista na economia também, por ora descartada). Agir sorrateiramente, menos passeatas e mais "passeios": a possibilidade de construção de uma narrativa - ou das bases para uma narrativa - pró democracia é grande.
O PSDB, como eu já anunciara em 2016, acabou enquanto opção democrática. O murismo de FHC, o vai e volta de Huck, e a vitória do fascista de cashmere em São Paulo devem levar os tucanos a hastearem sem peias a bandeira fascista e à debanda de figuras históricas, mesmo as mais à direita. Doria Jr. se apresenta como o fascismo de bom gosto (sic), para desfilar no exterior, e tem tudo para ser a oposição a Bolsonaro dentro do mesmo campo.
Ciro Gomes caiu na armadilha que engoliu vários expoentes nacionais: a política baseada no ressentimento. Cristóvão Buarque, Marina Silva, Marta ex-Suplicy são alguns exemplos de políticos que abdicaram da personalidade pública pelo próprio ego e desapareceram. Ciro talvez consiga contornar essa sina - afinal, é um coronel -, mas terá dificuldade em recuperar sua imagem nacionalmente: se se apresenta como alguém bem preparado, ganhou também a pecha de fugir no momento decisivo, e deixar o orgulho se sobrepor ao espírito público - seu passeio pela Europa não vai poder ser vendido como estratégico (juro que de início tentei acreditar que articulasse algum apoio internacional, para um retorno triunfal).
Uma pena, Ciro poderia vocalizar parte importante do antifascismo, um público reformista, que sabe que as instituições faliram, mas creem que um "coronel esclarecido" saberia encaminhar uma reforma sem maiores traumas. Por ora temos Boulos, com ativismo mais de base; Haddad, com penetração em meios mais ilustrados e "moderados", "habermasianos", com possibilidade de se firmar como expoente do "pós-petismo", apesar de ser do PT; e Lula e o PT, em um universo mais popular e menos organizado - e um dos papeis do lulo-petismo atual seria marcar uma clivagem social "identitária", de modo a forçar novos termos do debate (para além de nordestinos, ou assistidos, e também mais complexa que questões de gênero). Há espaço, portanto, para um antifascismo mais estridente que Haddad mas menos chão de fábrica que Boulos (Requião, se tivesse sido reeleito, talvez; não sei qual seu apelo longe da tribuna). Nesta luta contra o fascismo, parte da esquerda vai ter que aprender que vencer vale mais que "vitória moral" (Freixo ganhar a prefeitura do Rio com apoio da Rede Globo, em 2016, teria sido muito melhor que permanecer imaculado mas deixar a cidade para o bispo da Universal). Identificar coronéis dispostos a resistir junto, e abraçá-los criticamente, mas abraçá-los (não que sejam confiáveis, mas pelas últimas movimentações, Renan Calheiros e Gilmar Mendes seriam duas dessas figuras importantes neste início de luta contra o fascismo).
Quem perde também é a igreja católica e a Rede Globo. Provavelmente a igreja será posta em aporia: ou extirpa seus ramos pastorais sociais, ou sofrerá perseguições. Se aceitar a chantagem, deixa a avenida livre para evangélicos assumirem a hegemonia religiosa; se resiste, tende a definhar mais lentamente (Juliana Cunha alertou que a educação básica à distância é um ótimo negócio não apenas para conglomerados educacionais, como para as igrejas evangélicas, que poderão abrir seus salões para os pais deixarem as crianças, doutrinando-as enquanto têm "aula"); talvez sua maior chance seja dobrar a aposta e incentivar o trabalho de base, mas a cúpula brasileira é conservadora demais, e prefere seguir o bispo Macedo ao Papa Francisco, como deixou claro o bispo do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta (que alega não ter declarado apoio ao candidato, mas os gestos de seus funcionários mostra bem o espírito que animou a visita de Bolsonaro), além de tantos padres de paróquias.
Já os irmãos Marinho tem tudo para seguir o destino de seu precursor, Assis Chateubriand, defenestrado pela ditadura cujo golpe apoiou. Não basta a perda de importância da mídia tradicional, o que já diminui seu poder, a Globo deixará de ser a rede oficial do poder - enquanto Lula deu sua primeira entrevista aos Marinho, Bolsonaro deu a Macedo. Tentarão ser mais realistas que o rei, na expectativa de não serem liquidados, porém é óbvio que a Record será a nova porta voz oficial, com consequente aumento nas receitas. É esperar para ver os próximos capítulos (inclusive o quanto suas novelas ganharão um ar mais recatado, do lar e evangelizador). Para agora, não consigo vislumbrar saídas à emissora, muito menos de ela caminhar para a oposição, uma vez que Guedes encampa todo seu ideário.
Quem perde também com a eleição são as forças armadas. Ainda que reassumam a ribalta por meio democrático, quem estará à frente da nação é um capitão obscuro, sem controle da tropa. Nomear uma série de ministros generais é a tentativa de ter alguma autoridade no exército. E mesmo que consiga essa autoridade, seu estímulo às milícias sem qualquer controle levarão ao caos, e não à ordem. Se, como disse Marcos Nobre, Bolsonaro cresceu e só sobrevive no caos social, isso acabará por respingar nas forças armadas, que serão vistas como incapazes de restabelecer a ordem - se restabelecerem, Bolsonaro será incapaz de se manter no poder. Ademais, os tempos são outros: assim como a resistência se faz mais firme e fluida que em 64, as novas mídias não permitirão que os casos de corrupção sejam escondidos. Haverá sempre o argumento de fake news, reforçado pela mídia tradicional - e é aqui que o trabalho de base, de corpo a corpo fará a diferença, e uma hora esse discurso não dará mais conta de desmentir a realidade mais óbvia no dia a dia de uma pessoa comum.
Quem realmente ganha? Talvez o 1%, ou uma parte dele, parte do exército, alguns grupos internacionais. Mineradoras, agronegócio, petrolíferas internacionais, bancos, evangélicos, alguns grupos do crime organizado, redes privadas de ensino, mercado de bens e serviços (como saúde, educação e segurança) de luxo. O Brasil deve perder ainda mais relevância internacional, e se os artistas internacionais (como Madonna, Bono, Cher, Waters e outros) começarem a vincular marcas ao regime de Bolsonaro, é bem provável que empresas abarquem a campanha antifascista, ao menos abdiquem de lucros em nome da imagem, já que o mercado brasileiro vai minguar com as políticas econômicas prometidas (vincular a Nike à CBF e o uniforme da seleção aos fascistas poderia ser um primeiro teste).
Disse que sou otimista? Sim, sem deixar de ser realista. É a oportunidade, aproveitando a onda "micro-ativista" do fim das eleições, de começar desde já a construir contranarrativas, a desmantelar a ditadura que se aproxima e, espero, não se firme.

29 de outubro de 2018.

domingo, 14 de outubro de 2018

Fábricas de desajustados (texto atrasado para o dia das crianças)

Passo o domingo preguiçosamente. Me propus não entrar no Fakebook, para evitar maior desgaste (é preciso um dia de descanso na batalha), e aproveitei a rede na casa da namorada para responder ao e-mail de um ex-colega da faculdade, um dos meus grandes amigos até hoje, que reside na Colômbia, onde mora com o marido (e o namorado de ambos). Sim, estou sempre na antepenúltima moda comunicacional: quando todos trocavam e-mail, eu escrevia cartas (parei apenas em 2010 com esse hábito); agora que todos mandam mensagens breves por Fakebook ou Whatsapp, troco e-mails (com a temporalidade de cartas, ainda por cima). Enfim, no e-mail me sinto quase Chico Buarque em "Meu caro amigo", sem querer atiçar as saudades de meu amigo, ao menos não por esta terra, onde ele correria perigo, ainda mais, nos dias atuais - porque a saudade dele segue, e sei que a recíproca é verdadeira.
Enquanto escrevo, minha namorada e seu filho jogam o videogame que ele recém ganhou. O garoto tem oito anos, um pai que dá as caras (quando dá) a cada quinze dias, e serve apenas para prejudicar a educação filho, conforme queixa da mãe (e olha que ele sequer é dos piores, não só não aderiu ao fascismo como vota na esquerda), que eu mesmo já conferi - como o medo exagerado dele por certas situações, após ter assistido a um filme inapropriado para sua idade, para não falar do exemplo que o garoto acaba tendo. Não ajuda, e ainda atrapalha - como sói acontecer com tantos pais (ausentes ou presentes). Assim como outras mulheres, minha namorada ficou indignada ao ser acusada pelo general Mourão, candidato a vice presidente na chapa de Bolsonaro, de que, a despeito de todo seu esforço, dedicação e abnegação, estaria criando um desajustado. A indignação é justa, e a fala do general mostra bem a percepção que a chapa de Bolsonaro possui da presença feminina e seu papel na sociedade: a mulher, cuja função primordial seria a de criar os filhos e viver para a família, é de uma incompetência tamanha que nem isso sabe fazer, se não estiver sob a tutela de um homem. E pior que sei de mães solteiras de filhos negros que votam no fascista.
Mas ao ver a educação/formação que meu enteado recebe, e pensando também na de filhos de muitas amigas minhas (que os criam sozinhos ou com a presença ativa do pai, estejam casados ou não), alguém como general Mourão, como Bolsonaro dizer que fabricam desajustados não deixa de ser um elogio. O que seria uma pessoa ajustada, dentro da ótima desses neofascistas?
Ajustado seria aquela pessoa que não questiona, que não tem interesse real pelo mundo e pela vida; a pessoa adestrada feito um camundongo de laboratório, que aceita tudo, diz sempre sim; incapaz de refletir, incapaz de pensar, incapaz de sentir por conta própria - o mais profundo que alguém ajustado ao neofascismo conseguiria chegar seria um kitsch de segunda classe (conforme Kundera sintetizou o kitsch). Por isso o ajustado a Bolsonaro (como ele próprio) ama a morte: porque no fundo sabe, sente (mas precisa reprimir) que não vive de verdade, conforme seus desejos e seus anseios, que apenas segue a boiada, imita o que dizem que é bom, persegue objetivos que dizem que é bom, teme um deus que dizem que é bom (e nem nota a contradição), tenta ser alguém que dizem ser o bom - o cidadão de bem. O ajustado ao fascismo é alguém pobre de repertório, apto para acreditar em qualquer mentira, a seguir qualquer medíocre com o qual se identifique - Galvão Bueno ou Bolsonaro -, porque é alguém sem auto-estima, e reconhece o valor que essa sociedade ajustada de Bolsonaro e Mourão lhe dá: nenhum.
Às mulheres que criam seus filhos sozinhas, e aos pais que criam seus filhos em conjunto, minha sugestão, meu pedido: sejam fábricas de desajustados, de Mafaldas e Calvins (para usar meus heróis nos quadrinhos), de crianças que preferem aprender a pintar a atirar, que saibam amar e não odiar,  que toda forma de amor é válida, que tenham autonomia para dizer sim e não, e arcar com as consequências, se preciso, sem se esconderem covardemente sob a sombra de um líder de qualquer espécie; que se tornem independentes não porque pagarão suas contas, mas porque pensam (desde cedo) com a própria cabeça a partir de conhecimentos sólidos e experiências de vida ricas. Desajustados que experimentam, que vivem seus afetos sem preconceitos e com liberdade responsável. Desajustados que questionem tudo e todos, sem se apegarem desesperadamente a qualquer verdade pretensamente unificante e salvadora; que enfrentem com respeito as autoridades, os costumes, a moral e os costumes (em especial os bons), que respeitem as diferenças - mas sejam intolerantes diante do intolerável, a tortura, o racismo, o preconceito, o xenofobia, a misoginia, a miséria, a fome, o desrespeito aos direitos humanos. Desajustados que façam do Brasil um lugar onde ajustados com, ajustados como Bolsonaro, Mourão e seu séquito fascista sejam apenas fragmentos de um pesadelo que não se concretizou. Desajustados que façam o mundo todo caminhar para um lugar melhor - para si e para todos. 

14 de outubro de 2018