domingo, 18 de novembro de 2018

Metacrítica do fazer artístico e democrático [Diálogos com a dança]

Acontece até dia 13 de dezembro, na Funarte São Paulo, nos Campos Elíseos, o Dança se move ocupa!, intervenção dos artistas da dança de São Paulo. Fui nas aberturas de processo do último sábado - Ato Infinito e Dança para Camille
Não há como não desvincular a abertura de processo de Ato Infinito, da iN SAiO Cia de Arte, do contexto em que foi apresentado - uma ocupação da Funarte, sem aporte financeiro, após a eleição do Messias do apocalipse - e da fala trazida antes de adentrarmos a sala - em que se assinalou o golpe, a ascensão do neofascismo, o ataque à arte e à cultura, seguido do pedido de desligar celulares e de circular pelo palco. Ato Infinito acabou ganhando ares de crítica metalinguística do fazer artístico (e democrático), um convite à leitura das exigências (mais que das possibilidades) da arte, talvez esquecidas, ou melhor, subestimadas, nos últimos anos.
A arte formada pela proximidade, pelo contato, pela tensão. A arte enquanto equilíbrio tenso e instável - porque movimento e porque inserido num mundo para além da arte, em constante mutação -, de conflitos e quedas e retornos e retomadas. Os cinco bailarinos o tempo todo em tensão, em contato, em improvisação, sem rumo certo, perdendo o foco - ou sendo perdido pelo foco, que algumas vezes não acompanha o trajeto dos cinco, quando não tenta se adiantar e se equivoca -, exigem do público permanente atenção. Parte desse público preferiu se sentar na plateia, evitar a fadiga de oscilar pelo palco, sob o risco de ser acertado pelos artistas suados. A música, em tensão permanente também, sem se desenvolver e sem se resolver, é o gozo da repetição do sintoma - poderia, deveria ir além, mas fica nesse ponto de tensão em que se foge de enfrentar sua resolução.
Pus a me perguntar o quanto não nos acomodamos - artistas, intelectuais, movimentos sociais, campo progressista - numa pretensa pax democrática-liberal, quase ao sabor de Fukuyama; quanto não acreditamos na perenidade desse momento quando deveríamos saber era uma situação institucional transitória, isso num Estado que nunca se mostrou confiável que não ao 1%. O quanto esquecemos, por deslumbre, comodismo, preguiça, que democracia - tal qual a arte - é uma construção permanente, um "ato infinito", de atenção, tensão e criação. O quanto não fugimos do contato desgastante com o outro, com o diferente, seguros e satisfeitos em nossas bolhas de mais do mesmo. Me chamou a atenção que os cinco bailarinos tinham tênis novos, solas intactas: soou como a coroação dessa crítica à arte que não sai de si, que não vai para as periferias, que se recusa a ouvir o que não for elogios - e digo isso assumindo que Claudia Palma é das que, ao meu ver, mais se aventuram e com maior sucesso nessa tarefa de tirar a arte desse casulo para eruditos iniciados, sem com isso se rebaixar a fórmulas simplórias e massificadas, não apenas pondo o público no palco como levando seus espetáculos para a rua, estações de trem, viadutos, praças, centro e periferias, sem qualquer solenidade, mas com impacto, como já pude conferir [bit.ly/cG141218].
A segunda apresentação da noite, Dança para Camille, da Cia Fragmento de Dança, serviu de reforço à minha leitura da metacrítica de Ato Infinito. Um espetáculo bonito, poético, onírico, um sonho de um mundo harmônico, duas pessoas com a mesma roupa, no mesmo passo (literalmente). Sem tensão e sem conflito, a abertura ao outro que não passa de um duplo, um espelho de si - um sonho pequeno burguês de solidão a dois, deixando do lado de fora tudo o que é dissonante. É a saída que considerável parte da arte buscou nestes últimos tempos, mesmo que o texto fosse crítico, não deixou de ser uma arte de fuga - fuga da busca do diálogo com quem não é habitual das artes, de atrair novos públicos para uma arte que não é a massificada, mas nem por isso precisa(ria) ficar restrita aos iniciados. E se no início deste século esse tipo de sonho de evasão soava inofensivo, hoje, dormir pode significar ser atropelado, queimado vivo - por ora, apenas metaforicamente, por ora. Pior, se se substituir a poesia pela brutalidade, o mesmo anseio de Dança para Camille embala os discursos dos fanáticos do "mito": a arte precisa estar mais vigilante do que nunca, precisa ser mais combativa que foi nos últimos tempos - e isso não significa adesão a nenhum didatismo ou realismo socialista.
Contudo, como atestam as recentes perseguições às artes pelas patrulhas moralista-fundamentalista, além da unidão (tensa) dos artistas comprometidos com a democracia, os direitos humanos e um fazer artístico que não seja publicidade da brutalidade fascista (neo ou old, tanto faz), a arte precisa ir além da crítica, precisa também propôr, convidar ao sonhar, a um outro mundo, sugerir, induzir a novos fazeres sociais, novas sociabilidades. A abertura conjunta de Ato InfinitoDança para Camille mostram essas duas pernas do fazer artístico, e convidam pensar formas que atuem sincronicamente.

18 de novembro de 2018.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Banca do Enem cava trincheiras na defesa da democracia e da educação

Os elaboradores do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) cavaram importante trincheira contra os retrocessos no país, em especial contra o Escola Sem Cérebro, conhecido popularmente como "Escola sem partido". Também é um tapa em quem acha que corrente de WhatsApp e meme no Facebook servem para se informar. Não apenas pelo conteúdo, mas pela forma, o Enem marca uma forte posição de resistência. 
Fiz o exame: foi uma prova pesada, cansativa, muito texto e grande exigência de interpretação - não se tratavam de pegadinhas, mas de pegar filigranas do texto. Não sei se em anos recentes era assim (o último Enem que fiz foi em 2011), mas cada questão se referia a um ou dois textos (no meu tempo, a ordem era inversa: duas ou três questões se referindo a um texto). Textos curtos mas densos, com questões pedindo interpretação fina do que estava exposto. Se a atual geração está acostumada a ler no tapa, passar o olho e achar que entendeu, o Enem foi um tapa na cara. Não eram questões difíceis, mas exigiam olhar atento e preparação de maratonista - ou os alunos reaprendem a ler com atenção ou falharão no Enem.
O conteúdo das questões também foi para não deixar dúvidas sobre se houve golpe ou movimento em 1964, se existe ou não gays no mundo, se feminismo é coisa de esquerdopata ou mobilização em favor de direitos sociais, que o racismo está presente na vida de milhões de pessoas e não é vitimismo (o poema "Quebranto", do poeta Cuti, foi uma porrada poética no meio da prova).
A redação me fez lembrar de Jânio de Freitas, e da Folha de São Paulo, numa época em que o jornal valia a pena, com a divulgação velada e antecipada dos vencedores dos leilões ferroviários no governo Sarney. Talvez a banca que elaborou a redação não imaginasse o vitorioso, porém já sabia dos métodos que seriam utilizados pelo candidato fascista.
Não sei como funcionam os contratos de quem faz o Enem, é certo que se a banca não puder ser substituída ou não forem usados meios pouco ortodoxos de pressão, o exame desponta como resistência ativa ao Escola sem partido, e põe as escolas que já aderem ao programa - por medo de represálias dos pais, má repercussão na mídia ou adesão ao fascismo, mesmo [https://bbc.in/2JEkQBo] -, em aporia: se aderirem ao revisionismo fascista, muitos de seus alunos fracassarão retumbantemente. O Liceu Jardim, de Santo André, por exemplo, que se orgulha de ser a 16ª escola no ranking nacional do Enem: se tivesse aderido no início do ano ao fascismo, teria despencado nesse ranking (furado, entretanto esse é outro assunto), com os pais revoltados por terem gasto dinheiro numa educação de segunda, que sequer prepara para o Enem. Para sua sorte, aderiu ao Escola sem partido e demitiu a professora de história que salvou seus alunos apenas neste fim de ano [http://bit.ly/2RCW6fL], na semana do Enem. É de se questionar como fará ano que vem, para não perder alunos nem a fama, talvez crie uma disciplina extra, "fake news para Enem", poderia ser EaD apresentada pelo próprio presidente da república bananeira.
É esse o xeque dado pelo Enem 2018: ou se modifica drasticamente o exame, e transforma numa prova de conhecimento de whatsapp e youtubers, ou as escolas (em especial as de classe média, média alta) se verão obrigadas a comprar a briga de professores e da parcela democrática da sociedade em defesa de uma educação plural e de qualidade.

05 de novembro de 2018