domingo, 25 de novembro de 2018

O devir-negro da humanidade [Diálogos com o teatro]

Três Pretos: Valor de Uso, espetáculo da Sociedade Abolicionista de Teatro, com dramaturgia e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo, e em cartaz no Sesc Pompéia até 1º de dezembro, é uma peça densa e intensa, um chacoalhar para nosso quotidiano conflagrado - explicitação do retorno de um passado mal resolvido em uma estrutura caduca e destrutiva. A guerra pelo petróleo do texto apresentado na pele negra dos negros das fazendas de café. A Guerra do Paraguai, a promessa de alforria para os que sobrevivessem à barbárie encetada pela dita civilização - a promessa reiterada e nunca cumprida. Até hoje. A guerra, a guerra contra o terror, a guerra de extermínio; a guerra, o terror e o extermínio - o devir-negro da humanidade, a condição do negro como antecipação da condição de todos.
A montagem de José Fernando segue seus últimos trabalhos: a eliminação da coxia, com as estruturas do teatro a vista e a equipe técnica em palco; três telões ampliam - amplificam - e repetem detalhes da cena: parte da linguagem cinematográfica trazida para o palco, sem com isso abandonar a linguagem teatral (diferentemente da pirotecnia kitsch de um Robert Lepage, que mimetiza o cinema no palco, perdendo as potências possíveis de ambas as linguagens); o texto é denso, mas não ocupa todo o tempo, evitando uma peça muito erudita ou pesada (a última fala é uma crua denúncia da situação atual); a encenação acrescenta camadas que palavras dariam conta com muita dificuldade - se dessem. A cena do estupro, logo no início, é particularmente violenta, não por trazer a violência bruta e embrutecedora (do público, inclusive), já marcada antes pela briga animalesca entre os três - que faz, paradoxalmente, o agradável odor de café sobre o qual lutam ocupar todo o teatro -, e sim por conseguir transmitir a agonia, o lento passar do tempo nos homens que se revezam sobre o corpo da mulher - por mais que não seja uma cena demorada ou arrastada: o corpo vulnerável, os homens que a violam quase burocraticamente, o rosto de agonia da vítima projetado no telão - a violência estampada sutilmente nos detalhes, muito mais que na efetivação do coito forçado.
A peça se passa numa fazenda de café, na Guerra do Paraguai, em algum campo de batalha genérico, em qualquer guerra pelo petróleo no Oriente Médio ou no "oriente americano" - Venezuela ou Brasil pós-pré-sal e pós-golpe. Fronteiras que se multiplicam e ensejam mais motivos para guerras sem razão alguma - que não a perpetuação de um sistema estruturado para implodir a si próprio e ao planeta e às pessoas que o habitam. Estamos todos em perigo: o estado de guerra leva à dissolução do social - e todos sabemos quem serão os primeiros abatidos nessa guerra, também sabemos que após os primeiros, serão abatidos os que se sentiam imunes (e impunes) até então. É luta de classes - porém é também guerra racista, sexista. A peça identifica os corpos vulneráveis da guerra, sem, contudo, apontar culpados: uma questão estrutural, um novo ethos do estar-no-mundo capitalista - eventual desejo de morte do patrão não é em vista de um mundo sem oprimidos, antes o desejo de assumir seu papel de opressor. Que nome dar a essa situação? O autor propõe que o termo fascismo antes nos inibe o enxergar do que uma análise mais acurada do que estamos passando - talvez outras ligações com nosso passado mal contado e mal resolvido.
A Guerra do Paraguai é uma lembrança que deveria ser dolorosa a todo continente - negros transformados em máquina de destruição arrasam um país e quase toda sua população em nome de lucros dos brancos de sempre e com a promessa de uma liberdade que não conhecem nem conhecerão. Humaitá não é um lugar, é uma passagem - se tivéssemos uma história para contar.

25 de novembro de 2018

terça-feira, 20 de novembro de 2018

20 de novembro, centro de São Paulo

Não são nem nove horas da manhã, passo pelo largo de São Bento. Um jovem está sentado em local não permitido. Aparentemente está passando mal - e não parece ter sido da noitada. Dois policiais militares se aproximam, interpelam o garoto - negro. Estou à distância, não sei o que conversam, o clima não é tenso (dentro do que estou habituado a presenciar nessas abordagens), mas a conversa é intensa, com os policiais eretos e rijos e o rapaz de cabeça baixa entre as pernas e uma garrafa de água na mão. O local é público, mas é proibido estar - certamente uma dessas regras de validade geral e aplicação específica, como presenciei várias vezes no CCSP, onde era proibido deitar nos bancos, por exemplo, mas se for branco dava para conversar. Um terceiro militar se aproxima, mais firme que os outros que já estão. Seguem a palestra, eu sigo meu trajeto. 
A praça da Sé mantém seu ethos para os dias inúteis (já que só os de comércio aberto são os úteis): deambulam por ela os renegados do baile, os humilhados do parque - pobres moradores de rua drogadictos loucos imigrantes bêbados, os improdutivos, os inúteis, os descartáveis -, observados por GCMs e seguranças do Metrô. Sequer a palavra do diabo serve para eles, como atesta a ausência dos pregadores que nos dias úteis gritam na praça sobre pecados e infernos. Em meio à escória e ao policiamento, alguns turistas com suas potentes máquinas fotográficas. Estou na fila do Caixa Cultural, para retirar ingresso para o espetáculo "Todo camburão tem um pouco de navio negreiro". Novamente, não conseguirei assistir à peça. Até saber disso, sigo na espera, intercalando a leitura de Dois Irmãos, do Milton Hatoum, com atenção ao entorno. Na minha frente um casal de jovens, vinte anos, se muito, negro, conversa - assuntos aleatórios. São ingênuos, idealistas - mas de uma ingenuidade que não invejo, e torço para que logo passe, sem cair no cinismo ou na desesperança. Depois de um policial civil (branco) passar pela fila (cheia de negros) ostentando uma metralhadora, dedo próximo do gatilho, a garota comenta que gostaria de poder voltar no tempo, voltar ao tempo da escravidão, para com um machado quebrar as correntes que prendiam seus antepassados e permitir que eles fugissem. O namorado estranha: você com um machado? Mais fácil seria roubar a chave. Nenhum dos dois parece ter tido ainda a ciência de que a escravidão não se resolveu (como ainda não se resolve) com a fuga, e sim com o enfrentamento, a luta, o embate, o combate - Palmares de Zumbi e tantos outros que o diga. A escravidão, como tantos problemas, em especial os que assolam pretos pobres periféricos, são absolutamente impossíveis de resolução dentro da moldura pequeno-burguesa (europeia-branca) de fuga isolamento e evasão, de deixar o tempo passar para resolver: somente na luta - consciente e coletiva - é possível a mudança efetiva. Quem sabe a peça do grupo Nóis de Teatro, de Fortaleza, desse um pouco de consciência a esses dois jovens negros, mas infelizmente eles tampouco conseguiram ingresso. 
Passo novamente pelo São Bento, não estão mais lá nem o jovem, nem os policiais - apenas a garrafa d'água e um outro pertence, parece uma pasta, que estava com o rapaz. Quero crer que os policiais trataram de dar socorro a ele, mas martela em minha cabeça: todo camburão tem um pouco de navio negreiro.
Hoje é vinte de novembro, dia da consciência negra. O desde sempre roto tecido social brasileiro se esgarça ainda mais, a violência antes tentada disfarçar na cordialidade brasileira hoje é bramida orgulhosa da sua ignorância bruta. O país segue como um navio negreiro em meio à tempestade - e em alto mar não há possibilidade fuga.

20 de novembro de 2018.