sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Zerovinteum vinte anos depois

A última (e primeira) vez que estive no Rio de Janeiro foi há vinte anos. Era o ponto final de uma excursão de vinte dias, que saiu de Pato Branco, parou em algumas cidades mineiras, atracou em Porto Seguro (onde ninguém fumou maconha nem perdeu a virgindade, e apenas dois exageraram na bebida, mas sem excesso - tínhamos entre 15 e 17 anos, acompanhados de três professores da escola, não muito mais maduros que os alunos, apenas maiores de idade), e na volta parou no Rio, antes de retornar para Pato Branco (eu ficaria no meio do caminho, em Ponta Grossa, para visitar meu avô, ocasião em que comprei um tênis que me acompanhou até o mestrado).
Não sei dizer onde ficamos aqui no Rio. Talvez Copacabana. Era perto da praia, creio, mas eu não fui - preferi ficar dormindo até mais tarde, estava cansado. Como também não fui ver a final do carioca (aí por besteira, mesmo), Botafogo e Vasco, no Maracanã antigo, com vitória do Botafogo (que, admito, tem um dos distintivos mais bonitos do mundo, se não O mais bonito, um Malevich suprematista com uma leve firula na borda, que não enfraquece a potência da estrela solitária). Lembro da visita ao Jardim Botânico. Sei que fomos no Cristo Redentor (mas desse passeio só lembro do taxista babando ovo pro Roberto Marinho, que tinha feito a rede de água e esgoto da comunidade acima da mansão dele - e que ele tinha um Volvo ou Jaguar de buzina poderosa, dizia o taxista). Visitamos o finado Museu Nacional, um museu triste, mal conservado, com infiltrações, inclusive na sala com as múmias (em nada parecia com as imagens que vi do museu que ardeu sob o desdém do golpe das elites). Fomos também até Petrópolis, onde dois PMs vieram tirar satisfação comigo, por eu estar com uma camiseta do Bob Marley (que por sinal ainda uso, mas mais para ficar em casa, até por conta de ser não muito discreta). Era a época em que haviam prendido Marcelo D2 e o Planet Hemp, por apologia às drogas (e eu até escutava Planet Hemp, mas gostava das músicas mais políticas, e não as apologéticas).
Isso foi há vinte anos. Hoje tenho outros olhos, outras leituras.
Antes de chegarmos à capital, trânsito pesado e congestionamento ao longo de cidades que pareciam saídas da crise de cegueira do livro do Saramago - congestionamento em ruínas habitadas de um estado pós-democrático em um pais pré-moderno, onde impera o arcaísmo tecnicamente equipado. Cenário pobre de Mad Max. Ou pior. Um carro traz um grande adesivo "Constituição NÃO. BÍBLIA SIM" (deve ser do tipo que arranca e queima algumas páginas da Bíblia, como o livro de Isaías, quando diz "serás libertado pelo direito e pela justiça"). Não é promessa de bang bang, é projeto de um Afeganistão Tropical. No caminho, vislumbro um ex-Ciep ainda bem conservado e tenho a impressão de que um Sesc é um ex-Caic (educação de qualidade sempre foi uma prioridade de nossas elites - evitar que ela chegue aos filhos dos populares). Ao chegar na Tijuca, o choque. Pouco antes, passamos pelo Maracanã - e, sim, bate alguma emoção (só não maior porque o sete a um não foi sofrido para a Argentina, na final). No bairro destino, diminui o número de transeuntes negros, calçadas com poucos carros estacionados (há pilastras de concreto que interditam o livre estacionar da vaca sagrada brasileira), ruas arborizadas, um quê de Palermo ou Recoleta (diante de alguns casarões antigos, me pergunto se algum dos romances de Machado não foi ambientado ali, eu que nunca entendi nem nunca me esforcei para entender os bairros e a espacialidade carioca). Dois mundos absurdamente diferentes e antagônicos. É como se tivéssemos passado um portal (como o que passo em São Paulo, para chegar à baixada do Glicério vindo do Paraíso). Meio portal, na verdade, porque nos morros, moradias precárias dividem espaço com a natureza deslumbrante e não é possível não enxergar. É um contraste, mas há algo que parece ordenado nisso. De qualquer modo, como canta Gilberto Gil, o Rio de Janeiro continua lindo - e vale para o Morro do Borel que vejo da minha janela, com suas luzes multicoloridas, à noite - o Rio de Janeiro continua sendo. Perto de chegarmos ao nosso destino, ouvimos um estouro. Alguém no carro pergunta se são fogos. Eu olho para o homem da lei, no outro lado da rua. Ainda o vejo atirar duas vezes em direção ao chão (as cápsulas parecem cair no asfalto lentamente após cada estrondo, algo onírico, um início de pesadelo caprichado na cenografia -  nunca havia presenciado uso de arma de fogo que não em ambiente esportivo e controlado). Desconfio que deva ter errado o alvo, pois corre na direção contrária e monta na moto (penso agora, talvez houvesse outros alvos). Só então meus colegas de viagem descobrem que foram tiros (eu ainda esclareço: não, não foi um tiroteio, apenas o PM atirou). A outra faixa tem o trânsito interditado temporariamente; na nossa, tudo normal, como nas calçadas, a vida segue como se fossem fogos de artifício, não tiros. Aqui é zerovinteum.

30 de novembro de 2018


domingo, 25 de novembro de 2018

O devir-negro da humanidade [Diálogos com o teatro]

Três Pretos: Valor de Uso, espetáculo da Sociedade Abolicionista de Teatro, com dramaturgia e direção de José Fernando Peixoto de Azevedo, e em cartaz no Sesc Pompéia até 1º de dezembro, é uma peça densa e intensa, um chacoalhar para nosso quotidiano conflagrado - explicitação do retorno de um passado mal resolvido em uma estrutura caduca e destrutiva. A guerra pelo petróleo do texto apresentado na pele negra dos negros das fazendas de café. A Guerra do Paraguai, a promessa de alforria para os que sobrevivessem à barbárie encetada pela dita civilização - a promessa reiterada e nunca cumprida. Até hoje. A guerra, a guerra contra o terror, a guerra de extermínio; a guerra, o terror e o extermínio - o devir-negro da humanidade, a condição do negro como antecipação da condição de todos.
A montagem de José Fernando segue seus últimos trabalhos: a eliminação da coxia, com as estruturas do teatro a vista e a equipe técnica em palco; três telões ampliam - amplificam - e repetem detalhes da cena: parte da linguagem cinematográfica trazida para o palco, sem com isso abandonar a linguagem teatral (diferentemente da pirotecnia kitsch de um Robert Lepage, que mimetiza o cinema no palco, perdendo as potências possíveis de ambas as linguagens); o texto é denso, mas não ocupa todo o tempo, evitando uma peça muito erudita ou pesada (a última fala é uma crua denúncia da situação atual); a encenação acrescenta camadas que palavras dariam conta com muita dificuldade - se dessem. A cena do estupro, logo no início, é particularmente violenta, não por trazer a violência bruta e embrutecedora (do público, inclusive), já marcada antes pela briga animalesca entre os três - que faz, paradoxalmente, o agradável odor de café sobre o qual lutam ocupar todo o teatro -, e sim por conseguir transmitir a agonia, o lento passar do tempo nos homens que se revezam sobre o corpo da mulher - por mais que não seja uma cena demorada ou arrastada: o corpo vulnerável, os homens que a violam quase burocraticamente, o rosto de agonia da vítima projetado no telão - a violência estampada sutilmente nos detalhes, muito mais que na efetivação do coito forçado.
A peça se passa numa fazenda de café, na Guerra do Paraguai, em algum campo de batalha genérico, em qualquer guerra pelo petróleo no Oriente Médio ou no "oriente americano" - Venezuela ou Brasil pós-pré-sal e pós-golpe. Fronteiras que se multiplicam e ensejam mais motivos para guerras sem razão alguma - que não a perpetuação de um sistema estruturado para implodir a si próprio e ao planeta e às pessoas que o habitam. Estamos todos em perigo: o estado de guerra leva à dissolução do social - e todos sabemos quem serão os primeiros abatidos nessa guerra, também sabemos que após os primeiros, serão abatidos os que se sentiam imunes (e impunes) até então. É luta de classes - porém é também guerra racista, sexista. A peça identifica os corpos vulneráveis da guerra, sem, contudo, apontar culpados: uma questão estrutural, um novo ethos do estar-no-mundo capitalista - eventual desejo de morte do patrão não é em vista de um mundo sem oprimidos, antes o desejo de assumir seu papel de opressor. Que nome dar a essa situação? O autor propõe que o termo fascismo antes nos inibe o enxergar do que uma análise mais acurada do que estamos passando - talvez outras ligações com nosso passado mal contado e mal resolvido.
A Guerra do Paraguai é uma lembrança que deveria ser dolorosa a todo continente - negros transformados em máquina de destruição arrasam um país e quase toda sua população em nome de lucros dos brancos de sempre e com a promessa de uma liberdade que não conhecem nem conhecerão. Humaitá não é um lugar, é uma passagem - se tivéssemos uma história para contar.

25 de novembro de 2018