segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Pequenas lembranças em uma tarde quente

Acompanho Luis até a rodoviária da Barra Funda. Comento com ele que o calor de São Paulo destes dias me faz lembrar do título de um filme que vi quando fazia curso de espanhol, em 1995, 1996, por aí: "El aliento del Diablo". Não lembro de absolutamente nada do filme - salvo o título -, mas esse bafo seco que sopra em SP me parece digno de relatos bíblicos infernais ou dos meus piores dias em Campinas ou Ribeirão Preto. Estou vestido todo esporte, mas a roupa não é fresca para os mais de 30°C. A camisa de futebol não é dry fit ou qualquer tecido especial, é do Putaquepariuprafora!, time da faculdade, do campeonato de 2004. A calça é um pouco mais nova, dois ou três anos, do tai chi, tactel, boa para dias de chuva, pois seca rápido - quando saí de casa ameaçava chover -, para agora, me gruda nas pernas suadas. O óculos que uso não é esporte e também já tem uns anos de uso - oito, para ser mais preciso -, e grau que não me cabe mais, descobri semana passada (minha miopia regrediu 0,75 em cada olho); está todo troncho porque Libertad, minha gata, o derrubou e vários livros em cima e ela em cima de tudo. O tênis, esse sim, é novo! Tem uma semana, é mais bonito, mais confortável e - alegria do mão de vaca aqui - vinte reais mais barato que meu anterior, comprado dois anos antes (isso dá 17% de economia, não é pouca coisa!). Luis toma seu ônibus e eu vou pegar o metrô. Estou na escada rolante quando o trem chega e resolvo apressar o passo - desejo de entrar logo em um ambiente com ar condicionado e de chegar logo em casa. Ao sair da escada rolante me vem uma lembrança anterior ao meu óculos com grau a mais, à minha calça grudada na pele, à minha camisa do Puta, ao filme da aula de espanhol do professor Erivelton. Lembrança de quando estudava no Colégio das Irmãs (não era o nome oficial, mas cidade pequena autoriza essas simplificações), meus doze, treze anos, o corpo começando a crescer mais rápido do que a cabeça era capaz de atualizar a auto-percepção, e o chão visto de perto reiteradamente, o que me fazia morrer de vergonha. Pois saí da escada rolante e corri para pegar o trem. Meu tênis novo enroscou na minha calça e enquanto meu óculos e meu celular (celular flip, com vibracall, me sinto um up-to-date de 1999) deslizam pelo piso ouço "uuuufffffs" e "aaiiiis" de pessoas empáticas às dores do outro que se estatela no chão - o piso do metrô é gelado, como era o do Colégio das Irmãs. Recolho meu óculos, meu celular, confiro que minha carteira segue no bolso e retomo o trote para o trem, como se não tivesse acontecido nada, apesar das dores dizerem o contrário. Foi só quando ele fechou as portas que me lembrei de ver se minha chave de casa também estava no bolso - estava. Já no aconchego do meu lar - onde faz falta um ventilador - me certifico que um quarto de século se passou, e se o joelho direito ralado não se fez acompanhar de vergonha pela queda em público, tampouco veio sozinho: uma leve dor no ombro direito e uma baita dor nas costas ajudam a recordar minha pequena desventura nesta segunda feira de bafo infernal.

17 de dezembro de 2018

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Como perder a chance de debater - um exemplo

Acompanhei com alguma atenção as reações meméticas (a pobreza argumentativa com efeitos performativos na formação de opinião e visão de mundo) na minha bolha virtual ao assassinato do cachorro por segurança do Carrefour de Osasco. A depender dos memes que amigos veganos ou simpatizantes compartilhavam sobre o episódio e seus desdobramentos, não é difícil entender porque Bolsonaro e uma série de políticos de extrema-direita venceram os pleitos em 2018 - para além, claro, das manipulações via internet.
De um lado, pessoas comovidas com a violência do segurança contra o cachorro (que, sinceramente, me pareceu mobilizar mais do que quando seguranças do Habib's assassinaram um garoto em São Paulo). Do outro, veganos atacando essas pessoas, taxando de hipócritas, por ficarem condoídas enquanto comem animais mortos. Ao invés de acolher, repelir. Este tipo de reação não é privilégio de veganos, pelo contrário, me parece a tônica da esquerda e do campo progressista nos tempos atuais.
Ao reagir atacando quem mostrou abertura à questão do sofrimento animal, longe de atrair pessoas alheias ao debate sobre o direito dos animais, as afugenta ainda mais. Porém, perdida não foi só a oportunidade de atrair algumas pessoas para a discussão, mas de impor um debate mais amplo à sociedade sobre tratamento aos animais - de rua, domésticos, de laboratório, de abate. O problema de ampliar o debate é ter que responder a questões que aparentemente foram superadas, é ver levantado novamente imbróglios incômodos que haviam sido escamoteados, é ter que escutar o outro, o diferente, é ter uma postura democrática e de aceitação - dentro de certos limites - de posições antagônicas. Quantos de nós já não achou mais fácil negar a conversa apenas por ter ouvido do interlocutor alguma barbaridade, sem prestar atenção que ele apenas repetia um jargão que fazia mais sentido diante de toda a realidade paralela criada pelos meios de comunicação e seu círculo social? Ainda hoje, vejo analistas políticos atacando os 58 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro, sem serem capazes de perceber que a maioria desses votos foram dados de acordo com o artigo 171 e não com as propostas do então candidato talkey.
Para além de capacidade de ouvir o outro, falta também a boa parte das forças de esquerda e progressistas - aqui individualizadas nos veganos, mas longe destes serem únicos ou privilegiados, reitero - aceitar que política não possui uma verdade - ao menos não uma verdade positiva -, e, consequentemente, aceitar que talvez seja preferível posições mais gradativas do que insistir no tudo ou nada.
A direita já notou que não se pede adesão irrestrita e incondicional de início - manipula para ganhá-la com o tempo, na base do engodo. Começa aceitando a palavra de ordem inicial e depois, aos poucos, vai mudando até chegar, se preciso, no extremo oposto. O "contra o aumento das tarifas" vira "não é só por 20 centavos", que vira "contra a corrupção", que vira "contra os impostos", que vira "fora PT". A tentativa de captura da pauta negra vai na mesma linha, de início, reivindicam que negros e brancos precisam ser iguais para o logo adulterarem a luta por igualdade como realidade dada e defesa do "dia da consciência humana". Sim, é uma estratégia fadada ao fracasso no médio prazo, quando o sectarismo vai passar a excluir quem não aderir integralmente às novas palavras de ordem (de ódio) - mas até lá o estrago já foi feito, a presidenta derrubada, um fascista eleito, direitos e constituição trucidados.
Já que comecei falando de veganos para tratar de algo geral às esquerdas, encerro com uma breve crítica à corrente vegana que predomina em meu círculo social (sei que há várias porque já fui rechaçado do debate na Unicamp quando tentei usar Peter Singer). Não sou vegano, acho uma postura válida e admirável de inserção aberta do sujeito e seu entorno no campo ético-político (por isso incomoda tanto alguém não comer carne, é jogar na cara que todas as ações do sujeito são ações éticas, de responsabilidade), quase uma forma parrhesista de existir. Contudo, é uma postura, um movimento, cheio de contradições e limites de crítica - condição de todo movimento político humano (talvez os dos deuses ou santos não sejam). A principal delas, a meu ver, o desenraizamento da discussão sobre condições sociais dos humanos, antes de tudo - dos direitos humanos para as pessoas. Daí o veganismo, para além de uma postura ética, muitas vezes me parecer como uma postura de distinção social - uma amiga que aderiu não faz muito ao veganismo, sem perceber, certa feita tropeçou no seu argumento: "o direito dos animais vai ser a nova luta de classes", disse. Eu não quis polemizar, mas entendi do meu modo: nova luta de classes não que os animais substituirão os humanos na luta de classes, mas porque serão usados para escamotear a real luta de classes, a exploração do homem pelo homem, a luta entre os humanos de plenos direitos e o exército de reserva. Muitos ex-pobres só muito recentemente passaram a comer carne bovina, coisa que antes era quase exclusivo dos patrões - e agora que sentem terem adentrado o paraíso que viam de longe, são abominados como bárbaros, antiéticos. Em abatedouros, pessoas matam milhares de animais todos os dias não por sadismo, mas porque é uma questão de matar ou morrer - literalmente, pois trabalham para fugir da fome. Ao mesmo tempo, cachorros são mortos todos os dias para virar comida - e não é por hábito cultural, é por fome, mesmo.
Se a esquerda não for capaz de escutar o outro, de acolher o diferente, de compreender o mundo em gradações e diversas cores, certamente vamos perder a batalha para o fascismo.

13 de dezembro de 2018