quarta-feira, 17 de abril de 2019

Joaquim L. [retratos feitos de memórias]

Enredado na teia da rotina, mais por comodismo (ainda que incômodo) que por falta de tempo, vou adiando o café, a cerveja, o encontro com algum amigo ou amiga para depois de amanhã, para semana que vem, mês que vem, para sabe-se lá quando (mas será!), até que uma notícia vem me lembrar que o fio que nos liga à vida é tão frágil quanto o fio com o qual tecemos nossas relações.
Conheci Joaquim antes de ele me conhecer - e a recíproca é verdadeira. O fio que nos unia era a Misson - que dizia que  casaria com Joaquim, se ele já não fosse casado (e fosse um pouco mais jovem). Foi no velório da Misson que o conheci pessoalmente, em meio a lágrimas e numa confusão de nomes que eu ouvia falar com rostos que eu havia visto pelo Facebook, sem que eu conseguisse ligar exatamente quem era quem. Pouco depois, por conta de meus textos, passamos a ter contato, por internet seguidamente, pessoalmente esporadicamente a partir de março de 2016, quando ele foi ao lançamento do meu livro sobre nossa amiga. Deram certo os cafés marcados por ele: mais experiente, talvez soubesse que a vida vive sob o espectro da morte e não tem porque ficar adiando os pequenos prazeres da existência, como uma boa conversa - e Joaquim era bom de conversa e ainda tinha o artifício de sair antes do papo esfriar, deixando aquela vontade de encontrá-lo novamente. A última vez que conversamos sobre marcar um encontro, fui eu a sugerir: falou que pretendia comprar meu segundo livro em janeiro, quando liberaria o orçamento, propus entregá-lo em mãos, em Peruíbe, para onde tinha se mudado havia pouco. Janeiro passou, fevereiro também. Pensei que poderia ir logo depois do carnaval, assim que eu recebesse as cópias do terceiro livro; recebi, ficou para outra hora, quem sabe semana que vem. Ou na outra. Ou nunca mais.
Joaquim era um cara engraçado, com muitos causos - Misson me contava vários deles. Era também alguém com uma boa cultura geral, aliada à visão crítica do mundo; tinha lado, consciência de classe e senso de até onde valia a pena se estressar por algo. Era calmo, e conseguia um impressionante equilíbrio entre não comprar briga e não ficar quieto. Da última vez que nos encontramos, ainda antes da eleição, andava amargurado com os rumos tomados pelo país, pelo Metrô - tanto que tratou de sair quando pode -, sem que se tornasse amargo por isso. Se aposentou, porém não parou nem achou que o futuro estava acabado, era só esperar a morte: foi morar na praia, e enquanto se ocupava dos pequenos afazeres do dia a dia, como pequenos consertos, mantinha o sonho de morar no interior - Cunha era uma cidade que gostava muito. Quando soube do seu acidente - caiu quando consertava o telhado de sua casa - não quis acreditar; quando vi que era verdade, quis crer na sua recuperação - lembrei que ainda quero lançar o livro com textos da Misson, achei que era hora de me agilizar, pensei que poderia conversar com ele sobre, para me ajudar, ainda que dissesse que não era bom em pôr as coisas no papel -; quando soube do seu falecimento percebi que ainda que não fosse um amigo próximo, era um amigo muito querido. 
Quando Misson faleceu, passei dois anos tentando acreditar que após a morte deveria haver algo - buscando sinais dela, vindos de não sei onde. Certa feita sonhei com a despedida de Joaquim (que era Lagares, Ian e Misson ao mesmo tempo), subindo uma escada e se perdendo no pôr-do-sol. Quando meu pai faleceu, desacreditei de tudo. Mas... se eu estiver errado, certamente Joaquim está agora em boa companhia, contando seus causos para a Misson, os dois se divertindo, como na época do Metrô.


17 de abril de 2019.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Uma discussão banal

Esperando a importante discussão se a
bola é redonda ou triangular começar
Caminho apressado - estou atrasado para minha aula -, passo por dois ambulantes que discutem. A mulher que vende não sei que tipo de comida nega energicamente a fala do ambulante do milho verde: "não é de esquerda!". "É claro que é", responde o homem com a calma dos que não apenas acreditam na verdade como creem serem possuidores dela, "eles são do mal, os nazistas. Eles mataram seis milhões de gentes. Isso é coisa de esquerdistas". Eu sigo meu trajeto, a conversa segue às minhas costas, as palavras chegando embaralhadas em meus ouvidos tanto quanto as ideias expostas. Sei que é uma conversa banal para estes tempos surreais de diluição da verdade e da própria realidade, porém ganha uma simbologia extra pelo local onde ocorre: rua Itapeva, no portão da Fundação Getúlio Vargas - provavelmente são seus alunos, talvez alguns funcionários, que compram o que aquelas duas pessoas vendem.
É sintomático esse tipo de conversa acontecer na porta de uma universidade de elite - e elite não apenas porque nela estudam os filhos dos endinheirados, mas por ser uma instituição universitária de excelência, produtora de conhecimento, e conhecimento não na engenharia de materiais ou de microbiologia, mas de ciências sociais aplicadas: economia, administração, direito. É na porta dessa instituição onde ouço um homem afirmar o disparate do nazismo de esquerda: três passos fora de onde se produz pesquisas de excelência, a excrescência das ideias floresce feito mato, feito as saúvas nas terras de Policarpo Quaresma.
Há uma dose muito grande de responsabilidade por parte da academia para esse antagonismo: não aceita dialogar de igual com conhecimentos produzidos fora de seus limites, ao mesmo tempo que restringe quem serão os eleitos a adentrarem seus muros. Na base de todo este absurdo, a existência dos muros. Do que se defendem as universidades para precisar de guaritas nestes Tristes Trópicos? Vale ressaltar que se hoje os muros são palpáveis, feitos de concreto e vidro, é porque cercas mais sutis - como a distância de onde residem as pessoas "normais" - perderam eficácia. Que privilégios teme perder nossa elite intelectual para precisar afugentar dessa forma o povo? Medo de descobrir que o povo (preto pobre periférico, losers da meritocracia) que ela crê limitada é tão ou mais capaz que ela - como provaram as quotas nas universidades públicas, ou como atesta uma fala do Mano Brown frente 90% dos sociólogos tupiniquins?
Comentário de dia desses do historiador Fernando Horta sobre Olavo de Carvalho, astrólogo autoproclamado filósofo, é tão sintomático quanto à discussão que presenciei. Diz ele:
"Querem saber o motivo de todas as defesas de mestrado e doutorado serem públicas? De todos os artigos serem analisados 'pelos pares' e de toda a produção acadêmica ser livre, pública e necessariamente se submeter às críticas ao contraditório?
Para evitar que um idiota passe 30 anos dialogando consigo mesmo, sem nenhuma capacidade de crítica, se achando tremendamente inteligente e depois venha a se chamar de 'filósofo' e encontre um presidente que nunca leu um livro na vida que o chame de 'guru'."
Horta não está errado, de modo algum! Ocorre, porém, que esbarra no limite de crítica que a academia se põe: enquanto produz ciência excelsa é incapaz de dialogar com quem não cumpra seus requisitos, não é parte dos seus "pares" - uma espécie de religião laica (meio laica, vá lá) incapaz de se assumir como tal. Nisso, "um idiota sem nenhuma capacidade de crítica" é louvado pelo presidente da república, impõe um debate surreal à nação, e a academia trata de reagir se autoelogiando, reafirmando que dentro de seus muros tudo é melhor - e a culpa, fica subentendido, é do povo, dos ignorantes, boa parte deles que não puderam entrar e não entendem o que nunca tiveram a chance de aprender, e agora seguem o primeiro picareta capaz de ouvir suas queixas e dar respostas que as satisfizessem (é Olavo, mas poderia ser Silas ou Edir). E o pior: a academia não é capaz de perceber que os apoiadores de primeira hora, assim como os que até agora permanecem com o capitão são os egressos de suas salas de aula!
Se o pensamento racional é capaz de fazer avançar as ciências e as tecnologias a passos céleres, a política é capaz de fazer todo essa avanço retroceder ainda mais rápido - daí a necessidade de usar e valorizar todo o potencial humano e não apenas o racional-utilitário. Se a academia seguir insistindo apenas no discurso racional duro, pretensamente desapaixonado (a ilusão dos intelectuais frígidos), a extrema-direita seguirá ganhando corações e mentes - e eleições! -, insistindo nesse caminho do sucesso, bem resumido pelo atual ministro da educação: "quando você for dialogar, não pode ter premissas racionais". E a história nos mostra: a negação da razão não é a recusa de seus frutos tecnológicos, é apenas sua instrumentalização para a barbárie.

11 de abril de 2019