sábado, 6 de julho de 2019

João deixa a porta aberta

Sobre a partida de João Gilberto, dois comentários me chamaram a atenção, não exatamente sobre o mestre da bossa nova, mas sobre o que são estes tempos - e quem somos nós. 
Bob Fernandes comenta que sua partida neste 2019 inglório é um epitáfio para nosso país, nestes tempos em que vaia de bêbado - rico - vale; vaia transformada em panelas, patos, camisas da seleção brasileira, rezas de pastores endinheirados e editoriais sisudos de William Bonner ou entrevistas descontraídas com o Ratinho. A vaia que cala a arte, a política, o amor, o futuro.
Um dos meus bons amigo de São Paulo, restaurador de móveis, conta no seu Instagram [https://www.instagram.com/luizhansted/] quando, no início dos anos 1980, com seus seis, sete anos, ouviu pela primeira vez João Gilberto, e se encantou com "Falsa Baiana". Estava na casa da tia, que saíra para comprar cigarros e deixara o disco tocando: “Eu não mexia na vitrola de casa, imagine na da casa dos outros. Mas fui até ela e, com muito cuidado e medo de riscar o disco, voltei o braço para o início da faixa. Ouvi muitas vezes até minha tia voltar. É curioso e belo como as artes agem na nossa vida”. Eu vou além: é revelador como a arte é algo que exige e insufla coragem. 
Fazer, contemplar, desfrutar a arte é algo impossível de ser feito sem sair do lugar. Toda arte digna de ser chamada assim tem algo que incomoda, que perturba, que desloca - uma obra que deixa tudo como está é publicidade, usa elementos artísticos, não é arte. E o fascista, o reacionário, é um medroso, um pusilânime, alguém em pânico que se recusa a sair do lugar, a rever quaisquer das suas posições e atitudes. Para esconder essa covardia toda é que grita, se junta em grupos e milícias, ameaça, é por isso que é tão visceralmente contra a arte: porque a arte é para os corajosos. 
O artista, diante da grosseria, da barbárie, não se intimida, não pede desculpas, ele afronta, ele retruca: “vaia de bêbado não vale” - seco e direto, sem poesia, se o momento exige. A partida de João Gilberto talvez não seja um epitáfio, seja um aviso: não esperemos salvadores, sejamos artistas!

06 de julho de 2019

terça-feira, 2 de julho de 2019

A morte, que nos joga o presente na cara.

“Viver é ir morrendo aos poucos”, me ensinou uma vez minha mãe, enquanto dividíamos uma dor. Quando for a nossa morte, a morte definitiva, biológica, essa, arrisco, nos será indiferente: não estaremos mais aqui – nem em lugar nenhum – quando ela nos encontrar. É no trajeto até esse  nosso encontro que a morte – seja a real, seja a simbólica – dói: parte da vida. 
O mundo atual tem dificuldade em lidar com a morte: criamos, inclusive, éticas super racionais que tentam negar a morte como parte da vida – e, admito, estou inserido nesse espírito do tempo, ainda que tente ir contra. Porém, a vida só subsiste com a morte: para as vidas que surgem é preciso que outras partam, até para a Terra sustentar todo mundo. Ouso ainda: a vida só faz sentido com a morte: a perspectiva de nosso fim é que dá sentido à nossa existência no mundo. E a morte nada tem de racional: ela chega quando chega, o fim é o fim quando acontece, e não porque se cumpriu um ciclo, se esgotou o que havia para ser. Em geral o fim chega no meio, interrompendo de chofre algo que prometia se alongar ainda muito tempo – não só prometia, desejávamos. E vai sobrar para quem fica a batata de lidar com isso, com a dor da perda, com o luto, com a existência rasgada em algo que era então praticamente essencial.
Talvez uma das coisas mais devastadoras de um fim seja nos jogar no rosto o presente, esse instante fugidio que parece sequer existir, e com o qual preenchemos de futuros, tentando nos antecipar aos instantes fugidios que virão a seguir – ou ao menos acreditamos que virão. E quando chega o fim – a morte –, nossa fantasia de que o futuro de fato existe é interditada. Vem a sensação de vazio, de solto no espaço. Todos nossos projetos, nossos planos, nossos sonhos, nossos desejos para aquela pessoa, aquela situação, de repente passam a ser mera ilusão – e eram tão reais até um segundo atrás: estavam ali, ao nosso alcance, bastava o calendário chegar, o relógio marcar mais meia hora!
Lidar com os cacos – de futuro, de presente, de si próprio, porque parte nossa estava em grande medida ancorada nessa quimera. Puxar o passado com a esperança de que isso aplaque nossa angústia, nosso vazio, que explique que tinha que morrer ali, que justifique aquela dor. Em vão: a dor está presente e de nada adianta a razão negá-la. É difícil estar sozinho essas horas – por mais que seja necessário: a solidão assola, amedronta, e se mostra em sua crueza.
Mas haverá uma hora que a vida se impõe, e recomeçaremos a preencher nosso presente de futuros e projetos, com base em novas fantasias – ou se apoiando mais firmemente em velhas -, desejando que dessa vez o fim não venha, tentando abafar a angústia de saber que a morte é nossa única certeza – sorrateira e iminente –, fingindo ignorar solenemente que, a não ser que nossa morte venha antes, essa dor voltará – porque viver é ir morrendo aos poucos.

02 de julho de 2019

PS: por coincidência, o professor Roberto Romano faz uma postagem hoje em seu facebook intitulada “Sobre a dor na separação”. Indica o livro A separação dos amantes, do Igor Caruso. A ver se não revejo minha posição...