sexta-feira, 13 de março de 2020

Filhos: marcadores da passagem do tempo

Por muito tempo achei que a principal "função" dos filhos na vida dos pais fosse dar uma sensação de continuidade: alguém que de alguma forma seguirá algo daqueles que o criaram. A estes, a convicção de que depois de mortos, algo deles continuará - não é a vida eterna, mas é o que mais próximo poderíamos conseguir, sendo humanos (em tempo: tenho pensado como a geração formada no individualismo e adepta do "child free" não acaba por afetar a solidariedade de toda a sociedade, uma vez que a preocupação intergeracional se torna fruto de ato estritamente racional, sem lastro emocional).
Ainda que sem ser pai, a convivência praticamente diária, por mais de três anos, com uma criança - dos seus seis aos seus nove -, me fez notar que a principal função de um filho é lembrar a nós, adultos, da passagem rápida do tempo - ainda mais a alguém, como eu, com muita memória e temporalidade retardada.
Antes de conhecer o Vini, havia algo na minha percepção da passagem do tempo que não se fixava. Afora os cabelos ficarem raros, a impressão que eu tinha é que o tempo passava rápido e devagar ao mesmo tempo. Quase quarenta mas me via como tendo vinte. Uma vez comentei com um iluminador (já passado dos sessenta) que havia visto um espetáculo dele "não fazia muito", ao que ele me respondeu: "isso faz cinco anos!". Era isso: cinco anos e parecia esses dias. Meus amigos que moram longe, com quem me comunico por e-mail, são três, quatro meses para responder, e parece que foram quinze dias. Os vinte anos que moro fora da casa dos meus pais parecem, com boa vontade, seis. Ao reparar no Vini é que noto o quanto de tempo passou: seus três anos parecem nove (e olha que também eu tive uma vida agitada nesses ínterim, cursos de marcenaria, tapeçaria, xilogravura, dança, dramaturgia, etc).
Esta semana marquei de encontrar uma amiga de Recife, que estava em São Paulo por conta da sua apresentação no MITSP, e que conheci na residência em dança do Eduardo Fukushima, há três anos e meio, 2016. Eu ainda lembro de uma crônica sobre essa residência que enrolei e não escrevi, recordo de boa parte dos colegas e de várias conversas que tive - como se fosse ontem. De repente noto: foi quando conheci o Vini. Ele então não sabia ler e escrever, se atrapalhava com os números (hoje faço o "pense rápido" pra ele e jogo uma conta e ele responde, entre o fastio e o desafio), tinha alguma dificuldade na dicção, precisava da luz acesa para dormir, chorava desesperado para tirar um dente mole dependurado. Eu mesmo tinha dificuldade em estabelecer maiores relações com ele, visto que sou muito mais da fala que do brincadeira.
Foi com o tempo, com seu crescimento mais do que com minha maleabilidade (ainda que eu tenha me esforçado, pedi bastante para que me ensinasse a andar de skate, ele que foi recalcitrante), que fomos conseguimos conversar mais e assim aprofundar a relação. Ensinei ele a jogar dominó e bingo, não faz muito quis começar a tomar chimarrão - meu velho e forte hábito -, e presenteei-o com uma cuia e erva argentina. Hoje segura o choro - não sei se porque aprendeu na escola (ou com pai) que homem não chora, ou porque não se sente confortável em expressar sentimentos -, já tem suas responsabilidades e ainda cobra a própria mãe se não cumpre as dela (correndo o risco de tomar bronca por isso, que às vezes ela se vê sem ação diante do filho que não é mais bebê), e começa a cobrar maior independência - ainda que não faça muito que perdeu o medo de tomar banho sozinho.
Todas essas mudanças não acontecem em seis meses e são muito significativas. Não dá para achar que foi ontem que estávamos no Parque das Aves e ele chorando porque insistíamos que lesse o nome do pássaro. E a cada mês é perceptível que aumenta de tamanho, cada seis meses precisa de calçado novo porque o antigo (não tão antigo) não cabe mais: se ele cresce nessa velocidade, é sinal que o tempo passa na mesma toada - eu que antes não percebia. Não por acaso, minha careca parou de incomodar o tanto que antes incomodava: Vini me fez assumir que outra geração está no mundo, e eu não só perco no video game como já preciso de ajuda com os eletrônicos.


13 de março de 2020

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Cid Gomes e a coragem de enfrentamento

As instituições estão funcionando normalmente. Ninguém na minha bolha fala um disparate desses. Já sobre a atitude do senador Cid Gomes, de enfrentar militares encapuzados fazendo motim, minha bolha, via de regra, tratou de insanidade - os mesmos que anteontem reclamavam da “passividade bovina do brasileiro”. Esse pessoal precisa decidir: ou reclamamos que brasileiro não reage (o que é uma mentira, melhor seria dizer: não reage do jeito que queriam que reagisse) ou é maluco de reagir; ou estamos num período onde as instituições funcionam normalmente e não cabe medidas extremas, ou estamos num período extremo, no qual é preciso reações à altura.
Não sei se precisaria dizer minha posição: vivemos tempos temerosos, em que caminhamos para um nazi-fascismo revisitado com tecnologias ainda mais potentes que as do movimento original, e, logo, tempos extremos exigem medidas extremas, “amalucadas”; o que não pode é seguirmos agindo normalmente, em brigas de egos na esquerda e discutindo alianças eleitorais, como se os únicos fascistas do Brasil fossem os Bolsonaros e seu entorno - e ignorando que nesse entorno há militares de alta patente com uma série de subordinados.
Convém ressaltar o contexto mais específico na qual se insere a atitude de Cid Gomes: uma greve dos policiais militares, ilegal por serem militares - até aí, a greve dos petroleiros, ainda que seja um direito constitucional, foi tida por ilegal pela nossa justiça (sic). A questão não deveria ser essa (conforme parte da esquerda tem posto), antes que não se trata apenas de uma greve, mas algo entre motim e a milícia, com militares que não mantém um mínimo do efetivo, e se apresentam à sociedade encapuzados, armados e fazendo ameaças, inclusive a colegas que pretendiam trabalhar, ordenando comerciantes a fechar as portas - ou, em termos populares, impondo toque de recolher.
O ato de Cid Gomes foi extremo, e por seu desenrolar pode ser um divisor de águas no Brasil, antes que o fascismo se instale de vez e nos leve nos seus braços para a autodestruição que essa ideologia acaba por levar, pela sua própria dinâmica de necessidade de inimigos a combater e eliminar (petistas, comunistas, feministas, gays, mulheres, professores, políticos, militares que não coadunam com o que o mito diz, assim que forem eliminados será preciso criar novos inimigos). Claro, esse movimento foge da alçada do senador. Vai depender do governador do Estado, de outras lideranças políticas e sociais, da mídia, da mobilização popular. Vai depender de não aceitar a escolha de dois ou três bodes expiatórios entre os amotinados, nem com o simples afastamento do presidente, e atacar o fascismo onde ele aparece - no judiciário, no ministério público, na corporação militar, por exemplo, mas também em governadores que falam em mirar na cabecinha, que dizem que quem o policial não gostar e tachar de bandido vai direto pro cemitério.
É também um tapa na cara dessa esquerda que nos seus escritórios com ar condicionado (não raro em universidades) reclama da passividade do povo: primeiro porque nunca saem para a luta aberta, como fez Cid; segundo, porque se um senador da república, em um ato público, é alvejado dessa forma por policiais militares - um tiro de arma letal no lado esquerdo do peito -, imagina o que essa PM não faz com pretos periféricos? É fácil de certa esquerda cobrar ativismo dessa população sempre sob a mira do fuzil, como se pessoas pretas devessem morrer em nome de um futuro melhor (o ressentido Mino Carta, a despeito de seus méritos jornalísticos, é, para mim, o melhor exemplo dessa esquerda esnobe, prepotente e descolada das pessoas mais sofridas).
Por fim, o ato de Cid reabilita os Gomes, e pode projetá-lo, junto com seu irmão, no cenário nacional (nisso eu me contradigo, fazendo uma análise política-eleitoral, como se vivêssemos tempos normais). Cid pode ser alçado a grande nome da luta antifascista no Brasil, alguém que “não foge à luta” (e essa hora me lembro de quando ele perdeu o cargo de ministro da educação, no governo Dilma, seu discurso no Congresso, onde ao invés de se baixar a cabeça, reafirmou o que havia dito antes), e vai além de conversas de bastidores - como o PT tem feito atualmente, mesmo com Lula solto e Haddad desimpedido desde sempre. O gesto o apresenta com a firmeza que certa porção da população (e do eleitorado) tem se mostrado carente, que Bolsonaro soube explorar tão bem - e os mauricinhos leite com pera Doria Jr e Amôedo tentam imitar -, sem descambar para desrespeito aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, Ciro pode ganhar um álibi para seu retiro parisiense no segundo turno de 2018: com o fascismo instalado nas instituições, e a tibieza do PT num enfrentamento mais vigoroso, a derrota de Bolsonaro serviria apenas para enraizar o fascismo no país (para mim, a ficha caiu no “dia do fogo”, ano passado, de que Haddad, se ganhasse, seria um presidente fraco e a todo momento testado e a qualquer reação atacado de antidemocrático).
Num momento em que parte da elite se mostra desgostosa com o fascismo bolsonarista, a coragem de Cid Gomes e o atentado por parte da PM (que não pode ser comparado à muy suspeita facada em Bolsonaro-necessitado-de-quimioterapia, durante as eleições), podem ser um ponto crítico na vida nacional. Que consigamos nos organizar para reverter o quadro atual!

19 de fevereiro de 2020

PS: Quinta pela manhã noto que o bolsonarismo sentiu o golpe, ao direcionar seus robôs da internet para o #CidGomesPreso