sábado, 25 de abril de 2020

Moro foge antes de começar a chacina provocada por Bolsonaro

Moro sempre foi candidato – a questão sempre foi quando e não se. Um projeto pessoal, porém também mais amplo: é o candidato da Rede Globo, como se viu no Jornal Nacional do dia 24, e, segundo Boaventura de Sousa Santos, o candidato dos EUA – desde seus tempos de juiz maroto mostrou completo servilismo ao DoJ. Mesmo que ganhasse a cadeira no STF, é difícil crer que aceitaria em ser mais um, ao invés de ser o Um: provavelmente esperaria o momento oportuno e daria o bote, com boa parte do aparato midiático e institucional dando suporte.
Apesar da confissão da prevaricação do justiceiro para trocar a toga pelo terno (e camisas de futebol e desfiles em tanques), as vantagens mútuas nesse acordo sempre foram óbvias: ele emprestara sua reputação a um presidente fraco, sem base e querendo atuar na base do triunfo da vontade e da truculência, enquanto organizava mais amplamente as estruturas de vigilância e repressão do estado para estarem afinadas ao seu projeto. Duas eventualidades atrapalharam seus planos: não imaginava que política fosse tão difícil e não permitisse agir livremente, como um déspota, não conseguindo acumular o poder que desejava; e a #VazaJato, que o enfraqueceu sobremaneira, de modo que deixou de ser avalista de Bolsonaro para necessitar ser avalizado por ele.
A crise do coronavírus e a resposta precária de Bolsonaro permitiram um equilíbrio maior de força, e nesse momento o marreco de Maringá (ou seria o rato de Curitiba?) encontrou seu melhor momento para pular fora do barco. Provavelmente não tomou essa escolha sozinho, deve ter sido aconselhado e preparado pela sua grande parceira, a Rede Globo.
Ao que tudo indica, o motivo para sua demissão não foi a troca no comando da PF ou qualquer coisa do tipo: sua capacidade de ser servil e engolir humilhações tendo em vista seus interesses não o fariam arriscar uma vaga no STF – ou mesmo a exposição que tem como ministro da justiça (sic) – por tão pouco. Provavelmente ele tensionou um cerco da PF à “familícia” para forçar sua demissão, num momento em que Bolsonaro acenava com o centrão para tentar alguma força, diante do seu poder que se esvai por conta do vírus – assim, Bolsonaro fica com a pecha de velha política corrupta.
Está no seu twitter, na frase que pôs após sair do governo, o provável motivo de sua saída precoce: “sallus (sic) populi suprema lex esto” (para quem não sabe sequer o português da norma culta (e não me refiro à conja), sua citação em latim mostrou que nem recortar e colar ele sabe). “Seja a salvação do povo a lei suprema” (sendo que “salus” também pode significar saúde, segundo o dicionário Santos Saraiva, seja a saúde do povo a lei suprema). Em época de pandemia e negação da ciência, ou melhor, de combate à ciência, os mais vivos estão fugindo antes da bomba estourar com as pencas de mortos.
Até a saída de Moro, Bolsonaro mantinha seu terço radical do eleitorado, considerado suficiente para chegar ao segundo turno em 2022. Era um eleitorado bastante consolidado, daí Moro abraçar o figurino da força – visto que o apoio a ele vai além desse reduto fascista descarado – e sua mulher dizer que Moro e Bolsonaro eram “uma coisa só”. Outros concorrentes da extrema-direita trataram de buscar outras paragens, a de centro-direita democrática (disputando com o vice, general Mourão, que por mais que se esforce e tenha tomado um banho de verniz de civilidade sofre da síndrome de Dr. Strangelove e levanta o braço em horas inoportunas), tão logo se abriu uma brecha para mudarem o figurino sem serem acusados de traidores – no caso, o coronavírus.
Se o coronavírus não serviu de álibi para Moro, sua previsíveis consequências devem ter dado o alerta de que era hora de se desligar dessa “coisa só” que ele é com o capitão. Provavelmente ele percebeu que esse apoio irrestrito de um terço vai mudar quando a conversa das pessoas comuns – dentre os quais incluo bolsonaristas, apesar de sua incomum capacidade de negar a realidade mais óbvia – passar de  “hoje morreram 400”, “ontem morreram cinco mil” para “hoje morreu meu pai”, “ontem morreu minha filha”. Nesse momento a discussão se no início era o verbo ou a verba, se existe pessoas sem economia ou economia sem pessoas será tragada pela dura realidade dos mortos com nome (coisa que sequer os filhos do presidente tem para o pai, que o diga o zero quatro, rapaz que rodou pelas mãos do condomínio mais que cuia de chimarrão entre gaúchos expatriados). Moro se antecipa (como fez Mandetta) e escapa para não ser acusado de cúmplice da matança anunciada: dificilmente alguém que estiver ao lado do presidente nessa hora sobreviverá politicamente – mesmo que haja um milagre econômico depois.
Ao mesmo tempo, racha esse terço de apoio irrestrito a Bolsonaro, e é apresentado pela rede Globo vestindo um figurino centrista, de defensor do Estado de Direito, eterno paladino anticorrupção e não-político (o que implica em não tergiversar em seus princípios). Este, inclusive, seu grande trunfo, a arapuca armada contra Bolsonaro, para roubar dele o discurso da antipolítica: poderá dizer que tentou agir desde dentro do “mecanismo”, mas foi impedido pelos políticos, e que pretende ter ele o poder, para não ter que ceder um milímetro na construção de um Brasil puro, limpo, livre de toda corrupção (e de todo esquerdismo).
Agora é ver como a direita organiza suas forças: há cacique demais para pouco índio. Se for compôr com algum governador ou político de turno, Witzel parece o mais apto para aceitar o risco. Doria Jr, ungido a candidato do establishment, em especial depois da crise do coronavirus, sabe o que é fechar com pessoas gananciosas e sem escrúpulos: vai ciceronear Moro, tentar ganhar simpatia de parte de seus apoiadores, para atirá-lo ao mar no momento certo. Mesmo as elites, depois de darem com os burros n’água com Bolsonaro, primeiro apresentado como boi de piranha, para garantir que o antipetismo em alta levasse à vitória tucana, depois ao apoiá-lo, crendo que poderiam controlá-lo uma vez no Palácio do Planalto, devem estar pesando muito antes de se meter com outro aventureiro antipolítico e personalista – Doria Jr já mostrou que uma vez no poder é confiável com seus financiadores.
A Rede Globo já deu início à campanha para 2022, falta a esquerda decidir se entra nela agora ou segue na janela, vendo a banda passar.


25 de abril de 2020

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Em meio à pandemia, uma cidade habitada por pessoas invisíveis

Foto de André Conceição.
Instagram: @andre.conceicao.ac
Salvo duas idas ao mercadinho da esquina, a última vez que havia me afastado de casa tinha sido dia 18 de março, por conta de trabalho. Ainda que as ruas estivessem um pouco mais vazias, o comércio seguia aberto. Novamente por conta de trabalho, quarta dia 22 precisei sair de casa. Tinha três opções: a tradicional, tomar um metrô ao lado de casa e ir até a estação Tietê; chamar um motorista por aplicativo ou uma caminhada de uma hora e meia. Claro, não perdi a oportunidade de fazer o "trekking urbano" que tanto gosto.
Álcool gel no bolso, coloco a máscara e me lembro de quando fazia yoga, a hora da meditação: quando precisava ficar parado e concentrar, coceiras pelo corpo todo, como se pulgas surgissem do nada e avançassem famintas. A mesma coisa com a máscara: coça nariz, coça queixo, coça bochecha, coça, coça, coça, e eu sem poder pôr a mão. E segue coçando.
Isolado em casa, numa rua sem saída e sem movimento, não tenho noção do que acontece pela cidade. Imaginava-a mais movimentada, pelo que leio de quem saiu por esses dias. O movimento não é grande, mas também não é pequeno. No trajeto que fiz, São Paulo tinha um ar muito estranho.
Desço a rua Vergueiro e a avenida da Liberdade. Exceção à proximidade do Hospital do Servidor, pouco, muito pouco movimento, até chegar na praça da Liberdade. Não tem cara de domingo tampouco: aos domingos as lanchonetes estão abertas, há mais bicicletas na ciclovia, mais carros.
Na praça da Liberdade acontece uma feira livre, há um pouco de movimento, nada que se pareça com a Liberdade em qualquer dia semana. Há mais pessoas sentadas pela praça, para usar a internet (lembro no início da quarentena que se discutiu oferecer internet grátis, como forma de ajudar as pessoas a ficarem em casa, mas diante de um governo que não foi capaz de disponibilizar a contento dinheiro e meios de sobrevivência, discutir internet é luxo).
O movimento começa de fato na praça da Sé. Perto de um dia comum, há mais GCMs, há mais moradores de rua, há menos pregadores, menos transeuntes e turistas. Uma viatura da GCM vai em direção a uma fumaça que sai do centro da praça. Passa por ela como se fosse algo banal. Ao me aproximar, vejo uma mulher num fogão improvisado esquentando água, batatas doce ao seu lado. Um outro morador de rua comenta: "vão ficar boas essas batatas". Me lembro do conto da sopa de pedra, que li quando era inocente puro e besta de pouca idade, em um livro com contos e lendas da América Latina. Não entendi: por que o homem jogava fora as pedras da sopa? Precisei que meu pai explicasse a esperteza do protagonista. A sopa da mulher não tem nada de esperteza, nem de ingenuidade: é sobrevivência, é a estética da fome desprovida de toda arte. Ao avançar, descobrirei que essa uma nova tendência do centro menos nobre de São Paulo: fogões improvisados para preparar refeições possíveis - se até 'chefs' estão tendo que se reinventar durante a crise, como várias reportagens não cansam de mostrar esse "drama", que dirá dos esfomeados...
Desço a General Carneiro até a 25 de março. Alguns poucos ambulantes vendem meias e máscaras. Quase ninguém na rua, mas ainda assim a 25 tem um ar de estar movimentada: como se seu tropel habitual fosse um moto perpétuo que acontece independente das passadas serem reais ou apenas espectros. Nas proximidades do mercadão noto mais de movimento - inclusive de carros -, nada que aproxime de um domingo. Com boa vontade, metade das pessoas está de máscaras, muitas delas deixam o nariz de fora, para melhor respirar, outras protegem do vírus entrar pelo cavanhaque ou pela papada, as orientais são disparadamente os mais diligentes no quesito de precaução. Avançando depois da Senador Queiros, pessoas na porta de seus estabelecimentos brincam com conhecidos que transitam: "não vai ficar em casa?", "saí, mas é rapidinho".
O que mais chama a atenção nesse trajeto do centro, sempre tão movimentado, é como emergiram os invisíveis: são muitos e muitos, mais que nos dias de antanhos, que hoje chamamos de "normais" - apesar dessa anormalidade sempre estar presente na Sé. Esse tanto de mendigos e moradores de rua sempre esteve ali? Talvez sim, mas diluídos no mar de gente que transita, a proporção faz perdermos a noção de quantos realmente são. Talvez porque muitas pessoas estejam em sua casa, eles, nas deles - a rua -, surja tão gritante aos meus olhos. Ou talvez mais pessoas hoje residam na rua, não sei. Pelo jeito, o rapa da GCM contra moradores de rua também anda em baixa: vi várias casas improvisadas, com razoável estrutura montada. Novamente me lembro da minha infância, minhas cabanas de cobertor, almofadas e caixas de papelão. Já no Canindé, passo por uma que aparenta ser um cantinho bastante aconchegante, admito. A dona da "casa" está do lado de fora, acende o fogo com o qual vai preparar seu almoço. Pouco adiante, cruzo com alguns adolescentes que caminham despreocupadamente, com a soberba imunidade autorizada pelo presidente da república. O clima de férias destoa deles destoa do que presenciei em todo o resto do trajeto, onde uma pinta de preocupação é notável, mesmo que se faça piada da pandemia.
Cumpro minhas obrigações laborais e volto pelo mesmo trajeto. Na casa que havia comentado antes, a panela já está no fogo, a entrada do barraco está fechado com algo que faz a vez de uma precária porta, reparo que há um tapete na entrada: a mulher tirou os chinelos para entrar em casa. Ao passar pela feira livre que acontece no Canindé, pego um resto de conversa entre dois homens, o sem máscara está terminando sua frase "...um irresponsável!", ao que o mascarado complementa: "alguém tinha que chegar e matar esse filho da puta, que não deixa a gente trabalhar". Desconfio que falem do governador do estado, mas o que mais me chama a atenção é ao que foi reduzida a política: solução é via derrubada ou - melhor ainda? - assassinato puro e simples. O mundo não será o mesmo, dizem, depois da pandemia. Também creio nisso, e sou otimista. Porém ao ouvir coisas como essa sei que o trabalho não será pouco e não será breve para a reconstrução de um mundo onde a convivência pacífica seja um direito, não um privilégio.

24 de abril de 2020