segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Bloco sanitário para caixa acoplada

Pouco depois de me mudar para São Paulo, dividi apartamento com um arquiteto recém chegado da Europa, contratado para trabalhar num dos escritórios de grife da arquitetura nacional. 
Um dos pontos interessantes da convivência com ele foi saber (ou melhor confirmar) alguns comportamentos das nossas elites econômicas, em especial as diferenças entre um novo rico - que vai para Nova Iorque, perdão, New York, escolher as banquetas para sua casa, a três mil dólares cada - e um rico tradicional - que acha extorsivo o valor do projeto do puxadinho para sua mansão nos Jardins, ainda que seja um valor irrisório para quem está na lista da Forbes como dos mais ricos do mundo, com alguns bilhões de dólares.
Outro ponto interessante foi ver que estar um (bom) tanto desconectado das coisas práticas da vida não é privilégio de filósofos, sociólogos, economistas e escritores (ainda que estes possam fazer bom uso desse alheamento). Pouco depois que ele mudou, perguntei se ele teria alguma sugestão de ocupar melhor o espaço do apartamento com os móveis que eu tinha. Na noite do mesmo dia me veio com a sugestão de quebrar a parede da sala, fazendo uma cozinha gurmê no meio, com um grande… interrompi suas ideias não tanto pelo clichê, antes porque o que eu queria era mudar móveis de lugar e não fazer uma reforma estrutural num apartamento alugado. Certa feita, veio intrigado contar da conversa no elevador que tivera com os vizinhos de cima, que questionaram se estava tudo certo em nosso banheiro. Disse que respondeu afirmativamente e vinha então me perguntar se tinha acontecido algo. Sim, tinha: do spot de luz gotejava há quatro dias um líquido viscoso preto e todo o teto estava pipocado de água infiltrada, por conta de um cano que estourara no apartamento de cima; mas ele não havia notado nada - e era o único banheiro da casa. Fosse ele o filósofo, eu até, quem sabe, poderia dar um desconto, mas ele era arquiteto!
O melhor foi uma vez que saído do banheiro veio ter comigo, que estava na sala, lendo. Diante do bloco sanitário em gel que eu havia posto no vaso, me contou que na Europa havia blocos sanitários para caixa acoplada, que se jogava na respectiva caixa e era desnecessário limpar o vaso (os três moradores da casa nos revezávamos na faxina, uma semana um limpava o banheiro, outro o resto da casa e o terceiro folgava), e me sugeriu que adotássemos tal expediente. Nem pontuei o fato de não acreditar que um bloco sanitário fosse capaz de substituir uma faxina feita com uma escova, apenas levantei que tínhamos um problema capital: nosso vaso sanitário não possuía caixa acoplada. Ele ainda ficou um tempo pensativo, levemente perplexo, levemente decepcionado com minha objeção, ao que, enfim, concluiu: "que coisa, então não vai dar para usar". Eu sei que parece piada, mas aconteceu.
Lembrei desse antigo colega de habitação porque na residência em que vivo atualmente o vaso sanitário possui caixa acoplada - e eu compro os tais blocos sanitários específicos, ainda que faça questão de passar a escova uma vez por semana, no mínimo.
Em geral, compro o bloco sanitário para caixa acoplada mais barato, "sabor" lavanda, que tem uma cor que não sei se é azul, roxo, índigo - sim, eu sou daltônico, e isso me traz algumas dificuldades com certos tons de cores (o que não me impediu de tentar ser iluminador cênico, o que permitia que eu me apresentasse como um dos poucos filósofo das luzes devidamente registrado no MEC e no MTE). Esses dias resolvi trocar de cheiro. Me chamou a atenção o silvestre: não pelo cheiro - pois eu estava de máscara e só pude ver sua cor, verde -, mas pela possibilidade de dar um ar mais bucólico ao meu banheiro, que às vezes, quando chego do trabalho, tem um acentuado cheiro de xixi dos meus gatos. Imaginei algo meio fazenda, que rememoraria passeio da infância: o cheiro da relva misturado ao das excretas bovinas - meu gato Guile, com quase dez quilos, já parece mesmo um boi. O cheiro do tal silvestre até era gostoso, mas as memórias antigas não vieram, e achei que deixava a água do vaso com uma cor estranha. Decidi não encafifar com isso, afinal, provavelmente devia ser obra do meu daltonismo.
Foi quando Sabrina veio passar o fim de semana em casa. Ao sair do banheiro, perguntou se havia algum problema com o vaso, pois dava a descarga e o xixi continuava ali - ao menos assim parecia -, algum problema com a água? com a caixa acoplada? Sabrina não é daltônica, de modo que vi que minha impressão era real. Expliquei que não, não havia nenhum problema e a urina que aparentemente se acumulava na retrete era bloco sanitário de "sabor" silvestre - ela acreditou. Espero não ter mentido.

03 de agosto de 2020.

terça-feira, 28 de julho de 2020

O momento para a esquerda pautar a discussão sobre a escola e a educação

Talvez não tenha havido nos últimos anos momento mais oportuno para impôr uma pauta progressista na discussão sobre os rumos da educação no Brasil - perdemos essa oportunidade quando nos governos petistas, talvez impelidos por questões mais prementes e que avançavam, como financiamento. Com Fundeb aprovado e Weitraub fugido, a principal discussão da área deve ser sobre a volta às aulas no contexto da pandemia. Ainda que envolva aspectos pedagógicos, não é exatamente uma questão pedagógica: eis o momento de colocar certas questões essenciais em pauta, antes que o governo o faça - ou movimentos privatistas/predadores da educação, tão bem representados na figura da deputada Tábata Amaral.
Aliado ao respiro que a aprovação do Fundeb trouxe, a entrada de Milton Ribeiro no ministério da educação não deixa de ser um alento: sai a proposta de destruição pura e simples de educação - parte da guerra contra o "marxismo cultural", entendido como tudo aquilo que não seja adestramento para a brutalidade e a submissão -, e entra uma proposta, péssima, mas uma proposta: privatista, reacionária ao extremo - ao que tudo indica -, que crê que se educa pela dor, pelo autoritarismo (sempre confundido com autoridade, apesar de serem conceitos bastante distintos, por mais que possam ter intersecções) com vistas à formação de força de trabalho servil (portanto acrítica e desconhecedora da própria cidadania) e para os valores da família e da igreja (substitutos da cidadania negada). É um retrocesso, mas é um avanço: sem a estridência do pupilo olavista e provavelmente trabalhando mais nos bastidores, dá para entrar em algum debate público racional.
E o contexto permite que as esquerdas, o campo progressista, os pedagogos e pesquisadores da área consigam colocar e balizar o debate agora. A pandemia e a forma como ela atingiu a educação em todos os níveis (até mesmo a educação à distância, falo por experiência!), com a suspensão das aulas e os arremedos ensaiados pela internet, dão a oportunidade de ouro para se perguntar: para quê serve a escola? Qual deve ser a função da escola? Qual o papel da educação na dita sociedade do conhecimento e o que deve ser ensinado - na escola e fora dela? Ensino à distância substitui o ensino presencial?
Não sou pesquisador da área, apenas um diletante que desde sempre gostou de pensar e refletir sobre o que vivencia quotidianamente. Tenho experiência tanto com educação presencial quanto à distância, como professor (ensino superior EaD e educação popular presencial) e como aluno (dois diplomas de graduação e um mestrado presenciais (fora três graduações inc ompletas), uma graduação e uma especialização à distância, e cursando mais uma graduação EaD). Como professor, EaD é frustrante. Como aluno, tem seus aspectos positivos - mas realmente não sei o quanto as crianças estão preparadas para lidar com um meio altamente dispersivo como a internet, se sequer os adultos estão. É interessante para ir direto ao ponto de certo assunto, sem que o professor se perca eventualmente (não raro) em digressões, facilitando entender a linha de raciocínio. Para uma aula expositiva de fixação de conteúdo, vale, para formação de pensamento crítico é um instrumento precário: não substitui as trocas em sala de aula e outros ambientes escolares - os fóruns são arremedos cansativos e pouco produtivos. 
E o "ensino EaD" é um dos temas na pauta, não só pela pandemia como desde que foi aprovado que 30% do Ensino Médio pode ser ministrado nessa modalidade, pela reforma do golpista Temer, e com a proposta do governo Bolsonaro de ampliar para todo o ensino fundamental (trata-se de um prato cheio para aliciação das igrejas evangélicas, que poderão cuidar da merenda e da formação do "caráter" das crianças, enquanto os pais trabalham e o Estado se desobriga e economiza). A experiência da pandemia vai fazer alguns defenderem, outros criticarem, vai ter quem levantará o ponto da popularização da internet no país, e nessa discussão vai passar que essa não é uma questão essencial - eu diria que beira a irrelevância, se não se aceitar os termos postos por quem vê educação como mera formação de força de trabalho.
Antes de discutirmos o que ensinar e como - e mesmo para quê -, cabe perguntar qual a função da escola no mundo hoje. A ideia de um ensino conteudista (que é o que está por trás da defesa do ensino EaD) é totalmente pertinente para a década de 1950, quando ter uma fonte de pesquisa, como uma enciclopédia, significava morar perto de uma (rara) biblioteca pública ou ter boas posses para comprar uma e deixá-la na sala - diante desse empecilho, o mais recomendado era que as pessoas tivessem vários dados e datas guardados na memória. Isso para não falar das fontes de informação, também escassas e unidirecionais. Hoje tem-se todo esse conteúdo facilmente à mão e em qualquer lugar, graças à internet. Tal aparente facilidade, claro, não substitui o conhecimento prévio: se não se souber que houve ditadura militar na Argentina, por exemplo, não se vai pesquisar o nome dos ditadores do período; não conseguir entender e interpretar um exercício de análise combinatória não vai permitir pesquisar as fórmulas que permitam resolvê-la. Conteúdo segue importante, porém não deveria ser o centro do processo de educação - sei que há muito não há mais essa centralidade, ao menos dentre os teóricos da educação, contudo é a visão senso comum da escola e da educação, daí que tanto a questionam.
Se os novos meios de comunicação rebaixaram a importância da escola quanto ao repasse de conteúdos, eles aumentaram a importância que ela tem no ensino da socialização das crianças e jovens: em uma sociedade do medo, onde cada um fica fechado em sua casa ou condomínio - todos consumindo, pensamento, agindo, se comportando de modo muito semelhante -, interagindo por meio de telas - que podem ser desligadas ao primeiro sinal de desavença e encerrar a discussão -, a escola pode surgir como centro dessa socialização, dessa forma de interação humana que a sociedade do espetáculo tenta minar. Interagir cara a cara com alguém é se responsabilizar imediatamente pelo que é dito e a forma como é feito, é entender que o tempo não é infinito e que não dá para falar tudo o que deseja a qualquer momento, é ser educado não para a tolerância com o diferente, e sim para a convivência com ele, sem se sentir ameaçado por isso - porque não há mesmo ameaça. 
E se aceitarmos que a socialização e a convivência são as funções principais da escola na sociedade atual, a própria ideia de educação privada pode ser questionada num segundo momento: se a proposta é a de conviver com o diferente, é preciso que estejam presentes no mesmo ambiente diferentes classes sociais, diferentes experiências de vida, diferentes visões de mundo. E se é um centro de socialização e convivência, logo pode servir para educar os pais também - quem sabe tirá-los do lodo fascista onde chafurdam contentes por pentercer a uma pretensa irmandade de puro coração e valores -, servir para engajar a sociedade toda na educação das crianças - não só -, tirando essa responsabilização excessiva da escola e dos educadores - os CEUs da gestão Marta podem ser encarados como um primeiro e tímido ensaio.
O que estou propondo não é nada revolucionário. É uma proposta de educação liberal, afim a muitos valores da sociedade, ao menos dos valores cultivados pela e para as elites - não por acaso, alguns colégios e métodos já há tempos equilibram conteúdo e convivência. É contudo, uma forma de escaparmos da armadilha de discutirmos questões posteriores, como métodos e objetivos - forma de se manter tudo como está, ainda mais na atual correlação de forças, com avanço do fundamentalismo religioso. Discutir a função da escola é pôr em questionamento a própria sociedade, sua forma de produção, os valores que reproduz, os ideais que almeja. É preciso que saiamos de uma posição reativa e de negação e avancemos com propostas e questionamentos que mobilizem o debate público e criem o ambiente para, no futuro, possam ser discutidas reformas mais transformadoras da educação formal - e de toda a sociedade.


28 de julho de 2020

PS: Enquanto pensava neste texto, lembrava do problema da educação durante a pandemia, o fato de muitas pessoas não terem acesso a celular e internet. No início da pandemia até houve um movimento pedindo que fosse liberada internet gratuita para todos - até como forma de estimular ficar em casa -, isso antes de entrarmos no debate se o vírus existia de verdade ou não era invenção e outros non senses do tipo. Curiosamente, não se pensou que há concessões públicas de televisão que abrangem todo o território nacional, e que tem nos termos de sua concessão a utilidade pública e fins educativos. Com programas suspensos por causa da pandemia e crise financeira das emissoras, daria para o governo negociar os horários da manhã para oferecer teleaulas, das oito ao meio dia. São cinco emissoras de abrangência nacional (Globo, Record, SBT, Band e Rede TV!), isso totaliza 20 horas todas as manhãs; dá para ter um canal somente para crianças não alfabetizadas e outra só de revisão para Enem, e ainda sobraria uma hora para cada série. Certamente pedagogos saberiam fazer a coisa render melhor, ainda assim seria algo bastante precário; contudo, ao menos as crianças não ficariam totalmente paradas, e os pais também teriam um momento de folga (por sinal, falou-se muito do aumento da violência contra a mulher durante a pandemia, é de se questionar se não houve também aumento da violência contra as crianças no período). Esta ideia soa meio descontextualizada a um texto que fala em questionar o ensino baseado no conteúdo, a expus porque é serviu para me lembrar que há outros meios que podem ser usado para educação, estão à mão desde muito tempo, e deixamos passar.