segunda-feira, 5 de julho de 2021

Neorrefugiados

O frio que faz na cidade de São Paulo não é extremo, mas torna mais difícil minha tarefa de sair da cama, às seis da manhã – é um fator a mais nessa dificuldade de acordar na República Federativa-Fascista do Brasil, em que vivemos desde 2016. Conseguindo me desvencilhar das cobertas, resta comer algo, cuidar dos gatos, ler alguma notícia (ou o último “xadrez”) enquanto tomo chimarrão para esquentar, até dar a hora de pegar o metrô e descer na estação Tietê. 

No espaço ao lado da rodoviária (pode-se chamá-lo de praça?), há cerca de três semanas um pequeno “campo de refugiados” voltou a se formar – havia um antes, que deve ter sido devidamente higienizado por algum programa da prefeitura, que levou essa visão triste para fora da vista, porque para uma parte da nossas elites e seus lacaios de classe média a prestações, pobreza não existe se não é visível. 

Refugiados pode soar estranho a brasileiros que estão simplesmente morando na rua – até porque um refugiado costuma ser alguém que se vê obrigado a sair de sua terra, por conta de uma situação em que corre risco de vida, para um lugar onde se sinta seguro. De que terra saíram os brasileiros que hoje habitam essa praça? Que ameaças sofreram para ir morar na rua? Que segurança há ali, em barracas sob o relento, o frio, o intenso trânsito de carros? Quem os persegue? 

Sem perguntar, deduzo respostas, e por isso insisto que ali estão refugiados - ou neorrefugiados, para marcar a distância de quem veio de outras paisagens, ainda que sua situação não seja nova na história do país - , saídos de sua casa para a rua, para uma praça onde julgam mais protegidos do que em uma viela escura, perseguidos por entidades desencarnadas e sem um rosto único, mas que cobram sacrifícios de gente como essas, vistas como semi-gente, semi-animais sacrificiais. São todas “pessoas marrons”, que uma vez Eliane Brum comentou em crônica, falam um bárbaro português em que não há espaço no seu mindset para fazer uma call de job do home-office após o brunch, talvez nem para bater uma bad por conta de seu freela ou de seu home estar um tanto down.

Os que ali estão, fica claro, não queriam estar. Há uma meia dúzia de barracas, algumas montadas com esmero, simulam casas, evocam desejo de um lar. Uma das “casas” em especial me chama a atenção: a maior e a mais à vista dos passantes, bem montada com suas paredes de lona forradas internamente com “cobertores de doação” (ou “cobertor de mudança”), dentro há uma outra barraca, essa de camping, onde há algo mais fofo que faz a vez de colchão. Nunca vi os moradores da casa, mas desconfio que seja ao menos um casal – me pergunto se alguma das muitas crianças que correm e brincam pela praça também mora ali. Semana passada notei que havia um caixote com duas garrafas de corote e cigarros – deviam vender a seus colegas de campo. Hoje havia uma bicicleta – sinal de possível trabalho de seus moradores, entregador de aplicativo –, estoque de cobertores de doação e um caixote de engraxate – quem engraxa sapatos hoje, ainda mais do lado de fora do terminal Tietê? Havia também um detalhe extra na “casa”: em uma das “paredes” foi feito um puxadinho com mais um cobertor de doação, bem precária, se tomada a “casa” principal como parâmetro – ainda que ela também seja bem precária. Está mais para uma casinha de cachorro, mas dentro dormia uma pessoa. 

Atravessando a rua, na alça da marginal Tietê com a ponte com a avenida Cruzeiro do Sul, outra meia dúzia de barracas – todas montadas num ar mais de prestes a levantar o acampamento. São também pessoas com mais posses, ao menos três das famílias ali instaladas: há um Fiesta de quarta geração, um Monza e um Monza modelo antigo (sendo que o carro foi parado de produzir em 1996). Quando eu tinha meus oito anos, lembro de em alguns domingos frios acordarmos cedo, eu e meu irmão, e levarmos cobertores para montar barraca dentro do Santana azul de meu pai, com gibis, papeis e lápis de cor – ligávamos o rádio do carro e ficávamos ali, brincando, a meia luz, já que a porta da garagem estava fechada. 

Evoco essa lembrança pelo ano dos carros, porque não há nenhuma similaridade entre a brincadeira de crianças de classe média em alguns domingos com a situação das crianças que ali vivem com suas famílias, domingo a domingo, sob interpéries e com o futuro mutilado de um país em frangalhos.

05 de julho de 2021.

sábado, 5 de junho de 2021

03 de junho: o dia em que tivemos que admitir que não há mais democracia no Brasil

Desde quando a ditadura militar caiu, em 1985, o Brasil nunca viveu uma democracia plena - visto que o acesso a direitos básicos apregoados pela constituição nunca foi efetivado para maioria da população, e falo de direitos muito elementares, como o direito à vida nas abordagens dos militares que fazem policiamento e o princípio de presunção de inocência (nem vamos entrar no direito ao trabalho, moradia digna, etc). Tivemos arremedos de abertura democrática, em especial nos três primeiros governos petistas. Sim, tivemos eleições também! Como eleições tivemos em 1978 (numa emulação do sistema dos EUA, Figueiredo venceu com 61% dos votos, índice que o bolsonarismo esperava alcançar em 2018), e como em todo o período ditatorial tivemos congresso funcionando, com oposição e situação - a cordialidade brasileira no seu jogo de aparências sem efetividades. Desde 2010, entretanto, está escrito nas estrelas da bandeira: o brasileiro vota errado. Uma vez, tolera-se, duas, não: 2015 veio o golpe - ainda acho que Dilma não abriu totalmente o jogo do que aconteceu entre a eleição e o início do segundo mandato, talvez na esperança de garantir brechas por onde alguma democracia possa ser construída. 2018 já não tivemos mais o risco do brasileiro votar errado: mídia, judiciário e forças militares estiveram presentes e atuantes para garantir um pleito justo aos interesses das elites mais sedutoras a egos mesquinhos. 

Com a concentração da mídia no Brasil, é ingenuidade achar que alguma vez houve eleição limpa durante a Nova República: o que tivemos foi uma força popular grande o suficiente e bem canalizada, e algum conhecimento das artimanhas espetaculares (com os ocorridos em 1982 e 1989), para não deixar o golpe acontecer. Entretanto, essas mesmas forças, inebriadas pelo poder, iludidas por um republicanismo de almanaque que serve apenas para discussões beletristas acadêmicas e pauta moral para oportunistas, desatentas ao que eram as novas tecnologias de informação recém surgidas, e com uma leitura equivocada das elites brasileiras, ficaram deitadas em berço esplêndido, sem alterar efetivamente a correlação de forças. Resultado: em 2018 a Nova República coroou a velha ESG, depois que esta fez um breve estágio no governo ultraliberal-neofascista Temer: Bolsonaro venceu uma eleição na qual ele estava impedido de perder. Como será a de 2022 - salvo raras combinações de circunstâncias. 

Se ainda acreditávamos em alguma possibilidade de que os entendidos nas forças armadas estivessem errados, o 3 de junho não permite mais ilusões: não há mais instituições de Estado. Alarmados pelo monstro que ajudaram a criar, o judiciário ainda pode voltar atrás e reagir: STE pode cassar a chapa, o STF pode afastar o presidente, pode decretar tudo o que quiser, em vão: o judiciário não possui sequer um cabo e um soldado para levar o recado ao presidente. 

Bolsonaro não tem o apoio da maioria da população, e isso é mero detalhe (como em 64 os militares tampouco tinham): tem a maioria dos donos da grana, a maioria dos seus serviçais (médicos, advogados, jornalistas, economistas e outros “doutores” assalariados que se acham ricos), a maioria da mídia, que faz uma oposição tão aguerrida quanto a seleção brasileira em certo jogo contra a Alemanha no estádio Mineirão; se não tem a maioria, tem parte considerável do judiciário e do Ministério Público, e mais importante: tem a grande maioria das armas: forças armadas, polícias e forças paramilitares (conhecidas no Rio de Janeiro como milícias, no resto do mundo como máfias). 

As forças progressistas e populares precisam assumir a situação tal qual ela é: nossa democracia, que era de baixíssima intensidade, é, desde 2014, uma democracia de fachada. Ou, sem firulas: não é democracia. Precisamos parar de esperar que instituições teoricamente de Estado, mas que sempre foram guarida para uma casta de mandarins entreguistas, tenham pela primeira vez na sua história qualquer apreço pelo Estado, pelo país ou pela sua população: carro blindado não é empecilho para essa casta, a universidade de Lisboa ou de Cornell estão ao alcance de seus filhos, e Miami fica só a oito horas de São Paulo. Não vai haver nenhum movimento por parte da maioria que compõe essas instituições e não faz sentido tentar restaurar uma democracia que sempre foi uma quimera: é necessário um novo pacto social.

Contudo, o que vemos é uma permanente discussão sobre 2022 - o que é válido e necessário, diga-se de passagem -, como se a eleição de Lula (ou Ciro, dentre os que ainda acham que ele é viável) fosse capaz de resolver, por si só, qualquer coisa. Sem mobilização, sem construção de base, pouco adianta vencer eleições majoritárias: minora aspectos mais medonhos e gritantes, mas a essência da nossa democracia tutelada segue a mesma. Contudo, a situação é ainda pior: sem mobilização popular, não vai ter vitória de Lula ou de qualquer nome progressista em 2022 - o contexto político mundial não sinaliza apoio a uma ditadura explícita, então é de se crer que teremos eleições fajutas, como as de 2018.

Com isto não quero dizer que estamos derrotados, pelo contrário: o futuro em aberto está. Só que precisamos abandonar o pensamento mágico de um salvador da civilização e passar a atuar desde já (e não só nas nossas bolhas virtuais): a constituinte de 1988 e a desconstituinte de 2016 em diante são mostras do quanto a mobilização popular faz diferença mesmo nos acordos das elites que alijam a maioria do povo. Vira voto em segundo turno é ação de desespero - até agora sem demonstrar resultados efetivos: precisamos virar percepções de mundo, mentalidades, formas de se engajar na política.


05 de junho de 2021