quinta-feira, 25 de maio de 2023

Um cavalo de Troia no Le Monde Diplomatique - Comentário sobre o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança"

Os fascismos do século XX, assim como suas versões repaginadas neste início de século XXI, não são apenas formas de gestão do estado e da economia, não atuam apenas na macropolítica, como penetram profundamente no tecido social, nas relações micropolíticas, influenciando a sociabilidade como um todo - quantas histórias não conhecemos de famílias que se afastaram desde a emergência dos fenômenos de extrema-direita no Brasil, como o lava-jatismo e o bolsonarismo?

Tem sido comum estudiosos e analistas inserirem as técnicas neofascistas de comunicação e manipulação no seio da guerra híbrida[1]. Uma dessas estratégias consiste em forçar os limites do aceitável no debate público, de pouco em pouco, por aproximações sucessivas, de modo que parece desproporcional recorrer à justiça, e quando se nota, absurdos passam a ser ditos ostensivamente nas mídias e nas casas legislativas - desde da defesa da desigualdade de gênero e de raça, à defesa da tortura ou da criação de um partido nazista -, e nesse ponto, como tudo até então era tolerado, ações (tardias) no sentido de refrear esse avanço contra pactos civilizatórios elementares são apontados como pretensa censura à liberdade de expressão.

Assim como os fascismos do século XX souberam se utilizar das ferramentas de comunicação então emergentes, o rádio e o cinema, os neofascismos deste século XXI também souberam instrumentalizar com eficiência as novas tecnologias de comunicação, como a internet e as redes sociais - Debord dizia que o “fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado”[2]. Esta afinidade entre novas tecnologias de comunicação e extrema-direita não me parece ser por acaso: o desenvolvimento da ciência - e as novas tecnologias dela derivada - não é neutro. A ciência faz parte de um “sistema-mundo” capitalista, está inserido dentro de uma lógica, de um momento histórico específico, e ainda que haja espaço para dissidências e questionamentos, o vetor principal é o de reforço da lógica do capital, do status quo.

Na esteira do ativista português João Bernardo[3], advogo a tese de que o fascismo não é um desvio que se aproveita de fragilidades do liberalismo em momentos de crise, e sim o contrário: quando o disfarce liberal mostra seus limites em conter a rebelião das massas e garantir as taxas de lucro, o capitalismo se vê forçado a se apresentar em sua essência, retomando suas raízes ocidentais de submissão, colonização e dilapidação do mundo e de povos tidos por inferiores; o sistema europeu de produção de hierarquias e produção de desigualdades, mundializado desde o século XV, ao menos; ou seja, a necropolítica identificada com o fascismo é iminente à expansão europeia/Ocidental e ao desenvolvimento capitalismo. Por conta disso - da essência destrutiva do capitalismo e da afinidade entre o capitalismo e o desenvolvimento da técnica sob sua égide -, as formas fascistas e neofascistas de socialização, de debate, de enfrentamento agonizante (e não agonístico) na ágora, vão sendo disseminados de um modo que soa natural - por aproximações sucessivas, como disse - até que, sem que se perceba, estamos reproduzindo essas formas de sociabilidade e de visão do mundo - como o punitivismo, por exemplo -, e o debate vai sendo rebaixado a dicotomias simplórias e soluções mágicas, que temos dificuldade para complexificar e reverter. Não por acaso, “costumo dizer que o fascismo se enfia pelas frestas, como um gás inodoro que toma o ambiente sem que percebamos. Sutilmente altera a forma como percebemos o mundo, o outro, a nós mesmos; naturaliza a barbárie e nos anestesia para o horror”[4]. Isso nos exige atenção e autocrítica permanentes, de modo a garantir que não acabemos, na ânsia de tentar estabelecer algum debate e desmascarar ações mais evidentes do fascismo, por reproduzir os pressupostos daquilo que combatemos - uma coisa é buscar instrumentalizar as técnicas de comunicação já desenvolvidas pela extrema-direita, outra é utilizar suas técnicas de manipulação.

Digo isso porque foi com assombro que li na edição de abril do Le Monde Diplomatique Brasil o artigo "Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", da jornalista Ariane Denoyel.

Pelo livro que a autora do artigo escreveu - Geração Zumbi, investigação sobre o escândalo dos antidepressivos -, percebe-se que é alguém que tem familiaridade com o tema da produção de doenças para venda de remédios. Contudo, uma coisa é uma “epidemia” de depressão, cujo diagnóstico é bastante impreciso e manipulável[5], outra um caso em que o diagnóstico da doença depende de um teste preciso - uma amostra coletada reagir positivamente ao COVID-19 -, e que matou milhões de pessoas em todo o mundo, em um curto espaço de tempo (ainda que o número exato possa ser questionado, como a autora faz).

O artigo em questão me pareceu muito estranho na sua estrutura e recursos retóricos, por se utilizar de muitos elementos de fake news. Isso já seria problemático, mas o fato de ir de encontro com muito do que a extrema-direita mundial propagou desde 2020, me fez parecer um cavalo de Tróia que conseguiram pôr dentro da revista.

É evidente que ao texto subjaz um viés de confirmação da sua tese. Tese que tem como um de seus pressupostos o de que as grandes corporações não possuem restrições éticas na sua busca pelo lucro. Pressuposto compartilhado por muitos leitores do Diplô (este escriba incluído), e que se lerem o artigo sem a devida atenção podem ser “capturados” pelo raciocínio lacunar mas de fácil entendimento, induzidos a concordar com premissas falhas (por aproximações sucessivas?), até se chegar a uma conclusão que até agora não possui lastro na realidade empírica, ao menos não na forma radical como foi posto pela autora: de que as vacinas foram aprovadas apenas para lucro rápido das empresas farmacêuticas, que se utilizaram com sucesso de todo tipo de fraude e suborno dos órgãos de controle estatais e mundiais para impor seus interesses, à custa da segurança da população e calando todo e qualquer questionamento sobre sua eficácia e mesmo sobre sua necessidade.

É basicamente a mesma tese das teorias das conspirações dos antivax da extrema-direita, mudando apenas o beneficiado da fraude - sai a dominação chinesa, entra a das grandes corporações. Inclusive propõe a mesma saída: se vacina quem quer, ignorando que saúde pública deve ser feita de modo público e não como compras num site de e-commerce com a liberdade absoluta sobre si do homo-oeconomicus; que vacinação só tem efetividade se feita coletivamente, dentro de uma política ampla, para além de (pretensas) escolhas individuais.

A forma como é construído o texto, cheio de nomes de indivíduos solitários lutando contra a OMS, a FDA, a NIH, a ANSM, as grandes corporações capitalistas e sei lá quem mais, é outro ponto que reforça a suspeita de estratégia de manipulação. As citações de artigos científicos sem apresentar uma contestação a eles feitos dão um verniz de sério, mas não sustentam nenhuma delas: todas essas contestações teriam sido validadas pelas revistas e ninguém, nem um mísero cientista foi capaz de as contestar, pôr em dúvida, refutar?! Assim sendo, por que esses gênios não ganharam o Nobel, então? Ah, talvez porque foram “contra o Sistema”, em que ONU, OMS, governos, mídia, todo mundo está na mesma conspiração para vender vacinas e ficar rico destruindo a saúde da população[6]... A própria jornalista não se deu ao trabalho de plantar um “cientista”, que fosse, fazendo o outro lado das acusações - isso não seria o básico do jornalismo, mesmo de opinião, ao tratar de um caso dessa gravidade?

É muito estranho que o artigo levante suspeitas sobre o cuidado em divulgar casos adversos da vacina, ignorando com uma solenidade gritante todo o contexto da época, das campanhas massivas em nível mundial dos antivacinas e anticiência. Se o Brasil foi um caso modelo desse tipo de desinformação, com respaldo presidencial, a França da autora, onde protestos contra a vacina reuniram mais de 200 mil pessoas[7], não estava imune a esse tipo de ação de guerra híbrida. Este trecho aqui, por exemplo, parece ter saído direto de uma live do Bolsonaro: "O órgão também descarta sistematicamente efeitos que não aparecem na literatura científica, mas nós não temos distanciamento suficiente dessas vacinas para excluir qualquer causalidade"[8]. Basicamente um "‘Ah, não tem comprovação científica de que seja eficaz’. Não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz. Nem que não tem, nem que tem"[9] de alguém que sabe manejar o vocabulário com algum refinamento - só faltou defender a cloroquina, porque o discurso negando a ciência está ali presente, apresentando o método científico como regras forjadas para descartar aquilo que não é do interesse dos poderosos, por mais que as evidências fossem visíveis no “mundo real”.

Que haja contestações às vacinas contra a Covid e à forma como foram desenvolvidas dentro do meio científico, não duvido - afinal, estamos falando de ciência, não de religião. Contudo, esse tipo de debate é muito mais complexo e profundo do que foi apresentado pela autora - constrangedoramente rasa em todo artigo, como sói a todo texto de manipulação.

Por fim, o artigo termina falando da "autocensura dos jornalistas"[10] sobre os efeitos adversos das vacinas. Esse é o recurso básico elementar de qualquer fake news. Sim, artigos sérios também podem apontar esse ponto (e há vários no Diplô, que não coloco em suspeita), mas toda a construção da Ariane Denoyel é arquetípica de fake news, neste ponto ela apenas alterou a ordem do chamariz, tirando do início e colocando no final, para coroar toda a linha de raciocínio que construiu anteriormente - um exercício retórico bem reconhecível.

Não sou da área, logo, pode ser que a autora tenha razão em sua tese; entretanto, a estrutura do texto o desqualifica para um debate sério, dada toda sua construção falha, como assinalei acima. O pior, contudo, é esse reforço à forma neofascista de se relacionar com notícias (e com a ciência) e como, muitas vezes, acabamos por ser capturados por ela.

Estejamos atentos e vigilantes, sempre!


25 de maio de 2023


[1] LEIRNER, Piero. O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: Militares, Operações Psicológicas e Política em uma Perspectiva Etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

[2]DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[3]BERNARDO, João. Labirintos do fascismo (cinco volumes). São Paulo: Hedra, 2022.

[4]GORTE-DALMORO, D. “O Fascismo se enfia pelas frestas”. Jornal GGN, 03 de junho de 2017. https://bit.ly/3OeItUo

[5]Com isto não nego a existência da depressão ou outras doenças psiquiátricas, mas o quanto são tratados como casos clínicos necessário de intervenção farmacológica casos que definitivamente não o são, e poderiam ser resolvidos de modo mais efetivo e menos custoso de outras formas, com outras técnicas.

[6]Confesso que senti falta do Foro de São Paulo no artigo.

[7]“215.000 franceses protestam contra a vacinação obrigatória e o certificado covid-19 pela quinta semana seguida”. El País, 14 de agosto de 2021. https://bit.ly/434myUk

[8]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança", grifo meu.

[9]“Bolsonaro se embaralha ao defender uso da hidroxicloroquina contra covid-19”. Poder 360, 16 de julho de 2020. https://bit.ly/3WdLp5F

[10]"Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança


PS: Texto escrito para a pedido da revista (após um e-mail mais sucinto), mas que não foi publicado.

Agropeça: o pacto da branquitude está nu [Diálogos com o teatro]



Agropeça, do Teatro da Vertigem, em cartaz no Sesc Pompeia, é uma crítica profunda ao Brasil contemporâneo. Crítica não apenas ao agro, não apenas ao (mal) chamado “Brasil profundo”, que estaria fora dos grandes centros, não apenas à extrema-direita ultraliberal fascista que tem no agro um de seus pilares; mas ao conjunto da sociedade, a nós - eu e você que me lê -, que habitamos grandes, médias e pequenas cidades; que permitimos chegar ao ponto onde estamos, ora não querendo enxergar o que estava evidente, ora não acreditando na gravidade daquilo que víamos1; que permitimos que uma mentira contada mil vezes - o agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo - não apenas se tornasse uma verdade, como escondesse toda a verdade que há por trás dela, quando não embaralhasse e invertesse por completo o verdadeiro e o falso; que na hora de nos comprometermos de fato e nos engajarmos, recuamos e nos sentimos aliviados com uma assinatura em petição online. Uma crítica antes e acima de tudo (e de todos?), ao pacto de branquitude feito entre elites e classes médias, cuja parte do campo progressista, por um comodismo com seus privilégios e por um preconceito de classe e racial arraigados, também entra - mesmo que com a melhor das boas intenções -, e que impede mudanças estruturais tão urgentes não apenas no Brasil, como no mundo.

A peça - escrita por Marcelino Freire e dirigida por Antônio Araújo - tem múltiplas e densas camadas, várias leituras e interpretações possíveis: foram quase dois anos de processo para se chegar onde chegou, e é de se esperar, pela qualidade dos envolvidos, que o resultado tivesse mesmo a qualidade que teve, sem descuidar do espetáculo cênico2. A leitura que faço aqui está longe de esgotar uma dessas possibilidades.


Antes da cena, o espetáculo se ancora (dentro muitos outros pontos) na disputa em torno do que fazer com a obra de Monteiro Lobato. Faz um tempo que, se por um lado a direita tenta manter o autor taubateano como uma referência atemporal para as crianças do país, parte da esquerda e do campo progressista luta para reescrever e pasteurizar suas obras, para serem compatíveis com o ideal que possuem para o século XXI, apagando todo racismo que a percorre3. Agropeça sugere a atualização do autor pelos dois lados - direita e esquerda -, porém com o pacto de branquitude que sustenta ambos4 escancarado.


Tudo se passa no Sítio do Pica Pau Amarelo. Estão presentes Dona Benta, Tia Nastácia (apresentada no programa como Anastácia; seria uma negação daquela Nastácia tão submissa e cordial?), Narizinho, Emília, Pedrinho, Visconde de Sabugosa, Coronel Teodorico, além do Saci - todos postos como alegorias. O sítio é adaptado para dar lucro (maximizar resultados, como dizem os economistas neoclássicos) com um rodeio.

O novo ethos do sítio, assim como o receio de uma batida do Ministério Público do Trabalho por trabalho em condições análogas à escravidão, fazem a pretensa harmonia racial e social ir se desfazendo. A cena do lamento de Narizinho ao Visconde de Sabugosa (alegoria do estrangeiro), tão comum no discurso agro e religioso, de que antigamente tudo era melhor, cada um sabia o seu lugar - pretos e brancos, homens e mulheres - é o ponto que deixa explicitado o pacto de branquitude, quase como síndrome do escorpião, tendo em vista as cenas que eles haviam protagonizado em momentos anteriores da peça.

Em um trecho tenso entre Visconde de Sabugosa e Tia Anastácia - já devidamente questionadora da ordem -, Anastácia lembra o Visconde que foi ela quem o criou. A frase é quase banal no contexto de Lobato, ainda que possa ter uma carga existencial e desdobramentos. Porém, é um petardo forte quando se pensa nas alegorias dos personagens: a descendente de escravos falando para o Europeu erudito que foi ela quem o criou. Diante das acusações do passado que aprisionava até então ela e demais negros, o Visconde argumenta que não é por ser da Europa que ele deve ser responsabilizado: ele é um sujeito apenas, não é toda a Europa, não pode falar pelos outros; ao que Anastácia é enfática ao dizer que ela é mais que um sujeito explorado, ela é toda a África presentificada. É uma construção interessante de como algoz e vítima (e seus descendentes) se portam, assumem suas heranças e cicatrizes. Sob o pacto de branquitude, o Ocidente sempre nega as próprias responsabilidades quando estas são negativas: a civilização europeia aparece como radiante porque toda a sujeira é escondida ou, quando não é possível escondê-la por inteira, isolada e diminuída. Um evento menor. Um caso isolado. Algo que já passou e já foi superado. O negro (e o indígena, e, em menor medida, todo o mundo não ocidental) que sequer tem direito a história e memória, é obrigado a sustentar as consequências do sofrimento passado até o presente. De um lado, as feridas e cicatrizes do açoite; do outro, aquele que, se hoje renega o chicote, não abre mão daquilo que seus antepassados ganharam ao utilizá-lo contra a carne mais barata do mercado. E há, depois, quem diga que a favela venceu porque uma pessoa negra e pode tirar foto de “igual para igual” com brancos, num evento branco, de herança branca, de pensamentos brancos, em meio a espólios negros – a favela venceu, ainda que as balas perdidas sigam acertando sempre pessoas negras e das favelas, em um número absurdamente maior das que venceram.



A cena com Narizinho acontece no início, é o primeiro e talvez o grande quebra-clima do espetáculo. Quando o clima do rodeio ainda estava no começo, com um forte ar festivo, e dava a impressão de que a peça seria uma crítica mimetizando esse tipo de festa com piadas sarcásticas, mas sem bater de frente, Narizinho, ao agradecer a eleição para Rainha Milho, ao citar os vários episódios de violência sexual que sofreu de seus pares, quebra esse clima e nos lembra de todo o ambiente machista do agro, do rodeio, do campo, da tradição5. A cena com Visconde de Sabugosa é um sinal de que ser mulher violentada não é suficiente para romper com a classe - no fundo, são antes de tudo, uma grande família branca e proprietária, que se ama em suas posses, a despeito de eventuais “deslizes”.


O que não quer dizer que o pacto de branquitude advindo da colonização e da civilização europeia não se sustente, depois da exploração e dilapidação dos corpos (e das almas6) negros, na exploração dos corpos femininos e corpos dissidentes. O machismo e toda sua violência inerente é uma constante na peça, na educação de Pedrinho por Coronel Teodorico, nas relações com as mulheres, nas próprias mulheres.

Quem incorpora alguns discursos feministas é Dona Benta - e não Narizinho. Seja o discurso feminista liberal, de que a mulher precisa empreender para se empoderar, não há negatividade a se combatida, basta ações positivas; seja aquele que eu chamo de feminismo acadêmico-branco-de-classe-média, que usa lugar de fala como lugar de cala, ontologiza questões de gênero, tratando mulheres a partir de uma raiz biológica, das “pessoas que menstruam” (a citação à frase da famosa feminista negra de pensamento branco é explícito na peça), sendo estas absolutamente iguais, independente da sua posição social e da cor da sua pele. O feminismo que não expõe e critica a questão de classe e a questão racial, que nivela todas as mulheres como iguais, pode minorar algumas violências, mas é apenas um instrumento a mais de perpetuação da nossa “agrocondição” baseada no patriarcado7.

Uma cena marcante do machismo do agro é a do leilão. Ao invés de gado, a boneca Emília, uma transexual, leiloada para desfrute dos pais da família tradicional brasileira, que ostentam a imagem da macheza e virilidade ao mesmo tempo que são covardes e incapazes de sequer sustentarem os próprios desejos. Emília que, sim, rompe com o pacto da branquitude. E isso não é algo necessário – vale lembrar aquele autor que a extrema-direita tanto adora xingar e a esquerda que o defende pouco lê de fato, Paulo Freire - pois, apesar de que nunca será aceita na mesa da família, nem terá direito a nada na herança, por sua condição “antinatural”, poderia se conformar em ficar com as migalhas, sentindo qualquer poder por procuração; mas talvez por saber que o mundo é hostil demais a pessoas como ela, faz questão de se levantar e se posicionar - mesmo quando não é com ela o problema.



E o Sítio do Pica-Pau Amarelo, antes tão harmônico, de repente se torna conflituoso, por conta de que quem antes era humilhado e expropriado até em sua humanidade, de repente se levanta, e reivindica o que deveria ser seu por direito - não fosse nosso liberalismo de ocasião.


A disputa em torno de Lobato na nossa sociedade mostra o quanto ele é atual no seu racismo. O intento de limpá-lo dessa sua característica indica uma negação de encarar o problema de frente por parte de nossas elites intelectuais brancas - o racismo que nos circunda, nos habita -, e a descrença no poder transformador da educação (formal e não formal). É o pacto da branquitude, que percorre como um fio comum da extrema-direita que assume com brutalidade o que vem da Europa8, a esse progressismo pela metade, que não mexe em seus pequenos privilégios históricos9, viralatamente afeita aos ideais europeus e que renega a própria terra, a própria cultura (talvez com exceção àquilo que é bem visto no além-mar).

O agro é tentativa, por parte da elite brasileira e seus sabujos de classe média, de serem considerados brancos e ocidentais pelos verdadeiros ocidentais - os únicos sujeitos universais verdadeiro -, mesmo que seja como seus serviçais.


25 de maio de 2023

PS: agradeço Bia, Luis e, principalmente, Lia, pelas conversas que me ajudaram a elaborar este diálogo.


1Quando escrevia o Trezenhum. Humor Sem Graça., ironizando o quotidiano da Unicamp (das universidades públicas em geral), várias vezes fiz piada com os neofascistas que surgiam, e mesmo com comportamentos de outros alunos, típicos da extrema-direita - a começar pelo trote -; não acreditei que eles seriam uma força política relevante.

2Fiz estágio em dramaturgismo no Teatro da Vertigem em 2015, tenho noção de como a construção da peça e das cenas acontece – coletivamente. Isso e ainda amparado por um escritor do porte de Freire, era difícil imaginar resultado diferente. Inclusive, meu último livro, com as peças Linha de produção/Linha de descartes (editora Urutau, 2022), a primeira delas foi inspirada nesse estágio.

3Vale ressaltar que esse apagamento, reescritura ou fuga do passado é uma constante brasileira, mas também do que eu chamo de “pensamento branco” (que, assumo, tenho alguma dificuldade para definir exatamente, ainda que o perceba): se no Brasil temos o exemplo da ausência da justiça de transição com o fim da ditadura militar, no mundo é visível na apresentação dos líderes fascistas do século XX pelo cinema estadunidense como pessoas carrancudas que dominavam pelo medo, e não pelo que de fato eram: líderes carismáticos, cuja maioria da população aderia à servidão voluntariamente - por meio do voto, inclusive. A proposta de reescrever as obras de Lobato limpando o “politicamente incorreto” que na época vingava é uma das posições mais cretinas que se pode ter; é negar aprender com o passado - assim como não vimos o neofascismo emergir em figuras sorridentes e com apelo popular por não conhecermos de fato como eram Mussolini e Hitler. Neste ponto, o filme O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, foi um divisor de águas para mim, quando o vi pela primeira vez, em 2004, e passei a ver a possibilidade do líder fascista retornar a qualquer momento, sem ser percebido. Esse politicamente correto levado ao extremo e pretendendo abarcar toda a história é um jogo para manter tudo como está.

4Bob Black, em seu Groucho-Marxismo, dizia que esquerda e direita se fazem uma oposição limitada, de modo a manter o essencial como está.

5Não estou aqui negando a existência de machismo nas grandes cidades, no meio acadêmico, artístico e intelectual, em outras culturas; porém se manifestam de formas diferentes, e são outras formas que se tem para abordar e combater.

6Ainda estou no início do livro, mas não tem como não indicar Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves

7Preciso ser honesto: foi com feministas liberais que pude, finalmente, conversar, ser ouvido, dialogar, e inclusive elaborar melhor minhas próprias questões; elas que permitiram eu notar com clareza que empoderamento feminino é uma luta das mulheres, e a luta contra o machismo é uma luta de todos (até então isso ficava meio nebuloso na minha argumentação). Foi um passo importante para eu conseguir, inclusive, entender melhor minha relação com meu corpo, que falo mais no texto https://bit.ly/cG220110. Nas minhas muitas e infrutíferas tentativas de diálogo com feministas acadêmicas brancas de classe média, sempre fui calado e acusado de ser homem (que a extrema-direita adora utilizar para desqualificar o feminismo como um todo). Dentre as pérolas dessas tentativas de trocas, ouvi de uma graduada em geografia na USP que eu não podia criticar o machismo e o patriarcado porque eu só me favorecia com eles, por ser homem (o que sinaliza certa transfobia, por sinal); de uma graduada em sociologia pela Unicamp, que mulher não pode ser machista, porque é mulher; de uma (então) doutoranda em feminismo na Unicamp e na Alemanha, de que todo homem é um estuprador em potencial (e ela era casada com um estuprador, mesmo que em potência); de uma graduada em jornalismo pela Cásper e artes pela Unesp, vi ela relativizar a tentativa de estupro por parte de um amigo branco, advogado, mestrando em filosofia na USP, residente no Morumbi, porque ele estava bêbado e não havia concretizado o ato, logo não deveríamos ser tão a ferro e fogo com ele.

8Nisto, poderíamos citar a Espanha e Vini Jr, por ser recente, mas poderíamos citar a Alemanha, a França, a Inglaterra, e todo o chamado Ocidente (que não é muito, por sinal), o genocídio ameríndio nos EUA, a Austrália e seus campos de concentração para imigrantes pobres até hoje em funcionamento...

9Atenção! Trabalho digno, salário decente, férias, descanso remunerado não são privilégios!